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No vácuo de atuação do Estado, forças antagônicas disputam espaço na segurança pública

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo

O que era para causar espanto e até mesmo calafrios, pelo contrário, acabou trazendo sensação de segurança e bem-estar. Em vez de relembrar com repulsa e medo os tempos de ditadura militar, as pessoas sentiram-se tranqüilas para sair às ruas. No dia 03 de março, tropas do Exército, mais especificamente do Comando Militar do Leste, passaram a ocupar as entradas e saídas dos morros cariocas. Numa operação que as Forças Armadas chamam de Sufocamento, o que se buscava era recuperar dez fuzis e uma pistola que haviam sido roubados dias antes. “Uma operação gigantesca por tão poucas armas”, lamenta a psicóloga Cecília Coimbra, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ) – entidade que milita há mais de 20 anos na área dos direitos humanos. Dez dias depois, as armas foram encontradas, e o Exército começa a voltar para os quartéis, passando a fazer apenas operações pontuais nas favelas.

Os acontecimentos no Rio de Janeiro levantam uma série de reflexões a respeito da Segurança Pública, da atuação do Estado, do poder das Forças Armadas e da verdadeira situação dos morros cariocas, habitados por trabalhadores pobres e pelo tráfico de droga. Mas levanta, principalmente, o debate sobre sensações e percepções individuais a respeito da segurança coletiva, além de trazer à tona, com força, a discussão sobre como, depois de cerca de 40 anos, deixou de ser incômodo ou espantoso o fato de as Forças Armadas voltarem a utilizar o discurso da segurança nacional para justificar suas operações.

Cecília Coimbra conta que a origem dessa aceitação mora num discurso muito bem construído e repetido à exaustão pela imprensa e pelos formadores de opinião. “Baseados numa filosofia dos Estados Unidos, que sempre foi muito mais violento que o Brasil, eles pregam que o caos e a insegurança das grandes cidades só podem ser vencidos com atitudes enérgicas”. O Exército na rua é uma atitude enérgica? “Sim. Enérgica, triste e preocupante”, afirma. Segundo a vice-presidente do GTNM/RJ, é triste porque retoma um passado em que o Estado brasileiro precisou recorrer às Forças Armadas para garantir a ordem e a segurança nacional. E é preocupante porque as pessoas realmente passaram a acreditar que isso é uma solução.

Especialista em Segurança Pública, coronel do Exército e pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (NEE/Unicamp), Geraldo Cavagnari confirma que há tempos a população carioca vem pedindo e desejando ações como essas. Em 1992, durante a conferência Eco-92, o Exército fez uma espécie de policiamento preventivo nas ruas do Rio. E foi aplaudido. Entre 1994 e 1995, no governo de Nilo Batista, novamente as Forças Armadas foram para as ruas, numa operação batizada de Operação Rio. “Tivemos praticamente um teste para medir o alcance e a aceitação do Exército fora dos quartéis”, comenta Cecília. Dessa vez, não só a população, como também entidades da sociedade civil apoiaram a medida. O que vem acontecendo com os cariocas e brasileiros para apoiarem iniciativas extremas como essas?

Cavagnari explica que o Rio de Janeiro vive em permanente estado de alerta. Tiroteios, mortes e manifestações de violência por conta dos conflitos com o tráfico de droga tornaram-se constantes e isso “vai minando a confiança e a segurança das pessoas. Todo mundo tem medo de bala perdida, de passar por alguns lugares e de entrar nos morros”, conta. “Por isso, o Exército agir ali, localmente, traz um certo conforto, faz sentido”, completa.

Falta de credibilidade
O grande nó da situação é que, de acordo com o Estado Democrático de Direito, quem deveria ter esse papel de abafar a violência e garantir a segurança é a Polícia, e não as Forças Armadas. Em algum momento da história, a polícia civil e a polícia militar deixaram de cumprir esse dever e “seja por corrupção ou incompetência, já não transmitem credibilidade e tranqüilidade para a população”, afirma Cavagnari. Cecília prossegue o raciocínio dizendo que é preocupante ver os governos estadual e federal e a população transferindo essa confiança para o Exército. “Porque as Forças Armadas têm outro papel, outra função no Estado. Não são polícia, não deveriam ficar reprimindo crime. Isso é papel da polícia”. O especialista da Unicamp entende essa visão como um certo exagero. “Os soldados e os oficiais não acham que são policiais. Eles realizaram uma operação pontual. Claro que mostraram força e poder, mas não querem ocupar o lugar de ninguém”, comenta. Segundo ele, o Exército não poderia ficar quieto, sem responder a uma provocação como aquela. Armas foram roubadas, embaixo dos olhos dos militares, e isso precisava ser solucionado. Embora concorde que, em princípio, a tarefa de recuperar objetos roubados caiba à polícia, o pesquisador reforça que não dá para fingir que a corporação esteja funcionando a contento. Por isso, completa, o Exército precisou agir.

