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Entrevista com a socióloga e pesquisadora Julita Lemgruber

Existem análises que identificam relações e pontos em comum entre as organizações criminosas do Rio de Janeiro e as de São Paulo. Essas semelhanças de fato existem? Estamos falando do mesmo fenômeno?
Acho que a realidade do Rio de Janeiro é muito diferente da vivida por São Paulo. Os grupos cariocas estão estruturados há muito mais tempo, pelo menos desde o início da década de 1980, quando tínhamos duas estruturas muito poderosas, o Comando Vermelho, que chegou controlar 70% das prisões do estado, e o Terceiro Comando, responsável por mandar nos 30% restantes do sistema. Naquela época, houve um grande equívoco na forma como conduzimos a discussão sobre direitos humanos. Durante anos, as duas organizações disputaram poder e espaço. O PCC é uma realidade muito mais recente. Outro fator que diferencia as duas situações é que nos últimos tempos aconteceu no Rio uma pulverização desse poder do crime, que se tornou mais disperso, graças à proliferação de facções e ao surgimento de diversas outras organizações criminosas. Em São Paulo, o cenário é muito mais dramático e trágico, pois o PCC realmente se transformou em um grupo hegemônico e extremamente poderoso, único, responsável por centralizar as ações violentas e muito mais competente e sofisticado no que diz respeito à ligação do sistema prisional com as ruas. Além disso, um terceiro fator que distancia os dois cenários é que em São Paulo há cadeias espalhadas por todo o estado, enquanto as prisões cariocas estão basicamente concentradas na área metropolitana. Para o bem ou para o mal, a verdade é que os detentos cariocas estão em grande parte abrigados no complexo de Bangu, em um perímetro muito mais fácil de controlar. O PCC domina um espaço geográfico bem mais amplo.

A senhora afirmou que nos anos 1980 a discussão sobre o tema dos direitos humanos foi encaminhada de forma equivocada. Por quê? Qual o erro?
É difícil buscar culpados, e não é mesmo esse o caso. Mas o fato é que naquela época o Brasil, depois de mais de vinte anos de arbítrio e de ditadura, de regime militar, ensaiava os primeiros passos em direção à democracia. Era um momento em que as pessoas, principalmente aquelas ligadas a organizações de esquerda, queriam que os direitos de todos, incluindo os dos presos, fossem respeitados. Éramos, afinal, todos cidadãos. Mas não soubemos construir esse discurso simbólico de forma hábil e competente e, aos olhos da classe média, a idéia pegou mal. E quem defendia os direitos humanos passou a ser classificado como defensor de bandido. Perdemos a batalha pelo discurso e permitimos que se estabelecesse esse rótulo e essa imagem equivocada. Não conseguimos consolidar a tese de que homens e mulheres privados de liberdade também devem ter as garantias e as proteções estabelecidas pela lei. Talvez tivesse sido mais interessante investir no debate sobre direitos civis, como aconteceu nos Estados Unidos.

A situação que enfrentamos em São Paulo é muito grave e perigosa. O crime organizado desafia o Estado e apavora a população. Como estratégia de combate a essas organizações, o que poderia ter sido feito e não foi?
O sistema penitenciário no Brasil sempre viveu abandonado, esquecido e relegado a último plano, sem representar efetiva prioridade. A Lei de Execuções Penais é de 1984, mas jamais saiu do papel. Preso não desperta interesse, não dá voto, é ignorado. O Brasil tem de dar conta de uma enorme dívida social, que envolve saúde, educação, emprego, terra, moradia, saneamento básico, e acaba deixando a discussão sobre segurança pública para lá. O que não se percebe é que, enquanto isso acontece, o problema da segurança pública já não pode mais ficar represado pelos muros das cadeias e acaba transbordando. Porque você tem uma massa desiludida e desamparada que acaba sendo dominada por grupos poderosos, que a ela prestam assistência e oferecem ajuda de todo o tipo. Acabam cooptando esses soldados. De acordo com a lei, os presos deveriam trabalhar, mas a realidade é que a situação é caótica e essa garantia não é cumprida. É falso o argumento que diz que o preso é desligado, vagabundo. Ele quer trabalhar – até porque três dias trabalhados significam a redução de um dia na pena original. O trabalho significa para muitos a possibilidade de sustentar a família. A ociosidade destrói o mínimo de auto-estima que ainda é possível manter no sistema prisional. É importante também lembrar que 70% dos presos brasileiros não têm o segundo grau completo. E a lei garante a eles a possibilidade de estudar, a ser oferecida e bancada pelo Estado. Mas isso também não ocorre. A assistência jurídica é falha e deficiente. Apenas recentemente São Paulo aprovou a lei que cria sua Defensoria Pública. O atendimento médico é da pior qualidade. A Aids é um problema bastante grave no sistema prisional e não recebe a devida atenção, não é tratada de forma adequada, não há prevenção. E, em um universo onde tudo falta, os níveis de violência e de corrupção são altíssimos. Matérias publicadas recentemente sobre as origens do PCC enxergam nas torturas e agressões sistemáticas sofridas pelos presos a gênese da organização. Essa foi a forma de reação que eles encontraram, reforçando a máxima que diz que violência só gera mais violência.

