A senhora percebeu que o professor ainda não tinha ocupado o merecido lugar de destaque nos debates sobre o sistema educacional brasileiro. Como isso foi possível e como se deu a decisão de dar voz a esse ator?
Eu, além de professora – dessas de sala de aula mesmo –, sempre fui pesquisadora. Então, nesses anos todos, pude de um lado conhecer a situação prática da educação no Brasil e, de outro, ficar por dentro das teorias. Tive e tenho contato com os professores, diretores, secretários, alunos e fui colhendo suas colocações sobre o nosso sistema de ensino. Junto com isso, vim desenvolvendo atividades de pesquisa, conhecendo as teorias ligadas à educação, à filosofia do ensino e às políticas educacionais. Somando tudo, não podia dar numa percepção diferente: vivemos hoje sob a bandeira dos especialistas. O que não é ruim, mas acaba deixando sem voz o professor. E hoje, no Brasil, somos mais de dois milhões de professores. É o docente quem vive mais de perto a realidade das escolas e faz a ponte entre os gestores e os estudantes. Então o lógico seria que sua opinião fosse levada em conta na hora de serem tomadas as decisões.
E não são?
Não. Quer dizer, sistematicamente não. Existem até alguns exemplos isolados, com a Secretaria de Educação de Teresópolis, no Rio de Janeiro, mas em geral não é o que acontece. O agente da educação não é ouvido antes de ser tomada qualquer decisão, antes de ser implantada qualquer medida no sistema de ensino. Da mudança da lousa de giz para a de caneta até a reforma do ensino, tudo tem repercussão no trabalho do professor e, por isso, deveria passar por ele. E se ele é a ligação entre as outras duas partes e é também o elemento de maior duração no processo – governos e suas políticas vão e vêm, alunos também, mas o professor fica – ele é, certamente, a parte mais importante de ser escutada e respeitada quando o assunto é o sistema educacional. E isso simplesmente não é feito. Minha pesquisa, assim, é o primeiro levantamento neste sentido. O fato é que quem vai operar o modelo de educação na realidade é o professor e ele não tem voz nem para desenvolver esse modelo de educação, nem na avaliação do modelo, se deu certo ou não.
Como foi o processo de ouvir a opinião dos professores?
Primeiro a gente criou um instrumento de pesquisa que fosse bem representativo e completo. Ao final da sexta versão, ele foi finalmente validado por especialistas respeitáveis em educação. Bem, aí partimos para as escolas. Eu fazia questão de ver retratadas as cinco regiões geográficas do país e, para que os dados colhidos servissem para generalizações – que era mesmo meu objetivo –, eu precisaria ter mil questionários completos. Assim, ouvimos 1172 professores, de 42 escolas, em 22 estados, das cinco regiões do Brasil. E a margem de erro ficou em 3 pontos percentuais para mais ou para menos, ou seja, um valor bastante aceitável por se tratar de uma ciência humana. Também é importante dizer que só ouvi professores do ensino fundamental e médio e isso tem uma razão. Eu queria abarcar as etapas obrigatórias do ensino, e o infantil e o universitário não têm essa obrigatoriedade. Outra coisa: foi uma pesquisa voluntária e espontânea. Só respondeu quem quis. E um dado curioso: fizemos mais de dois mil questionários, mas, desses, só 1172 estavam válidos. Houve, portanto, grande mortalidade de respostas. Não dá para assegurar 100%, mas acreditamos que isso se deva ao medo que o professor tem de que alguém leia o que ele escreveu ali. Que aquela informação vaze, embora eu tenha assegurado o caráter sigiloso da pesquisa. Ninguém devia se identificar, mas mesmo assim há ainda muito receio de falar e isso certamente é um resíduo dessa política de não se ouvir o professor. Ele fica com medo de exercer uma função a que não está acostumado.
Depois da aplicação dos questionários veio a preparação do livro. Como foi essa passagem e o que “professor refém” revela?
É importante essa visão que você coloca. O livro não é uma obra minha, saída da minha cabeça. É um livro feito a partir dos resultados de uma pesquisa, de dados colhidos na fonte. Então o que está lá não é apenas a opinião de uma especialista. E o que está lá. Temos vários pontos importantes. O primeiro diz respeito à percepção que o professor tem de si mesmo. O professor é tido como um executor das decisões tomadas. Uma peça que, embora seja a ligação entre todas as partes da engrenagem, é vista como um mero repetidor. E eu queria saber o que o professor achava desse papel.
O professor também se vê assim? Como um executor?
A resposta completa para isso está no capítulo que trata da percepção do professor sobre si mesmo. Mas o que posso adiantar é que ele acha que ocupa sim esse papel, embora não ache que seja esse seu lugar de direito. Ele gostaria de ter sua opinião levada em conta antes que as decisões fossem tomadas e também na avaliação daquelas medidas. A cada inovação sugerida, o professor é obrigado a mudar todo o seu esquema sem que lhe seja dado o direito de dizer se concorda ou não com aquelas mudanças. Pior, sem que lhe seja dado o treinamento necessário, o tempo para se envolver com aquele novo modelo, com aquela nova forma de lidar com seus alunos. Por isso o nome refém. E há um fenômeno recorrente no país: as políticas de educação mudam – ao sabor dos novos governos – e não dá tempo de avaliar se deu certo, ou se deu errado. Decreta-se o fim de uma era sem se estudar, ouvindo as partes envolvidas, se a anterior funcionou ou não. Isso é muito grave.
Mas o país vem aprofundando suas ferramentas de avaliação. Tem o ENEM, O SAEB...
