Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
A memória permanece viva e quase todos nos lembramos onde estávamos naquela manhã ensolarada, em Nova Iorque, nublada em São Paulo, de 11 de setembro de 2001. Eram 8h46 quando o primeiro avião se chocou contra a torre norte do World Trade Center, um dos símbolos da sociedade estadunidense. A partir de então, não tiramos mais os olhos da televisão e, atônitos, acompanhamos ao vivo o choque do segundo avião e, logo depois, a queda das duas torres. Para muitos especialistas, aquele acontecimento deixou definitivamente para trás o século XX, classificado pelo historiador inglês Eric Hobsbawm como a “era do extremos”, marcando ainda o início de uma era pautada pelas intolerâncias e pelos fundamentalismos.
Cinco anos depois, Hobsbawm, em análise publicada pela Folha de S. Paulo, afirma que “politicamente, os Estados Unidos estão mais fracos. Economicamente, não estão mais fortes. E descobriram que seu poderio militar é incapaz de resolver todos os problemas”. Na mesma Folha, Neil MacFarlane, de Oxford, diz que "a principal mudança é o enfraquecimento das leis internacionais sobre o uso da força".
Segundo ele, desde que os EUA desenvolveram o conceito de defesa preventiva, a principal potência do mundo quer ter o direito de atacar quem quiser, caso se sinta ameaçada. O presidente George W. Bush parece não se importar com as críticas. Em discurso feito em cadeia nacional, por conta da passagem dos cinco anos dos atentados, reforçou a idéia da “guerra ao terror como uma luta por civilização”. O tom ufanista foi engrossado pelo vice-presidente Dick Cheney, para quem os EUA fizeram um trabalho quase perfeito na área de segurança, e pela secretária de Estado, Condoleezza Rice, que garantiu que os estadunidenses vivem hoje muito mais seguros. Argumentos oficiais à parte, a data abriu espaço para que o dissenso e o contraditório pudessem também se manifestar, conduzindo a discussão por outros caminhos.
Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nusol) do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais organizou o colóquio “Terrorismos”, que procurou debater o tema a partir dos mais diversos recortes e enfoques. As reflexões apresentadas são no mínimo provocadoras – e instigantes.
Uma das primeiras tarefas, segundo Maria Cristina Franco Ferraz, da Universidade Federal Fluminense (UFF), é desconfiar radicalmente do uso político exaustivo e massificado do termo “terrorismo” e do significado que os discursos oficiais e midiáticos atribuem à palavra. A idéia que se consagra, segundo a especialista, é que o terrorismo seria responsável por todos os males contemporâneos da humanidade. Trata-se de uma mentira que, repetida à exaustão, ganha ares de verdade. Apoiando-se nas reflexões feitas pelo lingüista norte-americano Noam Chomsky, Maria Cristina procura desconstruir a retórica ideológica e instrumentalizada, que procura rotular como terroristas apenas os islâmicos e radicais. “É um termo que só parece fazer sentido para nomear atos dos adversários, que não se aplica aos atos dos ricos e poderosos e daqueles que fazem parte da chamada comunidade global. O problema é sempre o ‘outro’”, define. Quando são os Estados Unidos e seus aliados quem recorrem ao uso da força, lembra a especialista, justificam tais atos como “diplomacia coercitiva”.
A pesquisadora faz também uma provocação um tanto quanto dolorosa. Ao lembrar que a doutrina Bush trabalha cotidianamente a insegurança e o medo, até para justificar o controle e a restrição às liberdades civis, ela destaca que acaba prevalecendo na sociedade um sentimento de onipresença paranóica da guerra invisível. E, nesse sentido, se a ameaça é constante, o acontecimento (atentado) se apresentaria como um desfecho estranhamente apaziguador e tranqüilizador, porque representaria o fim do medo e da ameaça – uma espécie de alívio. “É inquietante”, admite. A pesquisadora também rejeita a tese do “choque de civilizações”, que colocaria em lados opostos o ocidente cristão e o oriente muçulmano. Partir desse pressuposto significaria aceitar uma divisão maniqueísta e simplista que, colocada dessa maneira, na forma de dualidade, não deixaria alternativas e nos obrigaria a optar por um dos fundamentalismos – o estadunidense ou o islâmico. “Os dois lados não são realmente opostos, pertencem ao mesmo campo. A opção entre Bush e Bin Laden não é a nossa escolha. Os dois são Eles contra Nós”, diz. E completa: “a posição a ser adotada é aceitar a necessidade de lutar contra o terrorismo, mas redefinir e expandir os termos, de forma a incluir também alguns atos dos americanos e de outras potências ocidentais”.
O auditório lotado fervia – em todos os sentidos – quando o professor Edson Passetti, da PUC-SP, começou a fazer um resgate histórico sobre as diversas manifestações do terrorismo. Até o final do século XX, a prática se concretizava essencialmente de duas formas: de baixo para cima, por meio de ações que tinham como objetivo ocupar ou negar o Estado (um exemplo seria o movimento anarquista) ou no sentido contrário, como política de Estado (perseguições utilizadas para defender as revoluções Russa e Cubana, por exemplo). Após a queda do Muro de Berlim e o suposto triunfo do neoliberalismo em escala planetária, imaginava-se que esse fenômeno estaria controlado, aparecendo apenas como circunstância pontual ou residual – as lutas do ETA (exército basco), na Espanha, e do IRA (exército republicano), na Irlanda.
