Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Luis Inácio Lula da Silva no Brasil, Nestor Kirschner na Argentina, Hugo Chavez na Venezuela, Tabaré Vásquez no Uruguai, Michelle Bachelet no Chile e Evo Morales na Bolívia – isso sem contar o líder cubano Fidel Castro. E essa equipe, já bastante respeitável, pode ainda em breve ganhar os reforços do peruano Ollanta Humala, do nicaragüense Daniel Ortega e do mexicano Andrés Manuel López Obrador, pintando de vermelho a maior parte do mapa da América Latina e promovendo uma guinada à esquerda na trajetória política do continente.
“De fato, há um ciclo de eleições que começou no final do ano passado e que se encerra em abril de 2007, e onde a chamada esquerda tem sido vitoriosa”, reconhece o geógrafo e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Nelson Bacic Olic. No entanto, o especialista em relações internacionais alerta: depois da queda do Muro de Berlim, uma das mais complexas indagações contemporâneas é ‘o que é ser de esquerda’. Para ele, o desembarque simultâneo, e democrático, de diversos governos progressistas no continente latino-americano é significativo e marcado por afinidades ideológicas, mas também temperado por conflitos internos e demandas locais. “Nesse sentido, é um bloco bastante heterogêneo”, define.
Segmentos da esquerda
Ao estabelecer as diferenças entre os diversos projetos que estão sendo colocados em prática pelos diferentes países, Bacic afirma que um primeiro segmento, que chama de esquerda clássica e tradicional, é representado pela Cuba de Fidel. Apesar de ser uma ditadura e de resgatar o turbulento período da Guerra Fria, continua atuando como exemplo e referência e despertando admiração. É o desafio mais duradouro e persistente à tentativa norte-americana de construção de hegemonia no continente. A grande questão, destaca o especialista, é saber o que acontecerá com a ilha depois da morte de Fidel. “Não há sucessor à altura”, decreta.
O segundo grupo seria formado pela Venezuela de Chavez, dona de uma das maiores reservas de petróleo do planeta e uma das principais exportadoras do “ouro negro” para os EUA. Ao adotar um discurso anti-globalização e de enfrentamento com os norte-americanos, Chavez transformou-se em um dos grandes ícones da América Latina. “Ele é fruto de um processo democrático e tem o apoio das camadas pobres da população, já que as elites venezuelanas, hoje bastante divididas, não conseguiram equacionar os graves problemas sociais do país”, afirma.
De acordo com a análise do geógrafo, a Bolívia de Evo Moralez aparece formando uma terceira vertente, já que o discurso socialista junta-se às demandas e carências da maioria indígena que forma a população do país. “É o primeiro nativo a assumir o poder, depois de séculos de desmandos e de domínio das minorias brancas”, reforça. Segundo Bacic, essa é uma tendência que pode contaminar outras nações andinas, como os vizinhos Peru e Equador, onde a presença indígena é também muito evidente.
Eleito com o discurso da mudança, Lula seria, no Brasil, o representante de um quarto bloco. “A prometida ruptura, principalmente em relação à política econômica, não aconteceu, e temos, de certa forma, uma continuidade do modelo neoliberal”, admite o especialista. A expectativa criada em torno da eleição de um legítimo representante dos trabalhadores, no maior país do continente, e sustentada por um dos principais e mais organizados partidos de esquerda do planeta gerou uma intensa expectativa. E a frustração causada por promessas que não foram cumpridas é uma das responsáveis, segundo Bacic, por Hugo Chavez ter se transformado na grande liderança de esquerda da América Latina, superando Lula. “Chavez soube ocupar esse espaço. É mais midiático e tem menos contradições”. No entanto, adverte o geógrafo, engana-se quem pensa que Lula é carta fora do baralho da próxima disputa presidencial brasileira. “Ele tem cacife, está vivíssimo e é um candidato com força política e eleitoral formidável”.
