Como podemos promover o diálogo entre a psicanálise e a pedagogia?
Para responder a essa pergunta, a gente tem, primeiro, que lembrar de outra: qual é a função da escola? Transmitir o conhecimento socialmente construído que, no caso do ocidente, remete a séculos, milênios de conhecimentos. Nessa transmissão, o que nos interessa – normalmente – é o aprendizado do aluno, a apropriação do conhecimento pelo estudante. Mas a gente não pode imaginar que todos os alunos se apropriam do conhecimento do mesmo jeito. E é aí que a psicanálise atua. Ela ajuda a explicar as formas e os sentidos do aprendizado de cada aluno.
Ou seja, a psicanálise vai ajudar a entender porque uns aprendem mais rápido, outros preferem matemática, outro não se interessa por nada...
Exatamente. A psicanálise aplicada à educação coloca que há fatores objetivos para o aprendizado e fatores subjetivos. É nesse segundo grupo que a psicanálise se detém. Os conceitos da teoria freudiana ajudam a explicar essa relação do subjetivo com o aprender.
É aí que entram as questões do inconsciente, dos desejos...
Da repressão... o desejo é algo muito valoroso. Freud já falava disso no século passado. Sem o desejo, não há ação, não há um colocar-se diante das coisas da vida. O desejo é uma mola motivadora para o aprendizado. E é aí também que estão as questões do inconsciente. Noutro dia, um professor, em reunião com pais de alunos, falou ‘vocês podem até não saber, podem até não perceber, mas estão o tempo todo em sala de aula comigo’. Esse professor tem uma noção clara que toda a vida e todo o contexto social do aluno vêm à escola com ele. O que esse professor consegue enxergar é a força das crenças, dos valores, dos ideais do pai e da mãe que o aluno traz, carrega, todo dia. Nem os pais nem os alunos se dão conta, mas o professor, com um olhar psicanalítico, é capaz de enxergar que no inconsciente do estudante há uma série de construções que ele traz lá da casa dele. Olhar isso, identificar, trabalhar em cima desses conceitos é um salto para a pedagogia e é um aprendizado que a psicanálise trouxe.
Entre os fatores subjetivos do aprendizado, ou do não-aprendizado, pode-se falar do desinteresse. Tem aluno que acha a escola cansativa, desinteressante. A psicanálise também pode atuar aí?
Pode sim. Mas antes é preciso desmentir essa mentalidade que está se formando de que a escola é chata, de que alunos não gostam de ir à escola. A criança e o adolescente gostam sim de ir à escola. Lá estão os amigos, as redes sociais, ainda mais depois que ele perdeu a rua, os vizinhos. Diga a um aluno que ele, simplesmente, não vai à escola. Aposto que ele vai ficar triste, desolado. O que a criança e, principalmente o adolescente, não gosta – ou se coloca contra – é ter de respeitar as regras. Ele quer ir à escola, mas talvez não queira assistir à aula naquele momento. Ou quer estar na aula, mas quer falar sobre o jogo, ou sobre uma festa do final de semana. Esse conflito entre o individual e o coletivo, o desejo e a regra, tudo isso pode ser explicado e trabalhado com um olhar psicanalítico.
É o velho conflito do eu versus o mundo tão presente na obra de Sigmund Freud?
Esse mesmo. Gosto de explicar que a psicanálise é a teoria que permite o conhecimento do outro. E esse outro é com letra maiúscula, porque diz respeito a tudo o que não sou eu. Um dos discípulos de Freud, Jacques Lacan, foi um dos pensadores que mais deu ênfase a essa questão da alteridade e de tudo que ela significa para nós. Entender isso e aplicar é uma boa maneira de lembrar o aluno que ele é um ser único, individual, mas que está inserido num contexto e que sem as normas de convivência, sem essas regras, a relação eu-outro fica inviabilizada. Não há convivência possível.
E portanto não há sociedade possível.
Exatamente. A psicanálise ajuda muito a educação porque faz esse caminho do individual até o social. Dá um papel para o ser humano na sociedade, coloca cada um no centro de suas relações sociais e faz de cada um o protagonista de sua história e de seu contexto. Isso é maravilhoso para a educação e para a vida e a organização escolar. Ter essa noção de parte no todo é fundamental para uma postura de colaboração e respeito na sala de aula e na escola.
Ou, em outras palavras, é preciso se enxergar no outro.
Perfeito. E essa é a busca psicanalítica. Eu no outro e o outro em mim. Essas relações pertencem ao reino do inconsciente e é preciso compreender que elas estão lá e não em outro lugar. E elas ajudam a compreender as diversas possibilidades que se instalam numa escola: aluno-aluno, aluno-professor, professor-aluno. Essas relações aparecem em manifestações específicas, como a postura em sala, as perguntas feitas, as opiniões, e merecem ser olhadas.
Mas quem deve olhar isso, professora? O professor, o orientador?
Em princípio, o orientador formado em psicologia ou psicopedagogia é absolutamente capaz de lançar esse olhar psicanalítico. Mas também os professores que fazem 3o grau muitas vezes têm conhecimentos da teoria freudiana. Agora, o importante é a escola adotar isso e é aí que insisto que entram as formações em serviço. O que é isso? As boas e velhas reuniões de planejamento. Nessas reuniões, ou encontros, é possível formar o professor para aliar teoria e prática psicanalítica. A coordenação normalmente tem formação para olhar a subjetividade e pode trabalhar isso com seus professores nas formações em serviço, utilizando, para isso, todos aqueles instrumentos que Freud nos deu e que já comentamos aqui.
Por fim, eu gostaria que a senhora sugerisse dois livros para os professores que se interessarem pelo assunto.
Tem dois muito importantes para fazer essa ponte entre a psicanálise e a pedagogia. Ambos são da Sara Pain, uma educadora argentina que é certamente a pensadora atual mais importante nessa área. Um é “A função da ignorância” e o outro é “Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendiz”. Os dois saíram pela Artmed Editora. Valem a pena para quem quer começar.