envie por email 

Entrevista com Bernardo Galvão, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz

Faz 25 anos que o mundo conhece a AIDS. Depois de tanto tempo, como o senhor analisa a doença?
A história da Aids mostra o grande desenvolvimento científico e tecnológico do mundo. Em 1981, a doença apareceu e, entre 1983 e 1984, o agente, as vias de transmissão, os testes, os diagnósticos e todas as informações importantes sobre a síndrome já tinham sido identificados no mundo todo. Essa foi a contribuição da Ciência e da Tecnologia para o conhecimento e o controle da doença. Foi um momento muito bom de desenvolvimento das pesquisas. Sem isso, a Aids teria realmente virado uma pandemia.

E porque esse arsenal todo foi usado? Por que a AIDS motivou uma reação tão grande e eficiente? Afinal há outras doenças tão ou mais graves, descobertas há anos, que não têm esse tratamento. Por que isso acontece?
A Aids, desde seu início, atingiu indivíduos de classe média e alta, além de artistas e formadores de opinião. Além disso, ela apareceu como epidemia primeiro nos Estados Unidos e na Europa. Isso tudo significou que a doença atingia gente com poder de tomar decisão, gente que podia fazer diferença no uso do arsenal de ciência e tecnologia para combater o inimigo. As doenças de pobre e de países subdesenvolvidos não provocam uma reação assim e, por isso, passam muito mais tempo sendo ignoradas. Além disso, no caso da Aids, tanto a comunidade científica quanto a sociedade organizada perceberam rapidamente que o combate deveria ser imediato e eficaz. Caso contrário, a doença se alastraria com muita velocidade pelo mundo, virando uma pandemia. O tipo de gente infectada facilitava muito isso. Gente que viajava pelo mundo todo e poderia levar a doença de um canto para o outro do planeta.

E aqui no Brasil, como foi a chegada da doença e as primeiras reações?
Aqui também a doença atingiu de imediato gente de classe média e alta, além de artistas e formadores de opinião. Basta lembrar do Henfil, Betinho, Cazuza e Renato Russo. Atingindo gente assim, não dava para fingir que o problema não estava acontecendo. O primeiro caso do Brasil é de 1980, mas só foi oficialmente diagnosticado em 1982. A partir do primeiro, vários outros vieram. E, nessa época se destaca a atuação do Dr. Paulo Teixeira, de São Paulo [Teixeira ajudou a fundar e coordenou o Programa Estadual de DST/AIDS de São Paulo, mais tarde adaptado e implantado nacionalmente. Até hoje é referência no tratamento da doença]. Foi aí que o Departamento de Imunologia da Fiocruz do Rio de Janeiro foi chamado a acompanhar alguns casos de doentes. Casos muito sensíveis e tocantes, com pais desesperados, perdendo os filhos para aquela doença desconhecida e sem tratamento. Ficamos muito sensibilizados com aquelas histórias e resolvemos atuar verdadeiramente.

Ou seja, de cara o Brasil passa a tratar a AIDS como um problema de saúde pública.
Exatamente e isso é muito importante porque coloca as pesquisas no primeiro plano de importância. A gente então começa a acompanhar os pacientes brasileiros. Em 1983, o grupo francês, do Instituto Pasteur, liderado por Luc Montagnier, isola o vírus e, simultaneamente, o grupo de Robert Gallo, dos Estados Unidos, também consegue a façanha. Essa co-descoberta causa briga e polêmica até hoje. Mas o fato é que em 83 o vírus é isolado. E, entre 83 e 84, todos os países de primeiro mundo conseguem fazer o mesmo. Nós aqui no Brasil também estávamos tentando isolar e estávamos recebendo propostas de pesquisa. Mas eram pesquisas predatórias. Os grupos estrangeiros só queriam vir aqui, tirar o sangue, e levar para estudar lá fora. Não eram pesquisas de colaboração e, frente a um problema como esse, pesquisas só poderiam ser feitas em colaboração. Resultado: não fizemos parcerias e atrasamos em quatro anos o isolamento do HIV, que foi feito só em 1987.

Ficamos muito para trás com isso?
Não, porque outras tarefas muito mais importantes que o isolamento do HIV estavam sendo realizadas. Em 1985, tivemos acesso a uma cultura de HIV. E aí começa o verdadeiro sucesso do enfrentamento à Aids no país. Naquele ano, os cientistas Hélio Pereira e Peggy Pereira estavam se aposentando e voltando ao Brasil depois de anos na Inglaterra, terra dela. Eles tinham forte ligação com o país porque Hélio era brasileiro e alguns dos filhos do casal também. Ao voltarem aqui, então, trouxeram a garrafinha com a cultura de vírus. Trabalhamos juntos por um bom tempo. E foi a partir da cultura presente na garrafinha que desenvolvemos o sistema brasileiro de diagnóstico sorológico do vírus HIV. Transformamos o laboratório do Departamento de Imunologia da Fiocruz numa fábrica de imuno-fluorescentes, situação que possibilitou detectar o vírus nas amostras de fluidos corporais.

Esse foi o pulo do gato, ou melhor, o gênio da garrafa do Brasil.
Exatamente. Ter um sistema de diagnóstico preciso e brasileiro foi um grande salto. Porque até então não havia como detectar o vírus e conseguir encontrá-lo salvou muitas vidas.

