Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
“Se fosse só a migração de um suporte para outro, como aconteceu da fita cassete para o CD, seria fácil. Mas a passagem da TV analógica para digital é uma discussão muito mais profunda”. Foi dessa forma que Diogo Moysés, coordenador da ONG Intervozes – que defende a democratização dos meios de comunicação –, iniciou sua fala, em debate recentemente realizado pela Faculdade Cásper Líbero sobre a HDTV. Eventos como esse, com a participação de pesquisadores e especialistas, estão pipocando nas últimas semanas, por conta da iminência da escolha do sistema que deverá nortear a implantação da TV de alta definição no Brasil.
No entanto, assim como também ressaltou Moysés, a discussão não pode ser reduzida aos parâmetros técnicos. Porque, embora a grande imprensa insista em limitar o debate a uma espécie de Fla-Flu entre o sistema japonês e o sistema europeu de TV digital, a adoção da modulação que vai comandar a HDTV no país envolve nada mais nada menos que as dimensões política, econômica, industrial, social e cultural.
A TV se aproxima do computador
Para resgatar essa história, é preciso voltar ao ano de 1998, quando o mundo todo começou a discutir um novo modelo de televisão, que não mais seria transmitido por ondas de radiação eletromagnética – como conhecemos hoje – e sim por informações digitais, os famosos bits de computador, cenário muito parecido com o que acontece hoje com a internet.
Só para clarear, a TV que temos hoje tem uma resolução de imagem de 255 linhas, enquanto a digital terá 1080 linhas. E, na ponta dessa evolução tecnológica, está a TV digital de alta definição, a High Definition Television, ou simplesmente HDTV – que terá cerca de 2 mil linhas de definição. Um ganho brutal na qualidade da imagem. Mas não é só isso. O fato de ser digital permite ainda que a TV mude de status, ou seja, que deixe de ser uma mera veiculadora de programação e passe a ser uma prestadora de vários serviços.
Entre eles, venda de produtos, t-mail (o e-mail pela tv), acesso à internet. Ou seja, o telespectador deixa de ser passivo e poderá ser ativo em uma série de situações. E tem mais: por conta de um sistema de compressão de sinal chamado Mpeg 4, a freqüência de 6MHz que os canais ocupam atualmente, transmitindo uma única programação, poderia ser repartido em quatro. Assim, cada canal poderia ter quatro programações simultâneas e distintas.
A essas mudanças, devem ser somadas outras transformações, que terão de acontecer para que chegada da TV digital ao Brasil se concretize. “Da indústria que faz o equipamento de gravação, passando pela mão de obra que faz a captação e a edição das imagens, chegando ao cenário e à maquiagem, até desembocar no posicionamento da TV na sala de estar, todo mundo vai ter de se adaptar”, avisa o professor da Faculdade Cásper Líbero, Maurício Donato. Ou seja, é uma transição lenta, gradual e delicada, porque envolve uma série de vertentes.
Qualidade da imagem
O alerta de Donato diz respeito a todas as facetas da um produto audiovisual, da concepção à recepção. De cara, quando a TV digital chegar, vai-se notar a diferença da tela. Hoje, a TV tem um formato 4X3, é quase quadrada. A digital e a HDTV terão uma tela no formato 16X9, ou seja, retangular e com as proporções do cinema. E em que isso muda nossa forma de ver os programas? Segundo o professor da Cásper Líbero, como o espaço vai crescer, também o posicionamento dos objetos na tela vai mudar, e o telespectador vai sentir mais aquela amplitude e os super closes que já está acostumado a encontrar na telona do cinema.
Outra mudança bem visível é a qualidade da imagem. Numa TV digital, ela fica quase dez vezes mais nítida que na TV analógica, por conta do aumento na quantidade de linhas de definição. As cores ficam mais vivas, bem distintas, e os detalhes, mesmo os menores, saltam aos olhos. “Costumamos dizer que na TV normal a gente vê a perna do jogador de futebol. Na digital, a gente vê a marca do meião e, na HDTV, vai dar para ver os pêlos!”, brinca Maurício.