É verdade. Temos em mãos ótimos instrumentos de avaliação. Mas vejo dois problemas neles. Primeiro foram desenvolvidos – novamente – sem a participação dos professores e, por isso, deixam de fora alguns assuntos relevantes para os educadores. Segundo, são instrumentos de avaliação de resultados e não de processo. E é no processo que está o trabalho e a atuação do professor.
Os dados sobre essa percepção do ser ouvido não os surpreenderam?
Perguntamos ao professor se ele se sentia ouvido sempre, muitas vezes, raramente ou nunca e pedimos para ele responder isso em relação aos colegas, aos diretores e coordenadores e às autoridades da educação. Deu que ele se sente ouvido pelos colegas, ou seja, pelos seus iguais, mas só 19% acham que suas opiniões são levadas em conta pela direção da escola. É muito pouco. E, mais do que isso, segundo as respostas colhidas, os professores acreditam sim que parte da responsabilidade pelo fracasso da educação vem de eles não serem ouvidos pelas instâncias superiores. Eles acreditam que, por ter experiência e vivência diária com as medidas adotadas, seriam uma boa fonte de consulta. Mas que não é requisitada.
Além dessa questão da percepção, a senhora também colheu dados sobre a opinião do professor em relação aos erros do sistema de ensino do país. O que conseguiu apurar?
Vamos falar das medidas polêmicas. Eu quis ouvir o professor sobre o que ele achava do sistema de ciclos, da progressão continuada, da adoção desse modelo – que é espanhol – pela rede pública, mas não pela privada, levando em conta que uma boa parcela dos professores atua nas duas redes. Isso é muito comum no Brasil. Além das polêmicas, pedi para eles falarem das linhas pedagógicas. E aí seguimos falando de metodologias, de avaliação e de temas transversais, como a história do negro, educação sexual, inclusão e etc.
E o que encontrou?
Bem, isso é assunto para as 300 páginas do livro, mas tem alguns assuntos importantes. No caso das metodologias, ou a teoria na prática, posso dizer que – segundo o estudo – o nível de conhecimento do professor sobre os grandes teóricos da educação não é alto. É muito baixo até. Por exemplo, 97% disseram que conheciam Paulo Freire. Ora esse é um número alto, mas na checagem – quando eu pedia uma correlação simples entre o nome do teórico e sua principal idéia – esse percentual cai para 72%. Ou seja, embora o professor diga que conhece Paulo Freire, na verdade não sabe nem que ele é o autor da Pedagogia do Oprimido, sua principal teoria e que dá nome ao livro mais revolucionário em sua teoria. E essa situação se repete do mesmo modo com os outros pensadores: Jean Piaget, conhecido por 68% dos entrevistados; Emília Ferreiro, conhecida por 65%, e Montessori, tão pregada nas escolas, conhecida por apenas pouco mais da metade dos professores, 57%.
A que conclusões esses dados levam?
Não posso falar de certezas, mas posso contar qual é a principal hipótese. A formação e o treinamento do professor, segundo ele mesmo e segundo a avaliação que podemos fazer, não são suficientes nem adequadas. O professor não é formado suficientemente e não passa por cursos específicos. Ou seja: o professor conhece muito pouco o que está aplicando. E isso pode estar gerando entendimentos e aplicações distorcidas das teorias e dos métodos. Some-se a isso mecanismos ineficazes de avaliação desse processo... temos todos os ingredientes para resultados desastrosos na educação.
Mas, ainda assim, fica parecendo que os erros sucessivos são tentativas de acerto. Afinal, estamos sempre em dia com o que de mais novo e mais moderno existe no mundo, o construtivismo, o sistema de ciclos...
É verdade. Uma das conclusões a que a gente chega é que o Brasil sempre aposta no que vem dando certo em outros países. O construtivismo é mesmo um bom exemplo e a progressão continuada também. Mas sempre voltamos ao mesmo ponto: para se aplicar qualquer um dos dois, os professores não foram consultados sobre o modelo anterior nem sobre o atual; não foram ouvidos sobre a forma de aplicação disso. Também não foram treinados e nem são avaliados corretamente. Ou seja, alguém avisa: a partir de agora não tem mais repetência. O sistema deixa de ser anual e passa ser por ciclos. O aluno não repete a menos que não vá à escola. Aplica-se o novo modelo e bola para frente. Se entrar um outro governo que discorde dessa visão, tudo pode mudar. E não pense que isso é raro não. Isso é um fenômeno constante no país. Mas tem um lado interessante em tudo isso. É visível que todas as alterações ou adoções de linhas pedagógicas no Brasil tem um perfil democratizante. Das avaliações ao direito de expressão do aluno, tudo aponta para uma educação mais democratizadora.
A senhora fala também na necessidade de uma educação distante dos partidos políticos.
Essa é outra conclusão importante do levantamento. As opiniões levantadas mostram que podemos propor uma educação apartidária, que devemos lutar por um sistema educacional que seja independente do partido ou da corrente política que está no poder naquele momento. E, para isso, o papel do professor é fundamental, afinal é ele quem vai levar esse modelo para os alunos, é quem vai fazer a ponte com as autoridades e quem vai avaliar se aquele sistema está funcionando e porquê.
No final, temos uma espécie de homenagem...
Como não podia deixar de ser, é uma conclusão-homenagem. O que eu encontrei nas minhas viagens de coleta de dados foi um professor herói. Que, apesar de todas as adversidades, continua querendo fazer um bom trabalho. E ele tem nisso uma missão de vida. Tanto assim que, quando se pergunta qual é o maior problema que ele enfrenta – a despeito da falta de estrutura, de uma política educacional, do salário baixo e até de não ser ouvido –, o professor brasileiro aponta duas respostas empatadas tecnicamente: com 22%, a dificuldade em manter a disciplina e, com 21%, veja que coisa interessante, despertar a motivação para aprender nos alunos. É ou não um herói?