Próximo de Lula, o professor da PUC-SP encaixa a recém-eleita presidente do Chile, Michelle Bachelet. Pertencente ao Partido Socialista, mas apoiada pela Concertación, uma ampla aliança de centro-esquerda que governa o país desde o fim da ditadura do general Augusto Pinochet, Bachelet não deve promover grandes mudanças, principalmente na área econômica, já que, nesse segmento, o Chile é um dos países mais estáveis da América Latina. “Mas é claro que a vitória dela tem um componente simbólico e político importantíssimo. É uma mulher, divorciada e perseguida pelo regime militar, que vence em um país católico e conservador. É uma novidade absoluta”. Por fim, Bacic destaca a Argentina, uma quinta vertente desse ciclo de esquerda. Ele lembra que os argentinos foram os mais aplicados alunos das políticas ortodoxas defendidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o que levou o país a bater no fundo do poço, no final dos anos 1990. “É uma ruptura diferente, de caráter nacional-desenvolvimentista, que tinha de combater uma crise de gravíssimas proporções. Por isso, Kirschner tem de dar respostas à esquerda para a população, mas acaba se chocando com seu principal parceiro comercial – o Brasil”.
Esgotamento do neoliberalismo
Uma das causas apontadas pelo geógrafo para esse ciclo de presidentes progressistas eleitos democraticamente no continente é o esgotamento do modelo neoliberal. Bacic lembra que, a partir dos anos 80 e 90, todos os países da América Latina, com maior ou menor intensidade, enveredaram pelos caminhos do neoliberalismo, alcançando resultados econômicos relativamente bons – a estabilidade das economias, por exemplo –, mas acentuando as desigualdades sociais e as distâncias que separam os ricos dos pobres.
Mas o especialista alerta: mesmo destoando do discurso único do neoliberalismo e escapando de sua cartilha, os governos eleitos certamente não poderão colocar em prática tudo aquilo que gostariam de desenvolver. “A globalização é uma realidade, e os mercados funcionam de forma integrada”, lembra. Ele cita como exemplo o caso boliviano. A principal riqueza do país é o gás natural – e, se os contratos já estabelecidos com parceiros externos forem rompidos, o país terá sérias dificuldades para administrar suas demandas internas. “Essa é a equação que precisa ser resolvida”.
E os EUA?
E os Estados Unidos, hiper-potência do continente, como estão encarando essa guinada à esquerda da América Latina? Segundo Bacic, os norte-americanos não parecem muito preocupados com esse movimento, ao menos nesse momento. “O grande projeto político deles é a guerra contra o terror. Por isso, as atenções estão todas concentradas para conflitos como o do Afeganistão e o do Iraque. A América Latina passa a ocupar uma posição secundária na política externa dos EUA”.
Mas, ele admite, alguns países da região inspiram cuidados e atenções mais evidentes. O México, por exemplo, é uma dos grandes parceiros comerciais dos EUA – isso sem falar na fronteira entre os dois países, de quase três mil quilômetros, e uma porta de entrada para imigrantes ilegais que os norte-americanos pretendem que continue fechada. Outro aliado estratégico no continente é a Colômbia, por conta da atuação do narcotráfico e da guerrilha de esquerda. Nesse caso, o presidente Álvaro Uribe, conservador, representa um porto-seguro, e parece imbatível nas próximas eleições. Em relação ao Brasil, as preocupações dos EUA também parecem ser de natureza mais intensas. “Ainda prevalece a antiga idéia de que, para aonde o Brasil caminhar, o restante da América do Sul também irá. Esse cenário oferece ao país a possibilidade de tirar proveito de uma situação privilegiada, e nem sempre o EUA conseguem impor suas vontades e são obrigados a negociar e até mesmo a ceder”.
Sobre a possibilidade de integração continental, promovida pelos governos de esquerda, Bacic garante que esse processo já está acontecendo. Ele cita como exemplos o ingresso da Venezuela no Mercosul e iniciativas nas áreas de infra-estrutura rodoviária e energética, além do desejo, liderado pelo presidente Hugo Chavez, de interligar também veículos de comunicação da América do Sul, com foco específico na proposta de organização de uma rede de televisão comum aos diversos países. “Não se trata de uma integração nos moldes bolivarianos, como muitas vezes pretende Chavez. Isso é mais retórica. Mas, certamente, é um processo já em marcha, que vai oferecer ao bloco mais força em negociações e em conflitos futuros, principalmente em relação aos Estados Unidos”, afirma Bacic. “Claro que qualquer negociação com os EUA será sempre assimétrica, mas, juntos, esses países teriam mais força e voz ativa”, finaliza.