Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Dissociar a cidade de Brasília da dupla “arquitetura-e-urbanismo” é uma tarefa bem difícil. Afinal, sabidamente, a capital federal foi uma cidade planejada, concebida pelas pranchetas e desenhos do urbanista Lúcio Costa, e erguida e construída pelo renomado e centenário arquiteto Oscar Niemeyer. Pensar em Brasília é ainda lembrar imediatamente do Congresso Nacional, da Catedral, da Esplanada os Ministérios, do Palácio do Planalto. Mas é fundamental destacar que a cidade encravada na região central do país, com seus edifícios característicos e a distribuição das ruas que se conhece tão bem, começou a nascer a partir de um concurso – vencido justamente por Costa e Niemeyer, mas disputado por outros 25 projetos, assinados por tantos outros grandes nomes da arquitetura brasileira, como Vilanova Artigas e Rino Levi. “Brasília poderia ter sido realmente uma cidade bem diferente do que é, podia ter fachadas e sacadas parisienses, ou podia ser um conjunto de chácaras produtoras de alimentos para toda a população. É difícil imaginar outra Brasília, mas, sim, essa possibilidade um dia existiu”.
É assim que a arquiteta Aline Moraes Costa Braga começa a explicar o curioso nascimento da capital federal. Aline é autora do livro (Im)Possíveis Brasílias: os projetos apresentados no concurso do plano piloto da nova capital federal, recém-publicado pela Alameda Editorial (R$ 67,00). A obra, com mais de 400 páginas, é resultado da pesquisa – de fôlego – que a arquiteta desenvolveu no mestrado, orientada pelo professor Marcos Tognon, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Logo no início da pós-graduação, a autora descobriu que o concurso para a escolha do projeto da nova capital nunca tinha sido amplamente estudado. Mais do que isso, os projetos-candidatos eram praticamente desconhecidos dos urbanistas e do público em geral.
“Essa foi uma primeira surpresa, que acabou motivando o mergulho nesse tema”. A partir daí, começou o garimpo pelos documentos e relatos que ajudariam a recontar essa etapa da história do país. “Eu viajei praticamente o Brasil inteiro e falei com praticamente todos os herdeiros dos escritórios que apresentaram projetos”, conta. A maior parte dos esboços estava num estado de conservação muito ruim, amarelado, roído por traça, ou tinha mesmo se perdido para sempre. “Resgatamos o material que existia – infelizmente o país não tem a tradição de guardar documentos assim – e no final dessa primeira fase eu tinha mais de 600 páginas na mão. E aí começou a segunda etapa: classificar tudo isso”, completa.
Àquela altura, final do ano 2001, início de 2002, Aline tinha mais do que alfarrábios a organizar. Ela era a única detentora de um painel amplo e absolutamente representativo de uma arquitetura e de um urbanismo que estavam em perfeita sintonia com o momento que o Brasil e a América Latina viviam. Brasília sempre foi mais que uma cidade planejada. Antes mesmo de nascer, a capital era a concretização de uma ideia de nação, de um jeito de governar, de uma crença numa sociedade poderosa. Os projetos todos, mesmo bem diversificados, mostravam isso claramente, segundo a autora.
“Cada projeto tinha suas características bem marcadas, mas todos eles tinham a marca do que a gente chama de Urbanismo Moderno”, ensina a pesquisadora. O exemplo mais visível da inspiração desse Movimento nos projetos é a presença quase que unânime da cidade dividida por setores – Brasília tem o setor de hotéis, o setor dos prédios do governo, o setor das residências; ao mesmo tempo, a preocupação com a qualidade de vida também aparece. As superquadras residenciais têm arborização pronunciada, praças, parques e playgrounds e as escolas, o trabalho, os clubes, as pequenas ruas comerciais ficam todos perto das moradias. É possível fazer tudo a pé, teoricamente. Quem vai à capital, ou quem procura as plantas baixas dos projetos que participaram do concurso, ainda se dá conta que ali é possível chegar ao mesmo lugar caminhando pela frente dos prédios, por trás, pelos lados, inventando novas rotas, “ou até por dentro mesmo dos edifícios, que foram projetados para não ter muros e não impedir a passagem de ninguém”.
Comparar essa característica marcante dos projetos de Brasília com cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro – que também já foi capital – levanta a questão dos significados mais profundos de implantar uma nova capital. Uma cidade sem muros é um elogio à liberdade, ao avanço, e tal conceito combina direitinho com os sonhos do então presidente Juscelino Kubitschek e dos políticos que acreditavam num Brasil grande, desenvolvido e líder da América do Sul. Importa lembrar que esse pensamento foi muito característico do pós-Segunda Guerra aqui no país. Na década de 1950, sob o comando do grupo de JK, o Brasil alcançou níveis de crescimento significativos e que viraram referência para o desenvolvimentismo e o nacionalismo nas décadas seguintes. Segundo Aline, toda a cartilha rezada pelo Urbanismo Moderno se afinava sem maiores atritos com a dimensão política da cidade. “A monumentalidade das vias, esplanadas e espaços públicos, convivendo em harmonia com a arquitetura acolhedora, confortável dos pequenos prédios residenciais e comerciais. Isso é a cara do futuro que os políticos almejavam para o país”.
