Todo mundo conhece, ou já ouviu falar de As Mil e Uma Noites. Mas como o senhor, estudioso e tradutor da obra, a classifica?
Eu a classifico como a maioria dos estudiosos e leitores. As Mil e Uma Noites são um conjunto de histórias populares, sem autoria conhecida, narradas pela perspectiva de uma mulher. E ela vai contando essas mil e uma histórias para se livrar da morte. E consegue. Mas é claro que a obra tem vários outros significados. A gente pode destacar aqui a dimensão e o valor dado pela obra para o ato de narrar. A narração livra uma mulher da morte. E metaforicamente as histórias são representações da própria vida. Por isso, enquanto houver histórias, há vida. O rei que originalmente queria matar Sharazád vai sendo seduzido pelas narrativas e acaba se apaixonando por ela e desiste de matá-la. E isso nos leva para outra questão interessante: As Mil e Uma Noites é narrado por uma mulher.
E isso não é estranho?
Não isso não é nada estranho. Em todos os meus estudos para traduzir, ou para pesquisar mesmo a obra, nunca vi nenhuma referência ao estranhamento por ser uma mulher a narradora. Certamente isso era uma coisa normal no Oriente. Mas o interessante é que a palavra feminina vence a espada masculina. A palavra vence a violência. A palavra da mulher garante a vida e ela derrota o homem sem precisar usar a força. Isso é uma lição deliciosa que vem passando pelas gerações.
Assim como as temáticas abordadas também vêm sobrevivendo, ou se fortalecendo desde então.
Esse era o terceiro aspecto interessante em relação ao significado da obra que eu ia destacar. As temáticas são muito variadas e, me parece que nenhum daqueles grandes temas humanos – como o amor, o ódio, a justiça, etc... – tenha ficado de fora. Fala-se de tudo isso em As Mil e Uma Noites. E para uma obra sobreviver tanto tempo, só alcançando esses assuntos transversais da cultura humana. O que quero dizer é que esses assuntos continuam despertando interesse, porque dizem respeito à própria condição humana e isso não vai mudar. As questões continuam e continuarão as mesmas.
Então vamos falar um pouco mais sobre esses três aspectos que o senhor levantou. Como a narrativa é tratada na obra? Qual é a importância dada a ela?
Então vamos voltar um pouco. O ato de narrar está presente em todas as sociedades humanas. Nunca ouvi falar de uma sociedade que não tivesse narração. E ela está presente e viva nas mais variadas manifestações. Desde a contação mais primitiva, que envolvia apenas a boca do contador e o ouvido do ouvinte, até as formas mais sofisticadas, cheias de recursos tecnológicos e linguagens próprias, como o cinema, o videoclip, e as novas mídias, como a internet, etc... O fato é que as pessoas gostam e querem ouvir histórias. As pessoas têm essa vontade. Faz parte da condição humana. E o que As Mil e Uma Noites consegue é ser uma representação perfeita, uma resposta quase perfeita a essa demanda por narrativas. Ou seja, o que podemos dizer é que a obra encarna bem esse desejo.
Suponho que As Mil e Uma Noites também consiga romper certas barreiras, porque, embora seja uma obra oriental, foi tão bem aceita no ocidente...
É verdade. As Mil e Uma Noites somou certos aspectos à literatura ocidental, que já era bem desenvolvida. Mas não usava com maestria o recurso do suspense, por exemplo. A Odisséia ou a Ilíada não faziam uso desse recurso e As Mil e Uma Noites sim. Existe até uma aposta enorme no suspense. Quando a história está para acabar, Sharazád suspende a narração porque já é dia. E isso deixa o rei curioso para a noite seguinte, ele não consegue dormir pensando no que vai acontecer agora. E veja, esse rei, na verdade, somos nós. A gente é que quer saber o que vai acontecer. A gente quer sempre saber um pouco mais. E a literatura ocidental assimila isso com grande naturalidade e passam a surgir os folhetins, por exemplo, que deram nas nossas novelas e telenovelas. Um hábito bem nosso, não é? E isso é mesmo uma metáfora da vida. A gente quer saber o que vai acontecer a seguir e para isso continuamos vivos. Só a morte poderia interromper esse fluxo.
