Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Aconteceu uma grande festa no último sábado, dia 17 de dezembro. Ou melhor: a festa na verdade acontece desde o ano passado. E a boa notícia é que todos os brasileiros foram convidados. O motivo de comemoração tão extensa e intensa é o aniversário do escritor gaúcho Erico Veríssimo, que estaria completando cem anos, caso estivesse vivo. O governo do estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, empenhou-se para que cada escola pública de ensino fundamental e médio tivesse pelo menos um dia de homenagens e atividades comemorativas ao centenário de Veríssimo. Também as faculdades públicas e particulares do estado aderiram ao esforço e promoveram seminários, colóquios, debates e até uma espécie de olimpíada literária entre seus alunos, o que acabou envolvendo não só professores e estudantes, mas também as famílias e as comunidades locais, oferecendo aos festejos uma dimensão e simbologia muito maiores. No resto do Brasil, comemorações também aconteceram. Afinal, é mais do que justo resgatar a memória do autor de clássicos como “O Tempo e o Vento” ou “Incidente em Antares”, só para citar algumas obras.
Para a professora de “Teoria Literária” da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Maria da Glória Bordini, existem duas razões para Erico Veríssimo gozar desse prestígio público. “E não é uma questão de mídia. Seus livros não são os da moda, não aparecem no topo da lista de mais vendidos, nem são os queridinhos das TVs”. Segundo a professora, a primeira faceta seria o compromisso, evidente em todas as obras do autor, com os direitos do homem, com a liberdade, além da crítica a questões sociais, mazelas que ainda hoje precisam ser revistas. “São problemas permanentes que, ao ler Veríssimo, o leitor reencontra. Os problemas retratados há 60 ou 70 anos continuam atuais, como o desemprego, a luta de classes, as injustiças sociais”, conta. A atualidade dos temas abordados pode ser encontrada até mesmo nos romances históricos, porque lá está a representação do que o país é contemporaneamente e do que foi no passado. A segunda razão para o prestígio do criador de personagens como Ana Terra é uma característica de sua arte. “Erico não escreve para si mesmo, como se a obra fosse um canal de expressão de problemas que o escritor quer expurgar. Ele também não escreve para a crítica, literária, acadêmica, ou altamente especializada, para ser aclamado e tido como imortal”. Maria da Glória explica que também não é um texto para um leitor qualquer, uma diversão efêmera, onde o leitor sequer seria levado a pensar depois de terminar a aventura literária. O público buscado por Veríssimo é um público universal, mas que se deixa tocar pelos problemas ali expostos. “Ou seja, são obras que associam a arte do romance a um forte traço de comunicabilidade. Resumindo: ele escreve de maneira acessível, mas sem abrir mão da sofisticação narrativa”, arremata a professora.
Narrativa romanesca
Essa preocupação com a comunicação é o que explica também a razão do sucesso das adaptações das obras de Veríssimo para a televisão. Nos anos 1980, a Rede Globo exibiu a mini-série “O Tempo e o Vento”, com a participação de nomes importantes da dramaturgia televisiva, como Tarcísio Meira, Glória Pires, Julia Lemmertz, Diogo Vilela, dentre outros. Na década seguinte, a mesma emissora levou ao ar a micro-série “Incidente em Antares”, novamente com a participação de outros grandes, como Fernanda Montenegro e Paulo Betti. A professora da PUC-RS e especialista em Erico Veríssimo conta que o escritor era um apaixonado por cinema e assistia em larga escala a filmes franceses, italianos e americanos. Desse convívio tão intenso com a sétima arte, Veríssimo conquistou a possibilidade de uma narrativa mais visual. Essa narrativa romanesca, afinada com as características de visualidade dos meios eletrônicos, deu origem a um casamento muito adequado. Para ela, as duas séries citadas e outros programas já realizados por outras emissoras costumam ser bem fiéis não só às obras, mas também às propostas de Veríssimo. “O curioso é que o cinema ainda não tenha nos presenteado com nenhuma adaptação generosa como foram as de TV, mas ainda está em tempo”, brinca Maria da Glória.