Mas afinal, se não fosse como é, como Brasília poderia ter sido? Debruçando-se sobre a farta documentação, fotos, plantas, esboços e desenhos que colheu ao longo da pesquisa de mestrado e que hoje estão no livro (Im)Possíveis Brasílias: os projetos apresentados no concurso do plano piloto da nova capital federal, Aline se diverte contando que um dos projetos – talvez o mais diferentes de todos – sugeria uma capital agrícola. Assinado por João Batista Vilanova Artigas, um arquiteto famoso em São Paulo, que projetou, entre outros, o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), faria de Brasília uma espécie de aldeia rural, formada chácaras dispersas, responsáveis pela produção de alimentos para a população. Nesse caso, as moradias seriam bem pulverizadas, distantes umas das outras.
Outro projeto inovador e ultramoderno era o de Rino Levi, também arquiteto de renome, curiosamente conhecido por ser conservador e tocar obras sólidas, feitas para durar. A Brasília dele seria uma espécie de Dubai, capital dos Emirados Árabes, com torres altíssimas, de mais de 300 metros – a mesma altura da Torre Eiffel –, que comportariam órgãos governamentais, comércio, residências, escritórios e tudo mais. “Gosto de dizer que as torres seriam as superquadras, só que verticais e muito finas. O principal meio de transporte seriam os elevadores. Os eixos monumentais seriam enormes elevadores, que levariam os moradores para o trabalho, para a escola, para o comércio. As ruas secundárias seriam elevadores menores, que levariam à casa dos vizinhos e às praças, que estariam ali pelo andar 40”, diz Aline. O estranho é que Levi não era muito de criar projetos impossíveis, impraticáveis, por isso os herdeiros de seu escritório não hesitaram em afirmar à autora do livro que estão certos de que o arquiteto tinha mesmo a pretensão de construir Brasília naqueles moldes caso ganhasse o concurso.
Mas não foi nenhum desses dois projetos o vencedor. O urbanista Lúcio Costa conquistou o primeiro lugar e fez de Brasília a cidade mundialmente conhecida por suas características urbanísticas e arquitetônicas. A pergunta feita então para Aline Braga, autora do livro, foi: por que esse projeto foi o vencedor e não qualquer outro entre os 26 inscritos? “A proposta de Lúcio Costa tinha tudo mesmo para ser a ganhadora. Primeiro porque é de uma simplicidade que assusta. Oferece cada coisa em seu lugar e todos os elementos absolutamente afinados com o Urbanismo Moderno, os planos de Juscelino Kubitschek, o ideal de Brasil grande e desenvolvido, a vida em comunidade, a monumentalidade e o acolhimento simultâneo, enfim, estava tudo ali”, justifica a arquiteta, que destaca ainda o memorial descritivo assinado por Lúcio Costa. Segundo ela, o texto que todos os projetos tinham de apresentar foram documentos relevantes para a análise que ela apresenta no livro, mas o memorial de Costa é insuperável. “Os princípios de uma era do país, todos aqueles que nortearam a construção da capital e os sonhos das pessoas daquele tempo, aparecem nas poucas linhas. E de forma tão contundente que é impossível de rebater, que não havia como não vencer”, afirma a autora.
Contudo, Brasília não é uma unanimidade. Na época da construção e da mudança da capital não faltaram também críticas. Dizia-se que a cidade ficava distante dos grandes centros, que a região tinha pouca população e tinha clima desértico, que o urbanismo escolhido era frio e evitava o encontro das pessoas, enfim, que Brasília, em última instância, não vingaria. A pesquisadora conta que, em setembro 1959, meses antes da inauguração, aconteceu o Congresso Internacional de Críticos de Arte. Na ocasião, o urbanista Giulio Carlo Argan, professor da Universidade de Palermo, da Itália, afirmaria que Brasília era a “capital moderna do mundo moderno”. Outro crítico participante do Congresso sintetizaria: “Você pode amar Brasília ou odiar Brasília, mas você não pode passar ileso por ela”.
Aline conclui explicando que, para quem trabalha com arquitetura e urbanismo, o livro (Im)Possíveis Brasílias: os projetos apresentados no concurso do plano piloto da nova capital federal é uma referência, “já que não havia nada antes tão bem documentado sobre o concurso”; já para os interessados de forma geral, “é um livro instigante, que fala de possibilidades do real, que poderiam ter sido, mas não foram, e acaba colocando a imaginação para trabalhar”.