Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Os chuviscos não deixavam dúvidas. O que aparecia na tela era mesmo uma cópia antiga, mas verdadeira, do filme Hiroshima, meu amor, de 1959. Os 300 lugares da platéia estavam ocupados e, para assistir à clássica obra do cineasta francês Alain Resnais, havia ainda pessoas sentadas em todos os degraus das escadas. Foram quase duas horas de um silêncio respeitoso e ansioso, quebrado apenas por aplausos entusiasmados ao final da sessão – encerrada por um corte abrupto, antes que o tradicional “le fin” pudesse aparecer na tela. O evento, no entanto, ainda não chegara ao fim, e o auditório continuaria lotado por mais uma hora, para acompanhar um debate comandado pelo crítico de cinema Sergio Rizzo e pelo escritor Milton Hatoum.
Rizzo inicia sua exposição lembrando à platéia que Hiroshima foi o primeiro longa dirigido por Resnais, que anteriormente já havia feito uma carreira respeitável como diretor de curtas-metragem; além disso, o filme se apresenta como um dos inauguradores da “Nouvelle Vague”, movimento cinematográfico francês que possibilitou um novo enfoque crítico para filmes e representou uma tendência dominante na produção francesa pós-59. Dentre outros princípios, essa escola defendia maior liberdade narrativa para os diretores e a prevalência de cenas externas em relação às locações e estúdios. “Nesse sentido, é possível afirmar que o tema central do filme é o tempo da narrativa e a permanência da memória, seja a memória histórica, seja a memória pessoal”, completa Rizzo. E passa a palavra para o escritor.
Um caso de amor por acaso
Hatoum explica por que havia escolhido Hiroshima, mon amour para aquela sessão especial. “É uma história de amor, um caso de amor que acontece por acaso. Ela é uma francesa de Nevers; ele, um japonês de Hiroshima, que se encontram e se amam por mero acaso”. E essa presença do acaso é fruto da experiência e do talento da roteirista, ninguém menos que a escritora francesa Marguerite Duras. Participante da corrente conhecida como Nouveau Roman, ou Novo Romance, Duras dá destaque para uma atriz francesa que está participando de um filme sobre a paz, gravado em Hiroshima. Lá, a personagem se apaixona por um arquiteto japonês, também envolvido com política.
Em grande parte, a atração que o filme causa em seu público vem desse casamento com a literatura, influência direta da atuação de Duras. O roteiro da obra é mais que um guia de filmagens. Trata-se de uma quase digressão, onde a alma e o sentimento das personagens são descritos com detalhes e profundidade, apesar de seguir a estrutura clássica de um roteiro de cinema. “Esse é o segredo das personagens do filme: a complexidade com que são construídos e descritos”, explica o escritor. É assim que Duras narra deliciosamente uma história tão forte que, em determinado momento de inflexão narrativa, faz a atriz francesa lembrar de seu primeiro amor, um soldado alemão, na época da ocupação nazista na França.
E é nesse ponto que, de simples história de amor, Hiroshima se transforma em muitos filmes em um só. Pode contar apenas a paixão aterradora que acomete os dois. Ou pode contar algumas outras histórias, sempre vistas sob o ponto de vista da memória, começando pelas lembranças da Segunda Guerra Mundial. “A presença dela em Hiroshima a faz lembrar de Nevers, sua cidade natal. É a mesma Guerra, mas em pontos diferentes do planeta. Enquanto os EUA matavam os japoneses com a bomba, a Alemanha oprimia a França”, sugere Hatoum.