Apesar de as mini-séries sobre as obras de Veríssimo terem alcançado sucesso nacional, vale lembrar seus aspectos locais, já que o escritor invariavelmente é chamado de “pai da literatura gaúcha” ou mesmo de “fundador da literatura gaúcha”. Questionada sobre essa característica, Maria da Glória ri e confessa que adora quando a pergunta aparece. “Ele é sim o fundador, porque foi o primeiro escritor do Rio Grande a falar sobre o homem e a mulher do Rio Grande, contar sua história e sua saga, a ter projeção nacional”. E completa: “Mas sua obra está longe de ser uma obra regionalista, ele não enfoca em momento algum o exotismo das personagens gaúchas, ele fala é do povo brasileiro”. A grande preocupação de Erico Veríssimo, ainda de acordo com Maria da Glória, era retratar as relações humanas dentro das cidades, os jogos, as movimentações e as relações de poder que acontecem num ambiente urbano. E isso acontece de maneira muito parecida nas capitais e no interior das cinco regiões brasileiras, não só no sul. Ou seja, para ela, “o Brasil se reconhece e se espelha nos romances de Erico, sejam os históricos, sejam os urbanos”.
Em “O Tempo e o Vento”, por exemplo, o autor mostra um país agrário, em que o poder estava nas mãos dos proprietários de terras, que vai, aos poucos, se modernizando, ou tentando se modernizar, procurando ganhar ares de uma sociedade industrial, mas que não chega a completar o ciclo. Acaba ficando no meio do caminho, porque a nova classe que ascende ao poder se corrompe. Na opinião da especialista, esse é o foco central da obra, que não deixa de ser uma história muito semelhante ao que aconteceu – e quiçá ainda acontece – no Brasil todo. “Rodrigo Terra Cambará é o retrato de boa parte da classe política brasileira. Veja só, ele é um homem preparado, foi estudar na Europa, volta para ocupar um lugar de poder e quando chega lá, o que acontece? Ele se corrompe. Você não já viu essa história um milhão de vezes antes?”, propõe a professora da PUC-RS.
Relatos de viagem
Mas ainda melhor que as obras de caráter nacional de Veríssimo são seus relatos de viagem. Também nesses livros o perfil cosmopolita do escritor fica reforçado. Ele viajou pelas três Américas, pela Europa e escreveu até sobre o Oriente Médio, a partir de uma passagem por Israel; em todas as obras desse gênero, aparece claramente um Erico Veríssimo observador e pesquisador. De acordo com Maria da Glória, essas obras, pouco conhecidas, são tidas como umas das melhores do gênero. “Os mexicanos, por exemplo, consideram o relato de Erico sobre sua viagem àquele país, na década de 1960, a melhor descrição do México feita por um estrangeiro”, conta. Nos anos 1930 e 1940, Veríssimo escreveu apaixonadamente sobre a democracia norte-americana. “Embora isso pareça meio dissonante em tempos atuais, temos que lembrar que ele comparava a democracia americana ao Estado Novo de Getúlio Vargas, que vivíamos aqui no Brasil. E mais, também opunha a democracia dos Estados Unidos ao fascismo e ao nazismo que assolavam a Europa”, explica a especialista. Em relação a Israel, não faltam escritos curiosos, explicando o país como um mundo de vida coletiva, em que bens e trabalhos eram divididos, e sugerindo que isso poderia ser exemplo para o mundo. E toda essa experiência, é claro, acaba vazando para os romances. Maria da Glória conta que “O Senhor Embaixador” só poderia ter sido escrito por alguém que viveu e conheceu muito de perto a realidade diplomática de Washington e também as realidades das repúblicas ditatoriais das Américas Central e do Sul.
Convite a leitura
E é nesse ponto que Maria da Glória acha que a educação deixa a desejar. Hoje, ainda é a escola a grande responsável pela introdução às obras do escritor gaúcho. Normalmente, é a partir da leitura recomendada por professores que adolescentes e jovens travam seu primeiro contato com os livros de Veríssimo. Portanto, essa mesma escola não deveria focar seus trabalhos apenas nos romances do autor. Eles são muito ricos e cheios de características que possibilitam muita discussão e produção em sala de aula, é verdade. Mas a trajetória criativa do autor é também recheada de obras que nascem a partir dos relatos de viagem. E esses relatos, segundo a professora, podem servir de subsídio para várias disciplinas, não apenas para a Literatura. “História, Geografia e, mais recentemente, História do Cotidiano, das Mentalidades e Geografia Cultural podem se apoiar nos romances e nos relatos, porque lá há informação valiosa, revelada pelos olhos de um observador curioso”, sugere. Ela entende que uma das razões para que esse exercício não aconteça é a falta de conhecimento e de domínio dessas obras pelos professores. E, apoiada nisso, faz o convite: “A vida de um escritor depende da leitura de suas obras. Leiam primeiro. Antes de qualquer crítica ou comentário. Porque a literatura dá subsídios para que o leitor a compreenda. E a compreensão da obra é que a faz interessante, prazerosa. Essa experiência, quando vivida pelo professor, é transmitida naturalmente para os alunos”.
Leia mais:
» Biografia e obra de Erico Veríssimo