Mas tanta nitidez pode trazer alguns inconvenientes, principalmente para as emissoras. O modo como o cenário é feito atualmente, para cobrir uma tela de 21 polegadas, vai precisar mudar. “Primeiro ele precisará crescer, para ocupar telas maiores. Depois vai precisar ser muito mais bem acabado. Qualquer borrão na pintura vai aparecer nitidamente na tela”, conta Donato. O mesmo vai acontecer em relação à maquiagem, ao figurino, e a todos os detalhes que envolvem a gravação de um programa. O que hoje é considerado pequeno vai requerer muito cuidado no futuro. Tudo para fazer jus à definição da imagem.
Junto com isso, deve acontecer uma mudança nos serviços oferecidos pelas emissoras. A TV digital não é apenas para ser assistida passivamente, como fazemos hoje. Diogo Moysés levanta uma série de possibilidades que vêm por aí: “a TV digital anda em parceria com os computadores, então muito do que fazemos hoje pela internet vai ser possível fazer pela TV”. Entre as novidades, será possível acessar e-mails, usando o controle remoto, acessar sites e fazer compras. “Na cena da novela, entra a mocinha com um vestindo lindo, vermelho e esvoaçante. Imediatamente começa a piscar uma setinha no canto da TV com a frase ‘Clique Aqui’”, imagina Moysés, “e o telespectador que tiver TV Digital compra pelo controle remoto, ou até insere o cartão de crédito na TV e compra”, completa.
Diferentes modelos
Todo esse potencial de rupturas começou a ser discutido mais intensamente a partir de 1998, quando o governo FHC recebeu propostas de vários países do mundo sobre as diversas possibilidades de sistemas de implantação e de transmissão de TV digital. Dos Estados Unidos, veio o ATSC. O Japão mandou o ISDB, e a Europa, o DVB.
Diante das três possibilidades, técnicos e especialistas estudaram as modulações, mas não conseguiram chegar a uma conclusão precisa sobre qual seria a mais vantajosa para o país. Como não foi possível alcançar o consenso, em 2003 o governo Lula implantou um consórcio brasileiro para pesquisar, debater e definir o sistema brasileiro de TV digital.
Há três anos, “mais de 1200 pesquisadores de 75 universidades e instituições de pesquisas estão trabalhando na criação do SBTVD, um sistema genuinamente nacional de TV digital”, explica o professor da Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie, Gunnar Bendicks, que faz parte desse consórcio. Depois de muito estudo, o que se conseguiu foi um padrão de modulação (que nada mais é que o empacotamento e a transmissão das informações digitais) eficiente, barato e que dialoga com todos os padrões do mundo.
Padrão brasileiro de TV digital
Pausa para pensar: se o Brasil desenvolveu um padrão próprio de TV digital, não seria óbvio que se adotasse esse sistema no país? Ou, em outras palavras, por que – se temos o nosso próprio padrão – estamos dividindo a escolha entre dois parâmetros estrangeiros? Segundo o professor Gunnar, o SBTVD, embora seja eficiente e dialogue com os demais sistemas do mundo, não é completo e, portanto, “essa escolha a que mídia está se referindo diz respeito ao subsistema, ou ao sistema que vai complementar o nosso, caso ele venha a ser adotado”. Para um sistema de TV digital ser completo, ele tem que ter quatro características: “portabilidade, ou seja, tem de funcionar em TVs com ou sem fio; flexibilidade, para se adaptar às condições de cada lugar; mobilidade, que garante a recepção em celulares, por exemplo; e interatividade, que dá ao usuário o poder de agir sobre a TV”, conta Maurício Donato, que está concluindo o mestrado justamente sobre a HDTV no Brasil.
Mas, mesmo que incompleto, há, então, um modelo nacional desenvolvido aqui. E por que ele simplesmente não aparece nas matérias dos jornais? “Não é curioso?”, reforça Diogo Moysés, que é radialista e pós-graduado em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP). Ele completa: “a grande questão é que a escolha do sistema passa por questões políticas muito sérias. A HDTV acabou entrando como uma forte moeda de troca até para as eleições deste ano”.