O dramático desenrolar dos acontecimentos quase leva a atriz francesa à loucura. Ela estava disposta a fugir com o soldado alemão, mas ele acaba sendo morto pela resistência francesa, exatamente no dia em que a cidade é libertada. A atriz é internada como louca e vê da única janelinha do porão onde fica confinada a retomada do poder pelos franceses. Aos poucos, seus cabelos, que haviam sido raspados, voltam a crescer e, devagarzinho, ela recupera a sanidade, mas aí já longe de Nevers, em Paris. “Podemos brincar com o nome da cidade. Em inglês, Nevers seria o plural de nunca, seria uma espécie de nuncas”, propõe Sérgio Rizzo, referindo-se ao fato de a atriz nunca mais voltar a Nevers, dos alemães não voltarem à França e de uma guerra como aquela não voltar a acontecer.
Memórias de Hiroshima
Já sobre a memória de Hiroshima, da bomba e de seus terríveis efeitos, o filme também traz detalhes bem ricos. Logo no início, a obra revela um diálogo do casal na cama. Enquanto seus corpos são mostrados entrelaçados, imagens da guerra e das lembranças da atriz sobre o que aconteceu em Hiroshima naquele agosto de 1945. O público pode ver os mortos, os corpos deformados, as queimaduras, as crianças chorando, os olhos cegos. É quase um documentário, com imagens reais, construído a partir das supostas recordações da atriz francesa. “Enquanto ela se recorda, seu amante japonês insiste em dizer que ela não viu nada daquilo”, completa Rizzo.
Em um outro momento crucial do filme, depois de saírem para jantar, o arquiteto japonês pede para a atriz francesa contar a história de seu primeiro amor. Entre copos de cerveja, o arquiteto assume o papel do soldado alemão morto e, aos pouquinhos, a atriz vai revelando sua paixão, permeada pela história da França na Segunda Guerra. Alguém na platéia pergunta porque a atriz e o arquiteto se referem à fase de loucura dela em Nevers com a repetição do termo “maldade”. Hatoum responde: “Ela se apaixona pelo inimigo. É uma francesa apaixonada pelo invasor. É desonrada por ele, assim como a França o é pela Alemanha. E ela – ou elas – não serão perdoadas nunca por isso. Daí porque a culpa e a expressão quase religiosa da maldade”. E essa é uma das chaves para o entendimento político de Hiroshima, meu amor. “Engana-se quem pensa que é um filme romântico de amor, ou um relato de guerra, ou um romance que gera um filme cheio de literatura”, alerta Rizzo. “É tudo isso e mais um filme político. Existe uma crítica política e ideológica à postura francesa frente à invasão alemã. E isso acontece em termos históricos e pessoais, psicológicos”.
Os dois palestrantes encerram suas falas aproveitando a pergunta de um espectador, que diz não entender bem porque a atriz repete tantas vezes para seu amante japonês que tudo vai recomeçar, que nada vai ter fim. “Do que eles estão falando se a Segunda Guerra acabou?”, questiona. Milton Hatoum adora a provocação e diz que filme bom é aquele que faz a gente a gente pensar, questionar e que continua sendo atual mesmo depois de 46 anos. “Em primeiro lugar, as guerras de amor estão sempre aí, não acabam nunca, e a guerra entre os homens também não finda”. E Rizzo completa: “Basta pensarmos na França atual, cheia de conflitos entre os jovens imigrantes e o governo – que os chama de ‘canalhas’ –, ou mesmo na constante produção de armas, mesmo depois do horror que foi a Segunda Guerra”.
Por isso é que o grande mérito de Hiroshima é sua linguagem, capaz de unir amor e história e de promover um encontro muito feliz entre os dramas pessoais e os dramas históricos. E isso é o que faz da obra de Resnais um sucesso de crítica e de público, seja em 1959, com recorde de audiência e a conquista do Oscar de melhor roteiro, seja em 2005, em plena quinta-feira, há dois quarteirões da Avenida Paulista, e quando todos já estavam com as atenções voltadas para as compras de final de ano. Para quem não pôde participar, uma boa notícia: o filme deve ser em breve lançado em DVD, com uma série de opções extras imperdíveis, como uma entrevista com o diretor Alain Resnais e anotações da escritora Marguerite Duras sobre o roteiro do filme.