Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Você provavelmente já teve a oportunidade de assistir Cinema Paradiso, do diretor italiano Giuseppe Tornatore, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1989. Nesse caso, é provável também que esteja se lembrando agora da história de um garotinho apaixonado por cinema, que virou um jovem apaixonado por cinema e, mais tarde, um homem maduro que continuava apaixonado por cinema. Seu fascínio era tão grande que, depois de adulto, ele volta à sua cidade natal e restaura a sala de cinema que havia sido a grande companheira de sua infância. Recordações e memórias à parte, vale destacar que o gosto pela sétima arte ajuda a transformar cenários não apenas fictícios. Também na vida real, do lado de cá da telona, tem muita gente usando o cinema como importante aliado – inclusive na área da educação.
Patrícia Durães é professora e foi coordenadora cultural de algumas escolas particulares no Rio de Janeiro, onde nasceu. Mais do que isso: é uma cinéfila. E, enquanto ocupava a coordenadoria cultural dos colégios, sempre tentou inserir o cinema na agenda dos alunos. “Era uma tarefa ingrata, porque os cinemas não abrem de manhã. Além disso, era difícil convencer os pais de que não iríamos matar aula”, relembra a professora. Em um daqueles lances que, se fizesse parte de um filme, poderíamos dizer que se tratava de um roteiro inverossímil, Patrícia recebe uma proposta inusitada. Ela é convidada a integrar-se à outra ponta do enredo, passando a coordenar uma proposta que se dispunha, a partir do cinema, a levar os estudantes para o universo mágico da sala escura. “E foi assim que eu criei e implantei o projeto Escola no Cinema, do Espaço Unibanco”, conta.
O projeto conseguiu unir os dois pólos importantes dessa história: a escola e os filmes. Sob a batuta de Patrícia Durães, as escolas passaram a ser convidadas a levar seus alunos ao cinema, fazendo da iniciativa uma atividade pedagógica. “A gente diminuiu as dificuldades, como o horário. Passamos a abrir as salas de manhã, para seguir o ritmo das aulas e também colocamos um catálogo de filmes à disposição do professor”. Ou seja, o educador escolhe a obra que mais vai contribuir com a sua disciplina, leva os alunos e ainda participa de atividades como oficinas e palestras, que o projeto oferece.
Papel do professor
Até aqui tudo parece um filme de amor, certo? Errado. A fita pode passar de singela narrativa romântica para um thriller de quinta categoria caso o personagem central da trama não dê conta do recado. “Se o professor não interferir, não for o mediador, aí a experiência não serve para nada. É realmente matar aula”, ensina a professora de história da Faculdade Cásper Líbero, Mônica Campo. Como não podia deixar de ser, Mônica é também uma apaixonada por cinema. E foi essa paixão que a levou a, depois de se formar em história pela Universidade de São Paulo, fazer o mestrado unindo cinema e história, ou seja, mostrando que os filmes também podem ser considerados documentos históricos.
Para Mônica, o primeiro erro nesse script acontece quando o professor, protagonista desta trama, está mal preparado. Ou seja, quando o educador recorta o filme, faz inferências, utiliza as cenas para falar de assuntos que não pertencem à obra, ou, pior, “acredita e faz o aluno crer que o filme é uma testemunha daquela época que está sendo estudada”, revela a professora de história. E não é uma testemunha? “Não. Um filme é um retrato do tempo em que a produção foi feita e jamais da época que está sendo retratada”, responde. E, ainda segundo Mônica, isso faz toda a diferença. O “como” o filme foi feito, a época e os contextos interferem diretamente em como a história é contada. Assim, o filme O descobrimento do Brasil (dir: Humberto Mauro, Brasil, 1937) mostra um Pedro Álvares Cabral herói, porque não foi escrito e dirigido pelos índios do século 16. Ou, como coloca a professora, “Danton (dir: Andrzej Wadja, Polônia, 1982) não fala da fase do terror da Revolução Francesa no século 18, fala de uma Polônia da década de 1980, onde e quando o filme foi feito”.