É o caso da transfusão de sangue?
É. Até aquele momento, embora a gente excluísse dos doadores aqueles que vinham dos grupos de risco, ainda assim a triagem era muito falha. Porque já ali donas de casa podiam estar sendo contaminadas por seus maridos e elas não seriam barradas na triagem da doação de sangue. Era um sistema cheio de discriminação, que excluía muita gente. Com o diagnóstico sorológico, isso foi ajustado. Mas é importante lembrar que o isolamento do vírus, em 1987, também foi extremamente importante e fruto de um esforço genuinamente nacional. Abrimos mão de parcerias com institutos de fora para garantir um processo vantajoso para o país e isso foi conquistado.

E o que a gente vê neste percurso de 1987 para cá? Já sabemos como era a epidemia naquele tempo. Como ela foi se transformando até assumir as características que tem hoje?
A epidemia daquele tempo tinha as características que falei aqui no ocidente. Na África, ela se mostrou de um outro jeito logo no começo. Por isso é importante lembrar que o combate também só foi aquele arsenal de guerra aqui no ocidente, liderados por Estados Unidos e Europa. Lá na África, sempre foi e é muito mais grave, até hoje. Se aqui era uma doença de ricos, brancos e artistas, lá sempre foi de negros e pobres. Ou seja, uma condição que não faz ninguém querer agir, combater, resolver. Mas voltando. Por aqui era uma epidemia branca, rica e homossexual no início. Pouco a pouco, foi alcançando outros setores da população. Chegou às mulheres, aos heterossexuais e aos mais pobres. Hoje o grupo mais sujeito à contaminação é o das mulheres heterossexuais. No início, a proporção de infectados era de 120 homens para cada mulher. Hoje chega quase a um para um. Outro dado grave é a mudança na classe social atingida pela enfermidade. Agora o HIV faz mais vítimas entre os pobres, o que é grave porque a pobreza retira da pessoa o acesso à informação, o direito à escolha, à proteção e até ao tratamento, porque ela – simplesmente – não sabe que existe e que ela tem esse direito. A informação não chega lá e, com isso, a transmissão continua. Nosso maior desafio hoje é fazer as informações sobre a Aids chegarem às pequenas e pobres comunidades. Lá está nosso grande trabalho. Porque a informação não chega, há uma série de preconceitos e tabus.

A sorte do Brasil é que, mesmo tendo virado doença de pobre, ela continua sendo tratada como doença de rico.
Perfeito. Como no início tinha esse status, tanto o combate como o tratamento precisavam atender a esse público. E isso se solidificou. São realmente impressionantes o olhar e a atuação brasileiros em relação à Aids. Até onde eu sei, só o Canadá tem algo parecido. Em 1997, foi instituída a terapia tríplice, conhecida popularmente como Coquetel, que fez cair assustadoramente o número de mortes, de infecções e de internações dos doentes de Aids. Desde aquele tempo houve uma mudança nos conceitos. Inicialmente quem tinha HIV era aidético, uma denominação cheia de preconceitos. Depois do coquetel, quem tem o vírus é chamado de HIV positivo, ou soropositivo. Mas ter o vírus deixou de ser sinônimo de ter a doença Aids. Ou seja, ser portador deixou de ser igual a ser doente.

Por isso hoje a gente pode dizer que a AIDS passa a ser uma doença crônica, mais parecida com o diabetes, por exemplo?
A Aids hoje, no Brasil, com esse nosso sistema de controle, é uma doença crônica e tratável. A qualidade de vida e a sobrevida dos portadores do HIV podem ser boas, tranqüilas, longas e saudáveis. E, por lei, hoje todo brasileiro tem direito ao tratamento gratuito. Contudo, nosso maior temor é: até quando isso será possível? Esse tratamento é caro. Muito caro. Até quando o governo vai conseguir bancar? Porque embora toda a política se volte para o combate a Aids, com campanhas e ações, o número de infectados continua crescendo. Então não sei até quando se terá dinheiro para isso. Nosso sistema de doação de sangue é um dos melhores do planeta. Não há mais risco de contrair HIV recebendo sangue no Brasil. Também as políticas de redução de danos – que pouco se divulga por medo de incentivar o uso de drogas – vêm conseguindo baixar o número de usuário de drogas injetáveis contaminados.

E por conta disso chegamos a uma nova geração de soropositivos, as crianças filhas dos primeiros doentes, meninos de 12, 13, 14 anos. Às vezes órfãos, às vezes não, mas que pensam seriamente no futuro. O que a ciência pode prever para eles?
É difícil dizer. É muito difícil, porque embora os países envolvidos em pesquisas continuem buscando a cura da doença, acredito que essa é uma realidade longínqua. O que se pode prever é que com o tratamento a qualidade de vida dessa garotada está quase 100% garantida. Os medicamentos já conseguem fazer sumir, ou adormecer, a carga viral desses jovens. Não chega a ser uma cura, mas é a garantia de algum futuro. E um futuro mais saudável.

Leia também
“A história da Aids mostra o grande desenvolvimento científico e tecnológico do mundo”


ver todas as anteriores
| 03.02.12
De onde viemos

| 11.11.11
As violências na escola

| 18.10.11
Mini-Web

| 30.09.11
Outras Brasílias

 

Atualize seus dados no SinproSP
Logo Twitter Logo SoundCloud Logo YouTube Logo Facebook
Plano de saúde para professores
Cadastre-se e fique por dentro de tudo o que acontece no SINPRO-SP.
 
Sindicato dos Professores de São Paulo
Rua Borges Lagoa, 208, Vila Clementino, São Paulo, SP – CEP 04038-000
Tel.: (11) 5080-5988 - Fax: (11) 5080-5985
Websindical - Sistema de recolhimentos