As ordens para os atos de violência partiram de dentro dos presídios e as ações só cessaram quando as lideranças do PCC assim determinaram. Embora não confirmadas, há suspeitas de que representantes do governo estadual teriam negociado com a facção uma espécie de trégua, durante os ataques de maio. Os poderes públicos tornaram-se reféns do crime organizado?
Não diria que o Estado tornou-se refém, acho que é uma expressão muito forte. Mas certamente trata-se de uma situação bastante crítica, pois revela um Estado vulnerável, que perde o controle da situação e é deficiente nas tentativas de manter a ordem pública e de conter os ataques promovidos. A grande questão é que houve um longo período em que se permitiu que esses grupos se organizassem e se consolidassem não apenas no interior dos presídios, mas também para fora deles. Com isso, as ações ganharam em intensidade e imprevisibilidade.
Essa é uma das principais perguntas feitas pela sociedade: como pudemos chegar a esse estágio de descontrole e ineficiência?
São várias as razões, e elas se manifestam simultaneamente, vão se somando. A sociedade nunca teve de fato a preocupação em reduzir ou minimizar as condições que proporcionam a filiação de tanta gente ao crime. No Brasil, são muitos os crimes, cometidos em todas as esferas, tanto na base quanto nos altos escalões, e sempre com muita impunidade, que acaba servindo como poderoso estímulo. Se não sou punido... Há que se considerar ainda as condições sociais, a exclusão que afeta milhões de pessoas. É claro que pobreza não é sinônimo de criminalidade, que nem todos que fazem parte dos segmentos menos favorecidos vão se envolver com o crime, mas, nesses casos, a ilegalidade muitas vezes acaba sendo alternativa de sobrevivência. Vamos lembrar ainda o funcionamento do aparato policial, que é excessivamente repressivo, oferecendo respostas que não raro estão aquém das necessidades reais. Um bom trabalho policial não deve se resumir a prisões e penas. É preciso investigar, detectar, usar a inteligência. Isso é feito, mas em escala inferior. Juntemos tudo isso com a capacidade e as condições oferecidas pelo sistema carcerário e temos um quadro infelizmente bastante favorável ao crescimento da criminalidade, à reincidência e à não ressocialização.
Será que as autoridades realmente conhecem e sabem quem é o PCC, a organização que pretendem combater?
Acho que a gente ainda tem pouca informação e conhecimento sobre a organização. Sim, existem reportagens publicadas, alguns estudos, entrevistas das lideranças, mas ainda precisamos avançar nesse aspecto. A organização nasceu há 13 anos e é um pouco resultado dessa omissão e incapacidade do Estado de se fazer presente em diversas áreas e regiões. Dentro das prisões, elas se fortalecem e criam suas regras, demandas e estratégias, novamente por conta da incapacidade do poder público de manter o controle e a ordem internas. E isso não significa o endurecimento das punições. A manutenção da ordem não é apenas uma questão de segurança. É também isso, mas deve envolver ainda uma dinâmica carcerária onde os presos não vivam na completa ociosidade. Têm que ter atividades, trabalhos, ações educacionais. Essas deficiências é que fomentaram o fortalecimento gradual desses grupos.
O PCC até agora tem se recusado a atacar civis e concentra suas ações contra agentes do Estado. É uma estratégia política? A organização tem projeto ideológico?
Não me parece que eles tenham um projeto ideológico, mas as lideranças certamente têm revelado considerável noção e consciência sobre a força política que a organização tem. Eles sabem que têm força, dentro e fora das prisões. Isso confere à facção força política, nem sempre orientada na direção específica de um partido. Eles pensam: ‘tenho uma agenda de exigências e quero negociar, então vou pressionar o Estado e dizer como ele deve agir’. Nesse sentido, é extremamente preocupante que um grupo criminoso tenha noção dessa força política e decida agir para provocar o Estado e apavorar a sociedade.
O PCC transformou-se em uma grife? Fazer parte da organização parece ser extremamente estimulante, uma estratégia de reconhecimento, principalmente para a juventude.
Não é de hoje que o crime organizado representa sedutor atrativo para os jovens. É uma forma daqueles que estão sem qualquer perspectiva social, sem emprego, vivendo em condições precárias, sem educação ou saúde se fazerem perceber pela sociedade. O crime atua como reconhecimento, status, auto-estima. O que temos de novo é a consolidação do PCC como uma organização forte e estruturada, que consegue catalisar e atrair os jovens. É uma novidade a ser verificada e estudada. O PCC tem uma ação social, que pode ser mais intensa ou mais limitada do que imaginamos, mas que acaba distribuindo parte dos recursos do crime organizado para parcelas menos favorecidas, até como forma de garantir o apoio, o silêncio, a conivência e até mesmo a participação indireta da população com ações ilegais. É muito sério: o jovem passa a ver no crime a possibilidade de fazer fortuna, de ter acesso a bens materiais que jamais teria, em condições normais. Eis um outro enorme desafio: reverter essa situação e a imagem que a juventude pobre muitas vezes faz do crime.
