Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
“Para que se deve educar uma criança?” Essa pergunta certamente vem martelando a cabeça de pais e educadores desde o início do que chamamos de civilização humana. Isso porque, em grande parte, aquilo que os adultos ensinam às crianças é o que vai ficar como herança e garantir (ou não) a continuidade das sociedades. Uma das respostas possíveis e desejáveis para a indagação é: “para a autonomia”. Ou seja, uma das possibilidades é criar os pequenos para serem, desde sempre, sujeitos de desejos, sujeitos de linguagem e sujeitos capazes de fazer escolhas.
Mas o que parece ser muito simples na teoria pode tornar-se uma grande dificuldade na vida real. Pais e professores – mesmo querendo criar meninos e meninas independentes – às vezes têm medo, ou se atrapalham na tarefa, porque – como toda questão complexa – essa também envolve conflitos, contradições, receios e esperanças.
Leonardo Posternak pode ser considerado um especialista no assunto. Ele é pediatra há mais de 30 anos; não satisfeito com a prática no consultório, atende também no Hospital Albert Einstein, formou-se em psicanálise e, há dois anos, fundou o Instituto da Família, o IFA. Neste tempo todo, e em todas essas frentes, ele vem insistindo numa mesma tecla: “educar é uma dor e uma delícia”.
A frase, que acaba pontuando a conversa sobre autonomia infantil, revela logo de cara as contradições que a função traz. Leonardo conta que os pais, os primeiros educadores, desejam ter filhos felizes e independentes, mas morrem de medo de serem abandonados. “Não tem saída, um dia essa criança vai crescer e vai ter seu par, seus amigos, sua própria família”. Então, mesmo sem querer, esse receio da perda e do abandono acaba muitas vezes impedindo a família de ver suas crianças como pessoas capazes de fazer escolhas (se sujar, inventar palavras, falar errado, montar de uma maneira inusitada um brinquedo etc.) e de acertar, ou errar com elas.
Aliás, o direito ao erro é um dos pontos mais importantes nesta discussão, porque atinge o âmbito familiar e escolar. Para o pediatra, os meninos e meninas devem poder errar, se frustrar, se entristecer. “Só quem erra, aprende. Só quem erra cresce verdadeiramente”, reforça. O problema é que seja em casa, seja na escola, os adultos querem que seus pupilos sejam sempre vitoriosos e espertos e aí tendem a evitar que a criança se decepcione, como se cair do cavalo fosse provocar uma dor insuportável para o pequeno. E os cuidadores fazem de tudo para poupar as crianças.
Mais do que uma tentativa inglória – já que se não for dessa vez, haverá, cedo ou tarde, um momento em que a criança vai mesmo errar e se dar conta disso – esse é um pensamento que deseduca. “Porque crescer é mesmo um processo doloroso”, explica Leonardo “e estou falando desde a dor orgânica até a dor psíquica”. Ter a dor e percebê-la é um processo que faz parte da vida. Crescer é mudar, e mudar é perder. “Veja o adolescente. O que ele tem a perder? A infância. A paz e os pais da infância. Por isso ele reage. Mas, por outro lado, é só sofrendo que ele vai poder alcançar o outro lado, que é vislumbrar o futuro todo que tem pela frente”. E se isso for vivido com inconsciência, o processo torna-se mais pobre do que poderia ser.
Sentimento de culpa
E porque os adultos procuram poupar os meninos e meninas? “Porque eles entendem que o sofrimento é desnecessário e que evitar a dor do filho é uma maneira de se sentir menos culpado”, reponde o especialista. E aí entramos na faceta mais atual da questão imemorial da educação. Pais – e às vezes professores também – se sentem devedores em relação às crianças. Porque hoje o tempo é mais curto, o emprego mais instável, a necessidade de dinheiro cada vez maior, a família cada vez menor, enfim, “por todos esses fatores da sociedade moderna que conhecemos bem, morremos de culpa, achamos que estamos sempre aquém das necessidades das nossas crianças e isso gera um problemão”, destaca Leonardo, pois “a culpa é a maior inimiga da educação”.