Cecília Coimbra receia exatamente isso. A opinião do GTNM é que as Forças Armadas só são vistas como solução porque ainda sobrevive no país o ideário militar da segurança pública. Ou seja, mesmo depois de 22 anos de terminada a ditadura militar, ainda é viva e forte nos brasileiros a sensação de que o Exército traz ordem e segurança nacional. “E isso preocupa, porque a gente vem lutando desde 1985 para mostrar que o Exército usou sua força para agir com autoritarismo e desmantelar a democracia brasileira, além de torturar e matar seus opositores. E parece que as pessoas esquecem”, coloca. Na opinião dos militares e do coronel Cavagnari, a situação é outra e pontual. Os militares não estariam querendo demonstrar forças para galgar espaços ou regalias, mas, insiste, estariam apenas respondendo a uma atitude grave. “Os soldados entraram lá, ocuparam os morros, sufocaram o tráfico e, quando as armas apareceram – mediante toda a pressão – eles bateram em retirada”, explica. Ou seja, o Exército estaria sim mandando um recado, mas para o tráfico de drogas, e não para o governo ou a população. Nenhum soldado raso ou oficial pensou diferente dessa perspectiva ou pretende tomar o poder, garante o coronel. Para completar, ele coloca que, se a população sente-se segura frente às ações do Exército, isso se deve a duas razões: “Com os soldados lá, o crime fica controlado, ou – pelo menos – vigiado de perto. Coisa que nem a polícia, nem outros aparatos do Estado fazem. E a segunda razão é que os militares são menos propícios à corrupção que os policiais”, propõe. No período de ocupação, segundo ele, o comércio de cocaína na cidade do Rio de Janeiro caiu 70%. Por isso, os militares entendem que, percebendo que o Sufocamento liquidaria com o mercado riquíssimo das drogas, os traficantes, sempre segundo a versão oficial, decidiram contar onde estavam as armas e, assim, puseram fim à ocupação. Ou seja, “a operação deu certo, a população apoiou e entenderam que a ocupação é uma solução para essa situação em que o Estado e Polícia não estão atentando”, defende.

Então a ocupação militar de zonas perigosas é uma solução? Cavagnari acredita que sim, quando o problema for pontual. Cecília Coimbra garante que não. Para ela, a solução é aquela já apontada um sem número de vezes: uma soma de atuação estatal e social nas localidades. Ou seja, oferecer à população dos morros cariocas aquilo que o Estado tem de garantir: educação, saúde, segurança, lazer, cultura, trabalho. “Resumindo: políticas públicas e a certeza de agentes de Estado competentes e incorruptíveis”. E nesse ponto os entrevistados concordam. Quando os agentes do Estado se deixam corromper, a população perde a crença no sistema democrático e nas instituições e é aí que o tráfico de drogas e o crime organizado encontram espaço para agir. Segundo Cavagnari, o tráfico funciona exatamente como um governo totalitário, em um micro-cosmo. “Eles têm o controle da população, sabem quem é quem, controlam os telefones, o comércio, a vida cotidiana. E têm uma justiça própria. Quem trai o tráfico, morre”. E, frente a um espaço usurpado como esse, a população do morro e do asfalto não tem como se defender. Ainda para o coronel, uma alternativa à participação do Exército na segurança pública seria somar um aparato eficiente de segurança pública às ações sociais que já existem nos morros – e que, segundo as entidades que gerenciam essas iniciativas, serviriam para despertar a consciência na população. Sem isso, a população continuaria obedecendo ao código do tráfico. A vice-presidente do Tortura Nunca Mais, no entanto, aponta ainda que os projetos sociais implantados nas favelas são paupérrimos e insuficientes e que a ação de organizações não governamentais não pode substituir a presença do Estado.

Por isso, a única maneira de tirar da cabeça das pessoas que o país está em guerra civil e que há um inimigo público a ser combatido com ações de guerrilha é, de acordo com Cecília Coimbra, treinar os agentes do Estado a tratar os pobres com igualdade de direitos e não como uma ameaça. “É preciso repudiar a política da criminalização da pobreza, onde todo pobre é visto como perigoso em potencial. A presença do Exército é inspirada na doutrina de segurança nacional da ditadura militar, que está associada à política de tolerância zero”, afirma. “Se essa política for percebida e paulatinamente desmontada, os servidores estatais que lidam com os campos dos Direitos passarão a tratar o pobre de outra maneira. Do professor ao policial”, sugere. E, se isso for multiplicado, a idéia chegará à população em geral, porque vai passar pelos serviços públicos, pela imprensa, pelos formadores de opinião. “No dia em que o pobre for tratado como parte integrante da sociedade e não como um perigo, essa questão da segurança pública deixará de ser importante”, sugere.

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