Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Encerrada a disputa eleitoral, e com a exigência de pensar o futuro levando os atores políticos a diminuir as temperaturas dos discursos e a esfriar os ânimos, faz-se importante um balanço do processo, na tentativa de compreender com mais detalhes qual o Brasil que sai das urnas. Reeleito com pouco mais de 58 milhões de votos (60,83% dos válidos), contra cerca de 37 milhões de Geraldo Alckmin (39,17%), o presidente Lula procurou, nos momentos seguintes ao anúncio do resultado, amenizar as divergências para convocar todas as forças políticas para uma espécie de diálogo nacional.
Em seu blog, o jornalista Franklin Martins já anunciava que “as primeiras 48 horas posteriores ao segundo turno mostraram que estavam equivocados aqueles que apostavam no recrudescimento da crise política no caso de reeleição de Lula”. Segundo o analista, a expressiva votação obtida pelo PT acabou sepultando as teses aventureiras de terceiro turno ou de eleição maculada. Para Martins, “os incendiários estão de crista baixa, e os mais sensatos começaram a sair de um longo período de hibernação, para em breve voltar a trocar figurinhas”. O clima político em Brasília, segundo ele, já teria mudado da água para o vinho.
Significa dizer que as diferenças de projetos desaparecerão e que teremos então um governo de coalizão nacional? Muito longe disso. Como diz a máxima política, quem ganha uma eleição governa; quem perde, faz oposição. O que se espera, no entanto, é que esse embate siga mínimos parâmetros de civilidade democrática – na alternância de poder, afinal, reside a grande beleza da democracia. “O que surpreendeu nessa disputa foi um certo furor de parcela de setores médios da sociedade, um rancor muito grande, sustentado por um preconceito de classe”, analisa Isabel Lustosa, cientista política e historiadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em entrevista exclusiva ao site do SINPRO-SP. “Mas a tendência é que essa agressividade e virulência acabem aos poucos se diluindo”, completa. A especialista afirma que agora o embate partidário deve se dar sob o ponto de vista institucional e parlamentar e que movimentos de aproximações e afastamentos entre oposição e governo serão em grande medida determinados pelos interesses estratégicos de dois governadores vencedores do PSDB e já postulantes à Presidência da República em 2010 – Aécio Neves (Minas Gerais) e José Serra (São Paulo). “Havia uma tendência de conciliação, mas vitórias importantes alcançadas por aliados do governo, que podem começar a se organizar para 2010, podem reverter essa sinalização”, avalia.
O cientista político Bolívar Lamounier, entrevistado pelo site do Sindicato, também rechaça a idéia de concertação. “Essas propostas vêm à tona de tempos em tempos, mas funcionam apenas como uma senha e mensagem cifrada para possíveis cooptações”. O especialista acredita que, com a enorme votação que alcançou e com vários governos estaduais em situação financeira crítica, o presidente Lula terá uma base política muito ampla, provavelmente suficiente para lhe dar o controle do Congresso Nacional – o que não significa que essa maioria será efetiva, harmônica sólida e consistente, capaz de oferecer à administração a garantia de navegar apenas por mares sossegados e sem tormentas. Para alcançar a governabilidade, diz Lamounier, o governo não poderá repetir a fórmula do primeiro mandato, “apoiando-se no PT, em parte do PMDB, na santíssima trindade mensaleira (PP,PL e PTB) e em pequenos partidos de esquerda”. Para ele, o mais provável é que o PMDB amplie o número de ministérios, desembarcando por inteiro na administração – situação que, por conta das contradições e disputas internas petistas, poderia criar outro problema de difícil solução. “A hipótese de transformar o PMDB em espinha dorsal do governo só faz sentido se o PT for relegado a segundo plano. Apesar de ter tomado gosto pelas benesses do poder, o partido vai querer espaço e influência e não vai aceitar ficar a reboque do governo e do PMDB”, avalia.
Situação política confortável
Se terá de administrar suas divisões internas e uma anunciada acirrada disputa de espaço com novos aliados, o PT respira aliviado por não ter se confirmado nas urnas a perspectiva de redução drástica de sua bancada de parlamentares. Em 2002, na esteira da primeira vitória de Lula, foram eleitos 91 deputados federais petistas; neste ano, com a reeleição do presidente, foram 83 deputados – uma grande vitória para quem temia, com os escândalos de corrupção, conhecer um retrocesso de proporções significativas. “Foi uma das novidades e surpresas da eleição”, confirma Lustosa. Segundo a pesquisadora, é preciso somar esse fato è eleição de uma maioria (17) de governadores aliados, sendo cinco deles (Bahia, Piauí, Pará, Acre e Sergipe) petistas, além de outras figuras importantes, como Sergio Cabral (Rio de Janeiro) e Roberto Requião (Paraná), ambos do PMDB, e Eduardo Campos (Pernambuco), Cid Gomes (Ceará) e Vilma Faria (Rio Grande do Norte), todos do PSB. “É uma situação política bem mais confortável que no primeiro mandato, até porque a tendência é que esses governadores influenciem em grande medida as bancadas estaduais”, completa.