Em casa, essa culpa toda faz pais e mães desistirem de ter uma atuação firme e com papéis hierárquicos claros. Eles evitam dizer não e impor limites, com receio de que a criança fique traumatizada. “Aliás, usa-se erradamente o termo. Como se fosse possível uma criança ficar traumatizada porque não ganhou um brinquedo. Trauma é um conceito muito mais profundo e sério do que isso”, ensina o pediatra. O problema é que o tiro sai pela culatra. Uma criança que cresce sem limites “fica ainda mais agressiva e desrespeitosa, porque não encontra anteparos para seus questionamentos”, conta. Outra possibilidade, na organização familiar, é entupir a criança de tarefas. Assim, o pai e a mãe não estão por perto, porque têm mesmo que trabalhar, mas a criança estará ocupada, fazendo atividades que se entende educativas. A contrapartida dessa agenda de executivo para os mirins é que eles ficam sem tempo para gastar fazendo nada e pensando na sua infância, na sua vida. Sem tempo para processar tudo que está acontecendo à sua volta.
Na escola, professores e direção – com anuência dos pais – passam a achar que o dever de educar globalmente aquele menino é da instituição. “Não é. A educação do ser humano pensado como um todo ainda é responsabilidade da família. A escola tem um papel fundamental, mas na complementação disso”. Embora acredite que família, escola e pediatria devam andar juntas e desejar a educação das crianças, cada um tem seu papel. Pais sem tempo de educar e de estar por perto exigem cada vez mais dos colégios e cobram que as escolas vigiem, monitorem e relatem os pormenores das atividades de seus filhos enquanto estão lá. “E o pior é que há escolas que compram essa idéia. Escola não é lugar de vigilância, é lugar de incentivo ao conhecimento”, propõe Leonardo.
E essa é outra característica que perde espaço quando a culpa fica em primeiro lugar. Culpados por não terem mais tempo de se dedicar à própria formação, em função do acúmulo de atividades, os professores acabam inibindo e desestimulando os alunos a perguntar, a questionar. Aqui o receio é de não saber a resposta certa e que isso possa botar a perder a reputação de mestre. O problema é que a pergunta também faz crescer, traz autonomia de pensamento e um bom educador é aquele cuja resposta não encerra o assunto. Para Leonardo, em casa, ou na escola, cada resposta deveria trazer novos questionamentos. “Assim como a gente precisa estar atento às necessidades da criança e não responder mais do que ela precisa saber, também não devemos responder de forma a matar a curiosidade dela. É bom deixar uma porta aberta para a próxima pergunta”.
O que fazer?
E diante desse mar de dúvidas em que os adultos navegam, transitando entre a culpa, o medo do abandono e o desejo de criar meninos e meninas autônomos, com capacidade de escolha, o que fazer? Posternak sugere algumas idéias. Primeiro, é preciso ter firmeza no que se quer ensinar. Informação é menos importante que conhecimento. Ou seja, é melhor estar baseado em três ou quatro princípios fundadores e levar eles a sério a ficar recitando 101 dicas dos manuais de educação. “A dupla informação é muito nociva para a criança. O pai que ensina a não mentir, mas mente ao falar com alguém no telefone, ou o professor que ensina a respeitar os diferentes, mas não consegue dar aula para um aluno com síndrome de Down estão confundindo uma cabecinha em formação”.
Também a noção de hierarquia é algo especial em educação. “Um pai é um pai e não um amigo. Ele pode até ser um pai amigo, mas tem que ser um pai”, propõe. O mesmo vale na escola. A figura da autoridade – ao contrário do que se prega –, quando coerente e tranqüila, permite que a criança se sinta segura. Ela entende as regras e os papéis ali estabelecidos, confia na organização proposta. E uma criança segura “pode voar mais alto, pode alcançar mais facilmente a auto-confiança e a auto-estima. E essa criança, certamente, é uma criança mais capaz”. Junto com isso, tem o direito à verdade. O especialista entende a criança como um ser inteligente. “Não é nenhum bobinho incapaz de compreender as coisas”. Por isso é prova de respeito a esse pequeno sujeito em formação oferecer a ele a verdade. Claro que com as formas e os conteúdos que a criança pode alcançar, mas não se deve privá-la da verdade. Ter a certeza de que vai ter sempre a verdade também ajuda a criança a ser mais independente, porque confia mais.
Por fim, e mais importante de acordo com Leonardo, é perceber e acreditar que uma criança educada para a autonomia (ou seja, respeitada como sujeito desde o nascimento, livre para fazer escolhas, com direito a errar e a acertar, com tempo para brincar e para ficar sozinha, que enxerga e respeita as autoridades, que é capaz de conhecer a verdade e de formular perguntas, que tem limites e que reconhece o não, que se frustra, mas que também aposta no futuro) representa nada mais nada menos que o cerne daquilo que desejamos formar – e que se convencionou chamar de cidadão.