envie por email 

Documentário de MV Bill reacende a discussão sobre o tráfico de drogas

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo

No domingo, 26 de março, o programa Fantástico, da TV Globo, exibiu o documentário Falcão – os meninos do tráfico, dirigido por MV Bill. A apresentação contemplava pelo menos duas situações inéditas – além de ser o primeiro projeto do rapper, a emissora jamais havia dedicado mais de uma hora de sua programação para mostrar um filme independente. Para alguns especialistas, no entanto, a Globo errou na dose e exagerou na propaganda, transformando o filme em mais uma isca e peça publicitária para atrair audiência.

As alardeadas boas intenções foram contempladas de forma equivocada. “Esse tipo de auê desesperado com um problema sério como esse serve para muito pouca coisa”, explica a professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Marília Franco. Professora da pós-graduação e especialista em documentários, Marília conta que a proposta original de MV Bill certamente seria mostrar o problema das drogas no país de forma crua, pouco tratada, para que o público pudesse se sensibilizar e, quem sabe, agir e cobrar mudanças. “Seria uma perspectiva educativa e pedagógica”, sugere.

Missão que acabou sendo prejudicada quando o lançamento foi feito da maneira que vimos. “A Globo fez um grande estardalhaço, e vem sustentando o ibope com esse assunto há mais de três semanas. Repercutiu o documentário em todos os seus programas jornalísticos. E isso, em vez de conscientizar a população, a deixa inoperante”. É como se, ao tomar contato com o problema e perceber a grandeza e a gravidade dele, o espectador só conseguisse sentir-se culpado, deprimido. Trata-se do efeito anestésico: longe de conseguir agir, o cidadão imagina-se muito pequeno, acuado, “travado mesmo”, diz a professora.

Repercussão
Para surtir um efeito mais parecido com aquele desejado pelo rapper Bill, Marília acredita que teria sido mais significativo e eficiente trabalhar da forma como fez João Moreira Salles, diretor de Notícias de uma guerra particular. Nesse outro exemplo de documentário sobre o crime organizado e o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, o documentarista preferiu lançar o filme em circuito restrito de cinema, participou de festivais, deu entrevistas em vários programas de TV, rádios e em jornais, até chegar a lançar Notícias, recentemente, em DVD. “Pode ser que menos pessoas tenham assistido ao documentário todo, mas quem viu se sentiu mobilizado, motivado a fazer alguma coisa, e não num beco sem saída”, comenta a professora. Ela também destaca que o recorte escolhido pelo documentarista é o mais importante na hora de mobilizar as pessoas, principalmente porque o tráfico e todos os seus problemas já foram abordados abundantemente pela mídia. Nesse sentido, Marília defende que Falcão não ultrapassa a barreira do problema, ou seja, relata uma situação sem solução e não aponta saída alguma – fato que ajudaria a deixar os espectadores travados.

Marcelo Coelho, jornalista e colunista de cultura do jornal Folha de S. Paulo, enxerga outras possibilidades. Embora não discorde de Marília no que diz respeito a não sinalizar saídas, ele acredita que o filme de MV Bill pode fazer uma carreira bonita e importante por oferecer novos ventos ao cinema e à imprensa. Ele coloca que “Falcão traz a linguagem fragmentada do rap para o audiovisual”, ou seja, assim como o rap privilegia a letra, a palavra falada, as gírias, os sotaques, em vez da música, da melodia, esse documentário privilegia a fala dos personagens, em vez de fazer uso das imagens. E tem mais: a principal novidade é Bill ter deixado a cargo das ONGs e dos próprios envolvidos no problema a produção do documentário, cabendo à Globo apenas a edição. E o que isso tem de importante? “O modo como foi feito faz o espectador esquecer, por um momento, o ‘olhar externo’ e moralizador sobre o tema. É uma exceção interessante a ser explorada mais vezes, pois o modelo anterior --olhos chorando etc.-- certamente está esgotado”.

Ou seja, pode-se dizer que o público fica um pouco mais livre para ter opinião sobre o tráfico de drogas e sobre o envolvimento de crianças e adolescentes com esse universo, coisa que não é fácil de acontecer quando o assunto é tratado pelos programas padrões das emissoras. Para Coelho, a Globo, ao mostrar a questão dessa maneira, poderia desencadear, quem sabe, a convivência de dois modelos: “um jornalismo popularesco, altamente moralizante e com intervenções do apresentador, tipo Ratinho, e outro mais "ong", para um público sedento por esse formato”.

Voltando à repercussão obtida pela obra, não foram poucos os jornais, rádios e TVs que se dedicaram a analisar e debater o documentário. As opiniões foram as mais diversas, e variaram entre crítica ácida sobre a notável ausência das demais partes envolvidas no problema – como as vítimas e suas famílias, a polícia e o Estado – e a postura do diretor diante de fatos que ele teria presenciado.

O escritor Ferréz, por exemplo, uma espécie de porta-voz da periferia paulistana, em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, defende que MV Bill denigre a imagem da periferia, já que, no filme, parece que todos os moradores dos morros são bandidos, quando a realidade é bem diferente. Marília Franco entende que as críticas de Ferréz são muito pessoais, mas concorda que há algumas contradições não explicadas no filme de Bill. “A questão dos filhos aprendizes de traficantes, filhos de mães absolutamente dignas, é um dos pontos que deixam um nó na cabeça de quem assistiu. Quem sabe alguém não possa estudar e entender como isso é possível”. Marcelo Coelho também não concorda com a posição do escritor. “A idéia de que aquilo denigre a comunidade local é ridícula. O próprio Ferréz mostra a violência, a lei do cão, mas diz que quem faz o mesmo denigre a comunidade. Ele está longe de mostrar uma visão equilibrada da favela".