Junto com o abandono e o descaso não se manifestaram também arrogância e um certo sentimento de onipotência? A sociedade pensava “está tudo bem, não é comigo, estão presos, longe de mim, não me incomodam, não vamos nos cruzar”, e acabou se assustando quando se deu conta de que a criminalidade está muito mais próxima do que imaginávamos?
Há vários autores que estudam o tema da criminalidade e da segurança pública que concentram suas análises nessa linha de raciocínio. Os muros altos das prisões não significam apenas a contenção, mas a segregação, a separação, o distanciamento em relação à sociedade. Ninguém quer ver o que acontece lá dentro. O desejo é trancar e jogar a chave fora. Se fosse possível, faríamos dessa maneira. Não foram poucos os que aplaudiram aquela insensatez vivida no presídio de Araraquara. Mas é importante lembrar que no Brasil não existe pena de morte ou prisão perpétua. Esses presos, pode demorar, é verdade, mas eles vão sair da prisão. E serão mais ou menos violentos, de acordo com o grau de violência que enfrentaram no sistema prisional.

Diante de uma crise tão profunda e complexa, o que é possível fazer para efetivamente combater o crime organizado? Quais as medidas concretas que podem ser colocadas em prática?
No curto prazo, com urgência, é preciso retomar o controle da situação. E isso se faz com inteligência, não com truculência. Os agentes do Estado precisam monitorar as ações das facções criminosas, para que a população não venha a sofrer com novos ataques que beiram o terrorismo. Aqui cabe uma explicação: não considero que seja terrorismo puro e explícito porque não existe na minha opinião uma clara estratégia política a sustentar tais atos violentos. De qualquer sorte, essas ações precisam ser evitadas. Não é possível aceitar como naturais a difusão do medo e a paralisia de toda uma cidade. Precisamos sofisticar os instrumentos de inteligência das polícias e do sistema penitenciário. A médio prazo, precisamos fazer valer as penas alternativas. Não é possível simplesmente prender indiscriminadamente, como São Paulo tem feito. Essa tendência é fruto de uma estratégia de segurança pública equivocada. A tal da tolerância zero é uma ilusão, não funciona, e não foi assim que Nova York conseguiu enfrentar a criminalidade. São Paulo apenas enche suas cadeias e não tem condições de administrar essa massa humana. Criamos um monstro. Aumenta o número de unidades prisionais, aumenta o número de presos, mas não há infra-estrutura e atendimento adequado para oferecer a esses presos. São 140 mil homens superlotando as cadeias paulistas, e um PCC que manobra essa massa não assistida. É nitroglicerina pura. É por isso que a organização cresce, ocupa espaços e se faz presente onde o Estado deixou de atuar. Prender indiscriminadamente não é a solução. Por fim, e pensando no longo prazo, devemos investir intensamente no combate às desigualdades sociais, no resgate da dívida social, na geração de empregos, na saúde e educação de qualidade e para todos, no lazer. Há que se criar ainda mecanismos eficazes para combater funcionários corruptos e violentos, que atuam na ilegalidade. São tarefas difíceis, não darão frutos agora. Mas é preciso começar.

Como podemos combater as relações perigosas que se estabelecem entre o crime organizado e os agentes públicos e aqueles que atuam na legalidade? É possível imaginar que o Brasil algum dia fará a sua Operação Mãos Limpas, que acabou por desmontar a máfia italiana?
Se já é difícil lidar com a máfia das ambulâncias no Congresso nacional, se já não temos condições de cassar 30 deputados corruptos, se grande parte desses parlamentares vai se reeleger em outubro, então acho muito difícil imaginar que o Brasil será algum dia capaz de deflagrar algo parecido com a Operação Mãos Limpas. Mas acredito com convicção que pontualmente as instituições possam estabelecer os seus próprios mecanismos de fiscalização, auto-controle e punição. Para citar apenas um exemplo: a Ordem dos Advogados do Brasil deve recusar um comportamento que é sistemática e tradicionalmente muito corporativista. Não é possível acobertar advogados que atuam à margem da lei. É preciso dizer não a essa lógica promíscua. Esse espírito deve se espalhar por todas as outras instituições e segmentos sociais.

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