Mas esse dado do suspense continua mexendo com a gente mesmo quando a gente sabe que Sharazád não vai mais morrer? Que na verdade até tem um final feliz?
Então, o “o que vai acontecer” é importante. Muito importante. Mas, no fundo, a gente sabe que tudo vai dar certo no final. Então, eu destaco o “como vai acontecer”. O jornalismo – pelo menos o jornalismo bem feito – reforça isso, essa narração do como as coisas acontecem. Então, em As Mil e Uma Noites tem toda a confirmação de que as coisas dão certo – e a gente gosta muito dessas confirmações – e mais a descrição do como, que é irresistível.
E uma mulher narrando? Por que o senhor afirmou que não é um fato estranho?
Seria estranho porque estamos falando de uma obra oriental, não é? Mas quando pensamos no Oriente hoje cometemos alguns erros. O primeiro deles é imaginar que as coisas lá sempre foram como são hoje, ou até piores. A culpa desse erro não é sua nem minha. É fruto de uma comparação. Aqui no ocidente a gente olha para a história das mulheres e constata que hoje elas estão num papel e num lugar muito melhor do que no passado. E essa posição tende a melhorar. E a gente costuma aplicar essa premissa também para o Oriente e aí é que está o engano. Hoje no Oriente, mesmo com a queda do Talibã, por exemplo, ainda há uma repressão sexual pública muito intensa. Mesmo que o governo não proíba mais certas manifestações, a população ainda se auto-censura e se pune. É um controle da própria população. E as mulheres são as que mais sofrem com isso. Não podem fazer muitas coisas ainda. Mas é errado pensar que sempre foi assim.
O senhor quer dizer que, no passado, a mulher oriental já ocupou um outro lugar?
Exatamente isso. A mulher tinha um outro status, um outro lugar. E desse lugar podia reinar no universo doméstico, e mesmo nas esferas públicas. Eram professoras, enfermeiras, intelectuais, médicas. E isso veio se perdendo à medida em que os governos foram endurecendo e ficando mais fundamentalistas. Mas daquele posto do passado, a mulher oriental podia até enfrentar o homem. Veja que as armas eram outras, e a sedução que vence o rei não é nem sexual. É a palavra da mulher. Sua fala, sua voz. Isso é o que vence a força do rei. Ele se dobra pela palavra e é vencido e termina apaixonado pela esposa. Isso é belíssimo e tem uma grande força. Ninguém ousou mexer nessa estrutura. Nunca vi uma tradução em que não fosse uma mulher a narradora. E mesmo dentro da obra, Sharazád fala de outras mulheres narradoras. E tem mais. Esse papel de narrador se tornar feminino cai no gosto das pessoas e acaba se espalhando pelo mundo todo. Temos a Carochinha, a mamãe Ganso e várias outras, é só procurar.
A religião apenas tangencia a obra, não é?
É verdade. O Islã tem um papel muito de fundo em As Mil e Uma Noites. Talvez porque naquele tempo o Islã não se impusesse tão tacanhamente na vida das pessoas, mas se você reparar ele está lá. No modo como as coisas se manifestam, no respeito a certas leis. O fato é que esse Islã laicizado ajudou a difundir a obra, porque não impediu que a história pudesse ser ouvida e aceita por cristãos, judeus, budistas, etc... Há até citações sobre judeus e cristãos no livro. Aliás, isso está no dogma do islamismo, aceitar as outras duas grandes religiões, mas preservando o que há de oriental.
E se isso é possível na literatura...
Você quer saber se acredito numa salvação pela literatura? Algo como uma convivência pacífica e rica como As Mil e Uma Noites? O que posso dizer é: vamos torcer por isso.