No entanto, segundo o pesquisador, a Al Qaeda obrigou a revisão dessas consciências racionais sossegadas. Segundo ele, houve um deslocamento da relação terrorismo de Estado e terrorismo contra-Estado para o terrorismo de caráter político-religioso. Ele garante: na sociedade do controle, o terrorismo é a expressão da fusão entre religião e razão. O demônio vem de fora – e é transnacional. “Não é mais uma maneira de justiça, de denúncia, de provocar abalos sociais. Acabou a era do terrorismo revolucionário, mesmo porque as revoluções acabaram em tiranias. Agora, o terrorismo é dos deuses, e os deuses não vivem em fronteiras, apenas anunciam movimentos de rebanhos. Os atuais terroristas não são mais sequer apóstolos, apenas mártires. Vivem para a idéia do deus, a idéia de razão e a idéia de prazer”, alerta.
Lançamento do livro “Terrorismos”
Como resultado complementar do simpósio, foi lançado pela editora EDUC, no mesmo dia, o livro “Terrorismos”, organizado por Passetti e por Salete Oliveira, também da PUC/SP. A obra sistematiza e documenta as discussões travadas durante o evento. Vale a pena destacar alguns trechos. No artigo “Terrorismo e fundamentalismo: faces do niilismo”, Oswaldo Giacoia Junior, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), procura identificar algumas das razões capazes de explicar o surgimento dos terrorismos contemporâneos, bem como as características que eles assumem. A intolerância e a incapacidade de conviver com os diferentes estão na gênese desse processo. Em primeiro lugar, o autor analisa aquilo que chama de fenômeno de regressão. Com o fracasso das soluções políticas negociadas para impasses e conflitos internacionais, a via militar surgiria como última alternativa de sobrevivência para grupos minoritários. A militarização da arena política atingiria também os Estados, que não raro decidem abandonar a força dos argumentos e das idéias para optar pela violência das armas. Quando o diálogo se ausenta, os tanques e metralhadoras dizem presente. Uma segunda questão diz respeito ao próprio processo de globalização, prontamente compreendido e aproveitado pelos grupos terroristas. Afinal, se rompemos as fronteiras e globalizamos o comércio, os mercados, a informação, o entretenimento, os esportes, os empregos, por que não internacionalizar também os ataques terroristas? “Assim como tivemos o surgimento das empresas transnacionais (networks firms), observamos o surgimento do que podemos chamar de redes do terror (networks terror), com células terroristas espalhadas por todo o globo”, escreve o especialista.
O terceiro aspecto é crucial para a compreensão do problema. Giacoia trata da profunda crise de valores vivida pelas sociedades, especialmente no ocidente. Princípios como solidariedade, companheirismo, fraternidade, justiça social e ética soam como discurso anacrônico e foram substituídos pelo individualismo, consumismo exacerbado, necessidade de tirar vantagem a qualquer custo, exigência de ter o carro do ano e o celular de última geração. O sujeito deixa de ser reconhecido pelos valores humanos que possa carregar e passa a ser valorizado por sua capacidade de consumir e por sua habilidade e disposição em eliminar o concorrente. O mercado ocupa o espaço da cidadania. “Ora, em suas análises do niilismo europeu, Nietzsche já havia antecipado esse processo de dissolução interna corrosiva da sociedade e da cultura, do qual pode resultar, entre outras figuras possíveis, uma bárbara fúria destrutiva, como uma de suas formas mais expressivas de atestação”, diz o especialista. Essa ausência e esse vácuo, no entanto, precisam de alguma forma ser preenchidos – o ser humano sente necessidade de se agarrar a algum tipo de crença. Nesse sentido, lembra o filósofo, torna-se compreensível a reativação da experiência do sagrado. “Essa penúria denuncia uma simbiose, aparentemente contraditória, entre o sentimento de ausência de valor, por um lado, e o ardente desejo de segurança e salvação, de outro, numa trama que nos remete ao tema do fundamentalismo e, com ele, a um retorno ao problema dos terrorismos, pois é manifesta a vinculação contemporânea entre os terrorismos e as diversas modalidades de fundamentalismo”, conclui.
Fechando a obra, o texto “Terrorismos e Invulnerabilidades”, de André Degenszajn, do Nusol/PUC-SP, lembra que o terrorismo não é um fenômeno recente e que sempre foi alvo de preocupações daqueles que atuam na área de relações internacionais. O autor chama a atenção para a tentativa, mais uma vez carregada de simbologias e instrumentalizações ideológicas, de classificar qualquer movimento contemporâneo de resistência como terrorista – incluindo as mobilizações anti-globalização. Essa estratégia, por alargar o espectro da ação, justifica também a ampliação da reação. Por conseqüência, qualquer adversário torna-se terrorista e deve ser imediatamente combatido e derrotado. “A associação do terrorismo às resistências amplia os dispositivos de exceção e exige a adesão de todos ao controle, em nome da segurança. Diante da ameaça terrorista permanente, impõe-se a continuidade do Estado de exceção. Afirma-se a guerra em nome da paz”, analisa o pesquisador.
Na sessão de encerramento do simpósio, o trecho final da exposição feita por Maria Cristina Franco Ferraz pode ser considerado uma das contribuições centrais e norteadoras do evento – até porque se preocupa em iluminar possíveis caminhos futuros. Para ela, “enquanto não enfrentarmos nosso medo, nosso temor e nosso horror pela diferença e pela alteridade, pelos múltiplos e heterogêneos ‘outros’ em nós e fora de nós, permaneceremos reféns da lógica do terror e de suas múltiplas falácias”.