O que Moysés sustenta é que os diversos atores desse processo estão divididos e que a defesa de um ou outro padrão de modulação depende dos interesses desses setores. Vamos a eles. Os pesquisadores e a comunidade científica, apoiados pelas ONGs ligadas à democratização dos meios de comunicação, defendem um sistema genuinamente nacional, desenvolvido e implantado aqui. O SBTVD, portanto. Para esse grupo, a escolha mostra um projeto de país, uma aposta no desenvolvimento nacional.
A indústria de eletro-eletrônicos, constituída basicamente por empresas européias como a Siemens, prefere o DVB europeu, justamente porque são empresas européias e já fazem parte do consórcio que montou o DVB. O curioso é que nesse grupo encontra-se também a Gradiente que, apesar de brasileira, entende que o diálogo entre peças e componentes da indústria de eletro-eletrônicos é um fator de tremenda importância. Há também o conjunto das empresas de telecomunicações, as teles. Para essas, também o DVB é o sistema ideal, porque prioriza a multi-programação, já que um dos canais renderia dividendo para essas empresas.
Seria o chamado canal de retorno, ou seja, seria através dele que as informações enviadas pelo telespectador chegariam às emissoras. Digamos que o cidadão queira comprar um jogo de futebol, ou um produto qualquer que apareça na tela. Ele enviaria a mensagem, que caminharia por esse canal de retorno, até chegar à emissora. A circulação de informações por esse canal não seria gratuita. As teles cobrariam para liberar o sinal. A pergunta é: quem pagaria por ele? A emissora ou o telespectador? Qualquer que seja a resposta, a perspectiva de faturar com ele é grande e interessa a esse setor da economia.
Por fim, as emissoras de TV – lideradas pela rede Globo – encampam o padrão japonês. Faz sentido: em vez de priorizar a multi-programação, como fizeram os europeus, os japoneses concentraram esforços na qualidade da imagem e em um modelo de exploração econômica – viável graças aos serviços oferecidos e aos atores responsáveis pelo controle da transmissão. É um cenário que agrada muito mais aos radiodifusores brasileiros, em virtude das vantagens econômicas que pode trazer. Maurício Donato conta que, nos próximos anos, o volume financeiro direta ou indiretamente associado à TV digital deverá atingir os 30 bilhões de dólares. E as emissoras não deixariam de exigir seu quinhão nesse montante.
Democratrização dos meios de comunicação
Há ainda outros motivos que explicam essa preferência. De acordo com Diogo Moysés, as emissoras temem a programação plural porque têm medo das conquistas que os movimentos pela democratização dos meios de comunicação podem alcançar. Ele lembra que a bandeira do Intervozes sempre foi o direito à comunicação, ao acesso aos meios de comunicação e a uma programação diversa e de qualidade. Com a proximidade da implantação da TV digital, “vamos começar a cobrar que se cumpra o decreto presidencial de 2003 – que institui o SBTVD – que diz que a principal proposta da TV digital é promover a inclusão social, a diversidade cultural do país e a língua pátria, por meio da democratização da informação”, explica.
Com esse discurso, o coordenador da ONG quer dizer que as entidades vão brigar pela multi-programação, porque ela promoveria uma maior representação do país na TV. “Em vez de quatro Globos, propomos que a emissora comercial também carregue em sua freqüência canais comunitários, educativos, regionais, para dar voz a mais gente”. Ou seja, o que as emissoras do Brasil não querem é dividir seu espaço com as menores.
Tem mais: o modelo europeu ainda prevê uma novidade, que é a figura do operador de rede. O professor Gunnar explica: “Aqui no país, a emissora é dona da produção e da transmissão da programação. Na Europa, e isso aparece no sistema europeu de TV Digital, não. Lá a emissora cuida da produção. O responsável pela transmissão é o operador”. E Diogo Moysés completa: “A briga é porque esse operador de rede é uma entidade do governo, que garantiria sinal igual e alcance igual para todas as emissoras, o que faz arrepiar a Globo”.