Contraponto
Outra questão apontada como falha em Falcão – e essa permeou as falas e os textos de uma série de especialistas – foi a falta de um contraponto. O documentário de MV Bill não abre espaço para as vítimas nem para o Estado. A professora da ECA diz que é bastante comum a imprensa especializada e os intelectuais brasileiros se queixarem disso, dessa falta de pluralidade. “Mas, ora, isso é só um filme, um projeto. Ele não tem que dar conta de toda a verdade. O diretor escolhe um recorte e vai nele até o final. E foi o que fez MV Bill”. O colunista da Folha completa: “Acho formalista essa crítica. Nada impede que um outro documentário mostre só o olhar da polícia ou das autoridades. Certamente Falcão não queria dar uma visão completa do assunto em 40 minutos mais ou menos”. Ou seja, toma-se o documentário como um modelo de interpretação da realidade, quando, na verdade, ele é apenas um recorte, uma leitura, um olhar – e muito específico e singular – para uma faceta da realidade.

Contudo, embora a edição do assunto seja defensável, Marília Franco bate de novo numa tecla já tocada. Ela coloca que, por não abrir espaço para nenhuma discussão sobre o papel do Estado nesse problema, por não tocar na falta de atuação dos governantes e legisladores e na falta de interesse das autoridades, é que Bill deixa sem ação os seus espectadores. “Se ele lembrasse – mesmo que de levinho – à população que existem sim responsáveis por isso, talvez essas pessoas conseguissem se reconhecer no meio desse caos”, explica.

Para Marcelo Coelho, uma das razões para o diretor não ter dado voz a outros envolvidos é a visão dos rappers, que se dizem os únicos conhecedores da realidade em que vivem. Para ele, o resultado disso é que a visão dos envolvidos, “especialmente os menores drogados, é obviamente precária, mal articulada, reproduzindo muitas vezes, sem saber, o preconceito ou as opiniões externas a seu próprio respeito”. Isto é, não dá para tomar o filme como a verdade absoluta sobre o assunto. Ele apenas apresenta um olhar. Idéia que Marília completa, como especialista nesse gênero de produção. “É claro que é um documentário. Mas também não dá para as pessoas ficarem achando que, por isso, é uma obra do acaso”. O que a professora e o jornalista pretendem destacar aqui é que a importância de Falcão está muito mais ligada ao valor dado a uma obra que oferece voz a um certo povo. Uma obra etnográfica, como Marcelo Coelho gosta de chamar. É um filme que conta uma história real, mas que nem por isso deixa de ter personagens. “A diferença é que esses personagens interpretam a si mesmos e suas falas não são decoradas”, conta. Portanto, a crítica de Coelho é que talvez Bill e os rappers estejam entendendo mal seu papel diante de tudo isso, por imaginarem que têm uma visão perfeita e exata da situação toda.

Para fechar, o ponto forte é que parece que o diretor vem conseguindo, apesar de toda a apelação da mídia, colocar-se em um lugar bastante apropriado. Acusado de se promover graças à miséria humana e de não ter denunciado seqüestros com os quais teria tido contato durante as gravações, Bill responde a tudo isso divulgando seu filme e o livro originário dele. Foi ao presidente Lula e ao templo do alto luxo, a Daslu, e defende sua convicção de que é apenas um rapper que fez um documentário sobre uma situação real. Marília Franco relembra que João Moreira Salles e o jornalista Caco Barcelos – autor de Abusado – também passaram pela acusação de promover o tráfico em nome do sucesso. “Mas é uma bobagem. Isso é a imprensa que repercute de forma ruim as coisas. Que mal há em divulgar um trabalho? Isso é o círculo da cultura e, sem isso, os filmes, discos e livros não chegam ao seu público”. E mais: segundo ela, não se pode cobrar que um documentarista exerça o papel de polícia.

Assim, entre o lançamento na loja de luxo e o microfone e câmera à disposição dos pequenos traficantes, entre a difícil arte de mostrar uma realidade e os problemas que isso representa, MV Bill segue promovendo Falcão – os meninos do tráfico. A cada um de nós, cabe aceitar – ou recusar – o convite para assistir ao documentário. Para os que assistirem, fica ainda o desafio da reflexão – e da ação.

ver todas as anteriores
| 03.02.12
De onde viemos

| 11.11.11
As violências na escola

| 18.10.11
Mini-Web

| 30.09.11
Outras Brasílias

 

Atualize seus dados no SinproSP
Logo Twitter Logo SoundCloud Logo YouTube Logo Facebook
Plano de saúde para professores
Cadastre-se e fique por dentro de tudo o que acontece no SINPRO-SP.
 
Sindicato dos Professores de São Paulo
Rua Borges Lagoa, 208, Vila Clementino, São Paulo, SP – CEP 04038-000
Tel.: (11) 5080-5988 - Fax: (11) 5080-5985
Websindical - Sistema de recolhimentos