Ela, no entanto, não deixa de manifestar uma preocupação: “não há dúvidas que muitos aliados vão agora cobrar o preço pelo apoio. E uma aliança com gente como Jader Barbalho pode sair muito cara. É preciso acompanhar de perto as negociações para formação do ministério e da base aliada. É o que mais preocupa nesse momento pós-vitória”. Sobre a possibilidade de viradas de mesa que superem os limites da institucionalidade, parece existir um consenso entre os especialistas, que não vêem condições para a quebra das regras do jogo democrático. “Não há clima. A força da oposição para retomar um quadro virulento de investigações já não existe. As denúncias devem diminuir”, garante Lustosa. Em matéria publicada pelo portal Globo.com,o cientista político Gaudêncio Torquato destaca que o poder moral de uma pessoa legitimada por 58 milhões de votos é muito forte. “Tribunais não vão ter força suficiente, sob pena de uma convulsão social”. No mesmo portal, Carlos Melo, do IBMEC, vê um refluxo na onda oposicionista. “Tasso Jereissati, Jorge Bornhausen e Roberto Freire, vozes mais radicais durante o processo, foram derrotados nas urnas”, avalia. “Não vai haver um terceiro turno. O país entra em um momento em que a oposição tem ela também que pensar sobre seus rumos”, escreve Carlos Ranulfo, da Universidade Federal de Minas Gerais, em artigo publicado pela Folha de S. Paulo. Também na Folha, o historiador Boris Fausto alerta: “Isso não significa que acusações e escândalos, com a amplitude que têm, não devam ser investigados e julgados”.
O mito Lula
Mas, se durante um ano e meio o noticiário político foi pautado pelas denúncias de corrupção, como explicar a vitória de Lula nas urnas? Para Lamounier, muitos milhões de eleitores ainda mantêm o crédito de confiança que deram a Lula. “A mística do imigrante pobre que veio do Nordeste para São Paulo e se transformou em símbolo de reforma social é muito mais forte que a questão da corrupção”, analisa. Em segundo lugar, o cientista político destaca o peso da máquina do Estado em um processo de reeleição. Por último, e segundo ele mais importante, as razões econômicas também devem ser consideradas. O especialista explica que, com a moeda já estabilizada pelo governo FHC, as exportações alcançando patamar recorde e o câmbio super-valorizado, o poder aquisitivo das camadas de baixa renda aumentou muito. “E Lula não perdeu a chance de reclamar para si a autoria de tamanho milagre”. Na leitura feita por Lustosa, os investimentos feitos em programas sociais foram também decisivos para a reeleição do presidente. Segundo ela, o governo conseguiu conciliar o controle monetário com a idéia desenvolvimentista de uma forma mais eficiente. “Os investimentos sociais fizeram girar a economia de pequenas cidades e localidades, garantindo uma melhora de vida significativa para milhões de brasileiros, principalmente nas regiões Norte e Nordeste”, diz.
Os dois cientistas políticos entrevistados pelo SINPRO-SP discordam de análise feita pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro que, em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, diz que a novidade histórica desta eleição foi a vitória da periferia social sobre o centro. “Apesar dos escândalos, o núcleo do eleitorado de Lula formado pelos trabalhadores, pelos negros e pelas camadas mais pobres não se abalou”, avalia o historiador. Na contramão, Lustosa lembra que, no segundo turno, Lula ampliou sua vantagem em estados como Rio de Janeiro e Minas Gerais, além de ter conhecido significativa recuperação em São Paulo e no Rio Grande do Sul, para citar apenas dois exemplos. “Essa polarização paulistas versus resto do país ou ricos contra pobres é extremamente antipática”, reforça. “O projeto de governo tem de ser favorável aos pobres, como já disse o presidente reeleito, mas para que se possa produzir benefícios para os outros segmentos sociais”, completa. Lamounier resgata o cineasta Glauber Rocha para trabalhar com a ironia: “Daqui a pouco vão dizer que foi o embate do Santo Guerreiro com o Dragão da Maldade...”.
Neste balanço inicial – que pretende ser exatamente isso, apenas um incentivo e estímulo a um processo de reflexões que deve se intensificar –, há que se destacar dois outros cenários importantes. Em primeiro lugar, a derrota das oligarquias do Nordeste, com destaque especial para as vitórias de Jaques Wagner na Bahia, derrubando Antonio Carlos Magalhães, e de Jackson Lago no Maranhão, encerrando 40 anos de hegemonia da família Sarney. “Acho que o bolsa-família tem um papel fundamental e bastante positivo nesse processo, pois o dinheiro deixa de passar pelas mãos dos governadores, que muitas vezes agem como coronéis interessados em perpetuar seus esquemas políticos, para chegar diretamente às prefeituras. É uma das razões que pode ajudar a compreender a queda das oliagarquias”, avalia Lustosa. Lamounier concorda com o impacto do bolsa-família sobre o cenário político do Nordeste, mas não poupa críticas ao programa. “Funcionou como uma espécie de coronelismo de Estado”. Por fim, o papel desempenhado pelos meios de comunicação durante a disputa eleitoral – majoritariamente favoráveis à candidatura de Geraldo Alckmin – também deve ser pensado com profundidade, principalmente para estimular o que já se anuncia como uma possível discussão sobre a democratização da mídia, de maneira a garantir pluralidade de pensamento e o cumprimento de funções sociais estabelecidas pela própria Constituição do país. “A eleição de Lula é a derrota da mídia”, decreta Mino Carta, em editorial publicado na Carta Capital. Segundo o jornalista Luis Nassif, em entrevista concedida à revista eletrônica www.novae.inf.br, “criou-se um clima muito pesado de patrulhamento, ataques, macarthismo. Aquela posição relativamente diversificada que existia nos jornais, através de seus colunistas, acabou”. “A novidade foram os blogs, que funcionaram como alternativa e resistência a esse pensamento único”, destaca Lustosa. Mais uma novidade destas eleições – e também para ser pensada com muito carinho.