Em outras palavras, a rede de comunicação mais influente do país ocupa essa posição também porque detém a melhor tecnologia para fazer chegar seu sinal, com boa qualidade, até os lugares mais distantes do país. O operador de rede garantiria isonomia a todos os canais, dos comunitários aos comerciais, passando pelos educativos e experimentais. Objetivos nobres quando se trata de uma concessão de um espaço público. Para concluir, ao defender o sistema japonês, a emissora passa a preferir a transmissão de alta definição e, para isso ser possível, ela teria que usar toda a banda de 6 MHz que possui. E, se isso acontecer de fato, “o espaço físico que corresponde a essa freqüência, finito, acabaria, ficaria saturado”, comenta Donato. Com o espectro todo ocupado, “não sobraria espaço para mais ninguém entrar, ou seja, ninguém novo para concorrer. E isso é bem interessante para as emissoras”, traduz Diogo Moysés.
Ano de elições
Há um último agravante nessa novela: estamos em ano de eleição. Nesse ponto, os três entrevistados concordam com a temeridade que é fazer uma escolha como essa em tempos de disputa eleitoral. Donato explica que o Ministro das Comunicações é uma figura bastante importante e influente nesse cenário e que, ao que tudo indica, já se decidiu pelo padrão japonês. “Hélio Costa é um homem da Globo, foi um repórter muito conhecido e respeitado na casa. Visivelmente está defendendo os interesses da emissora”. A opinião é reiterada por Moysés, que vê risco de chantagem. “Chantagem mesmo com o governo. Em tempos de eleição é uma bênção contar com a Globo como aliada. Qual a escolha que pode ser ponderada e equilibrada, com uma espada dessa sobre a cabeça?”
Assim, até que a Presidência da República e a Casa Civil decidam como será a TV digital no país, a briga segue esquentando entre os diversos setores envolvidos. Enquanto isso, não podemos deixar de falar do maior interessado em tudo isso: o telespectador. Para a indústria e para as emissoras, quem está do lado de cá da telinha (que deixa de ser telinha, porque no formato digital ela passa a ter a proporção 16X9, enquanto a atual tem 4X3) para a ser um consumidor em potencial – do aparelho de TV, da caixinha de transcodificação do sinal, dos programas em alta definição que vão ser exibidos. Mas, para as ONGs como o Intervozes e, pelo menos em tese, para o governo, essa pessoa é portadora de direitos de cidadania.
Quando se limita a discussão da TV digital às questões tecnológicas, está se deixando de lado o cidadão que tem, garantido pelo decreto presidencial, o direito à inclusão social. Ou seja: se a TV custar 15 mil reais (podendo chegar a 5 mil num futuro próximo); se a set-top box, caixinha parecida com a da TV a cabo, que transforma o sinal analógico em digital, girar em torno de R$ 400,00; e se os softwares de acesso às informações digitais forem pagos, como o Windows, da Microsoft, por exemplo, qual é o acesso que o grosso da população brasileira vai ter à HDTV? Mais: se o governo decidir estabelecer um tempo fechado de transição do sistema analógico para o digital (10, 15, ou 40 anos), como ficarão os consumidores/cidadãos que não conseguirem fazer a troca em tempo hábil? Ou então, se, em vez de fixar um tempo, o governo determinar uma porcentagem de acesso – quando 98% da população tiver acesso à TV digital, por exemplo – como ficam esses 2% restantes?
Para Gunnar Bedicks, além da atuação do governo, espera-se uma atuação da inteligência científica brasileira na hora de cobrar adaptações. Ou seja, caso o padrão escolhido não seja o nacional, a comunidade científica que desenvolveu o SBTVD vai precisar se impor diante dos órgãos internacionais que regulam a implantação da TV digital no mundo e cobrar adaptações para o perfil brasileiro. Para Diogo Moysés, a briga terá vários cenários: “Não podemos permitir que, mais uma vez, o país tenha cidadãos de classe A, B e C. O direito à comunicação é para todos. Vamos acionar todas as instâncias, inclusive a Justiça, para garantir a isonomia entre emissoras e telespectadores”.
Por enquanto, resta esperar a decisão, já adiada três vezes pelo governo, e ficar atento para os impactos que essas mudanças poderão provocar nos diversos segmentos da sociedade.
Leia mais:
» Artigo sobre a TV digital na Wikipédia
» Sistema Brasileiros de TV Digital
» Proposta em debate no Ministério das Comunicações