Os roteiristas gostam de falar em
plot points – os famosos pontos de virada que uma história bem contada tem. Nesta que está se contando aqui, o ponto de virada é a postura e a ação do educador. Mônica Campo explica que, para que um filme seja uma boa ferramenta na mão do professor, ele tem que estar preparado. “Precisa estar familiarizado com o cinema. Ir ao cinema, ver filmes, ler um pouco a respeito”. Isso pode garantir que o docente passe a conhecer a linguagem específica do cinema, que é uma forma de expressão singular. Usar bem significa, portanto, “ter algum conhecimento sobre essas especificidades, como entender quem é o narrador daquela história, além dos movimentos de câmera, da linguagem das imagens, das cores e dos sons colocados ali”, sugere Mônica, que também é doutoranda em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Clube do Professor
È em resposta a essa demanda que já existem iniciativas como o Clube do Professor, do Espaço Unibanco de Cinema. Patrícia Durães explica que o Clube é a contrapartida de projetos como o Escola no Cinema. “Aqui o professor associado vê filmes de graça, ou tem desconto nos ingressos, e ainda participa dos cursos de roteiro, produção e direção de cinema”. E assim vai fazendo do cinema parte de seu cotidiano e tomando contato com a linguagem específica dessa forma de arte.
Agora vamos supor que o professor-protagonista já tenha passado pelo plot point e já conheça algumas especificidades do cinema, seja porque freqüenta as sessões, seja porque resolveu estudar o assunto. E aí, o que fazer com toda essa bagagem? “Usar, usar muito. Porque o cinema é uma tela para o mundo”, propõe Patrícia Durães, defendendo que o professor que vai ao cinema tem seu repertório ampliado e isso é mágico na sala de aula, isso dá ao professor o poder de fazer o aluno imaginar e abstrair e, portanto, se entregar ao conteúdo da aula. E, se essa for uma história com final feliz, é possível fazer o aluno se apaixonar pela sétima arte. Para Mônica Campo, a paixão do professor pelo cinema é um atrativo a mais e pode sim “encantar os alunos e fazer eles olharem para os filmes com outros olhos, de encantamento e de vontade de decifrar”.
E afinal é isso que um professor busca – recursos para envolver os alunos com a matéria que está sendo ensinada. E para chegar a esse objetivo, Mônica e Patrícia são unânimes: vale vídeo, DVD ou cinema. Os dois primeiros têm a vantagem do controle do tempo. “O professor pode ir parando, contando, chamando a atenção dos estudantes para determinados aspectos”, conta Mônica, “e isso é muito útil quando queremos aprofundar um tema, discutir uma questão”. Ela ressalta que o filme não é uma mera ilustração para colorir a aula. “O filme pode ser um documento histórico quando encarado corretamente e isso tem grande valor nas aulas, desde que se respeite esse tipo de escrita que é o cinema”.
Mundo além-muros da escola
Já ir ao cinema envolve outro tipo de produção. Os alunos vão sair da sala e da escola para um outro lugar. Isso tange, além da experiência visual e auditiva de assistir a um filme, momentos importantes de socialização. Tem o ônibus, o caminho até o cinema, a entrada na sala propriamente dita. “É um ritual raro para a maior parte dos estudantes hoje. Ir ao cinema é muito caro, isso deixou de fazer parte do dia a dia dos alunos”, conta a coordenadora do projeto Escola no Cinema. Mas quando essa experiência acontece, apoiada pela família e pela escola, o menino ou a menina podem vivenciar um momento raro de contato com o mundo além-muros da escola, que também pode ser muito rico. E na sala escura, o aluno pode passar ainda por uma outra situação enriquecedora. É a passagem do coletivo, com a turma, os colegas, os professores, para um estado de percepção individualizada. Porque no cinema parece que estamos numa atividade coletiva, “mas ela é fundamentalmente individual”, relata Mônica. E isso também tem valor e pode ser canalizado para o estudo daquela disciplina.
E engana-se quem pensa que só é possível recorrer aos filmes para ensinar história. Tão variados são os temas das narrativas que eles podem ser úteis a todas as matérias. De O Carteiro e o Poeta (dir: Michael Radford, Itáliia, 1994) para as aulas de Literatura, a Nós que aqui estamos por vós esperamos (dir: Marcelo Masagão, Brasil, 1998) para as aulas de Geografia ou Teorias da Comunicação. Detalhe para o fato de Nós que aqui estamos ser um documentário. Mônica Campo defende que tanto os filmes ficcionais como os não-ficcionais são narrativas e precisam ser compreendidos como um texto. Por isso os cuidados que o professor deve tomar são: respeitar, conhecer e difundir as particularidades desse tipo de texto que é o cinema e jamais fazer dos filmes uma decoração para as aulas. E, antes que suba o letreiro the end, Mônica pede que o professor lembre e se orgulhe de que, quando leva filmes a seus alunos, deve estar, acima de tudo, contribuindo para a formação e a construção da cultura do país.