A reação da sociedade, exigindo o endurecimento das ações policiais e até mesmo aceitando as execuções como forma de combate, era esperada?
Trata-se de um debate muito difícil, pois as pessoas estão muito preocupadas com o endurecimento das penas. O problema é que, quanto mais endurecermos, quanto mais prisões acontecerem, mais soldados poderão ser envolvidos com esse crime organizado. Claro que a punição deve existir, e ela deve ser dura para os atos mais graves, mas hoje mesmo aquele sujeito que comete um delito leve acaba indo parar na prisão. O que acaba acontecendo é que temos um aparato penitenciário que não funciona, mas que é caríssimo. E a sociedade, sob o falso argumento e a ilusão de se livrar das laranjas podres, prefere pagar esse custo altíssimo, mesmo correndo o risco de sofrer as conseqüências dessa política exclusivamente punitiva. O atual sistema carcerário é incapaz de recuperar. Pelo contrário, a pessoa amplia suas relações com a rede criminosa. Mensalmente, cerca de 800 novos presos chegam ao sistema prisional paulista. Para dar conta deles, precisaríamos, em tese, construir uma penitenciária de grande porte por mês, a um custo de aproximadamente 14 milhões de reais. É impensável. Veja bem: não se trata de não punir. Mas a sociedade tem que encontrar outras formas de punição. É preciso punir melhor, de forma mais eficiente.
Os olhares muitas vezes se voltam apenas para o interior dos presídios, sem considerar que as prisões estabelecem relações permanentes com uma série de outros atores externos. Como combater os laços que o crime organizado estabelece com agentes públicos?
Esse é o grande dedo na ferida do combate ao crime organizado. É preciso enfrentar todas as conexões que ele estabelece com empresas de fachada, com agentes penitenciários, com juízes, advogados, fiscais, promotores, policiais, políticos. Assim como a Itália fez com a Máfia, precisaríamos promover uma verdadeira devassa não apenas nas organizações criminosas, mas em todas as outras estruturas e atores externos, que atuam na legalidade, e com quem essas facções estabelecem relações. No dia em que começar a efetivamente combater a esfera legal que dá proteção ao crime organizado, o Brasil talvez comece a escapar da impunidade e a vencer de verdade a criminalidade.
Como o senhor analisa o comportamento da mídia na cobertura e narrativa dos ataques?
Os meios de comunicação têm um papel fundamental e devem informar a população. O que acontece é que essa disseminação de notícias deve ser feita de forma responsável e cuidadosa. Não é possível entrar ao vivo, em rede nacional, no meio da tarde, e dizer que vai ter toque de recolher, sem efetivamente ter confirmado essa informação. É preciso avaliar os efeitos, os impactos e as conseqüências desse comportamento. Tudo bem, é a briga pelo furo, mas não podemos abrir mão da ética, da responsabilidade. Se a sociedade recebe vários estímulos desencontrados, vai ficar desorientada. Foi o que aconteceu durante os ataques de maio. Nessa segunda onda, acho que o jornalismo amadureceu e houve um posicionamento mais cauteloso e menos sensacionalista, até por conta das críticas que muitos veículos sofreram. O hipotético recebeu um tratamento mais discreto e não se transformou em manchete de primeira página.
E a reação das autoridades públicas?
Lamentável. O Legislativo como sempre foi omisso, trabalhou a reboque, foi lento, quase incompetente para promover e estimular um debate fundamental. Ficou devendo. O Judiciário também não veio a público para admitir parte de sua responsabilidade por esse quadro caótico. Muitas das reclamações dos presos, por exemplo, envolvem a demora no julgamento de benefícios e de redução de penas. As respostas do Executivo estadual foram péssimas, muito emotivas, pouco racionais, também fugindo das responsabilidades. A disposição do governo federal para o bate-boca também foi lamentável. Em ano eleitoral, a crise acabou se transformando em alvo de disputas partidárias. E o que as pessoas desejam é seriedade e serenidade para encontrar soluções.
Diante de organização e imprevisibilidade, de um lado, e inoperância e incompetência, de outro, o que podemos esperar? Qual pode ser o resultado dessa equação?
Os órgãos policiais precisam perceber que devem trabalhar de forma organizada e inteligente, e que essa é uma tarefa permanente, não passageira. Esse é o verdadeiro trabalho policial, que deve se manifestar não apenas no caos, nas crises. Faltam também reformas legislativas importantes, como a tipificação dos crimes, como lidar com os crimes novos, as novas tecnologias. O sistema judiciário precisa ser reformado, para que possa responder mais rapidamente às demandas, assim como o penitenciário, que precisa valorizar os funcionários, distribuir e cobrar responsabilidades. A sociedade precisa estar disposta a encarar o debate sobre segurança pública como uma prioridade; caso contrário, provavelmente estaremos condenados a novas ondas de ataques.