Mesmo com cinco décadas de presença no país, método ainda levanta questionamentos
Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
“Eu precisava dar Revolução Francesa. Aí pensei... eu adoro biografias. Então fui contando a história da Maria Antonieta. Quando eu decapitei a rainha, tinha um aluno bem grande, bem com cara de homem. Olhei para ele, que estava com lágrimas nos olhos. No final da narrativa, quando perguntei aos estudantes os motivos que levaram à Revolução, eles souberam me responder com propriedade. A base estava toda construída. Só faltava aprofundar”.
É assim que Sueli Passerini, professora de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e autora do livro O Fio de Ariadne, que trata da arte de contar histórias como ferramenta para disseminar conteúdos em sala de aula, revela um pedacinho de sua experiência de mais de 15 anos como professora do Colégio Micael. Essa escola, assim como aproximadamente outras cem instituições de ensino do Brasil, segue a pedagogia Waldorf que, embora tenha acabado de completar 50 anos de trajetória no país, ainda é pouco conhecida por pais e professores brasileiros. Criada pelo professor, cientista e artista austríaco Rudolf Steiner, em 1919, foi em 1956 que esse modelo de aprendizado chegou por aqui, introduzido por um colégio instalado no bairro de Higienópolis – e que, como homenagem, leva o mesmo nome do fundador dessa pedagogia.
Waldorf, aliás, era o nome da escola criada por Steiner para educar filhos de trabalhadores de uma fábrica de cigarros na cidade de Sttutgart, na Alemanha. O professor imaginou e fundou uma instituição diferente das que existiam na época. Principalmente porque a linha de ensino adotada é baseada na Antroposofia, definida por Steiner como “um caminho de conhecimento para guiar o espiritual do ser humano ao espiritual do universo”. Dizia ele que “as pessoas não são meramente observadoras separadas do mundo externo. A realidade surge somente na união do espiritual e do físico, onde o conceito e a percepção se encontram". E é principalmente nesse aspecto, segundo os antroposóficos, que reside a diferença da pedagogia Waldorf. “Ela entende e olha os alunos como seres inteiros, integrados e que devem se educar para continuar assim, integrados”, explica Sueli. Ela comenta ainda que, tradicionalmente, as escolas pedagógicas mais conhecidas optam pelo intelecto em detrimento de todo o resto, o corpo, a alma e a espiritualidade dos estudantes, o que reforçaria a cisão entre essas partes.
Na prática, é na organização das disciplinas e dos conteúdos e na dinâmica da sala de aula que se nota mais facilmente as características das escolas Waldorf. “Primeiro porque não tem séries, e sim grupos por faixas etárias; segundo, porque ninguém repete de ano, o aluno é avaliado de uma outra maneira; e, por fim, porque o conteúdo é dado de maneira integrada, e fundamentalmente artística”, vai ensinando a Sueli. Quando diz artística, a especialista não está se referindo apenas às artes plásticas, ou corporais. Ela fala de um dos pilares mais importantes da pedagogia Waldorf. Para um professor dessa linha, o mais importante é compreender como passar os conteúdos. E, se ele for verdadeiramente um seguidor da pedagogia Waldorf, fará isso respeitando o seguinte tripé: o querer (através da atividade corporal); o sentir (através da de abordagem artística constante) e o pensar (do mais concreto ao mais abstrato e científico). Some-se a isso o respeito à identidade de cada aluno (os estudantes são conhecidos por seus nomes por todos os alunos, professores e funcionários da escola) e o estímulo à cooperação e ao trabalho em equipe.
Até aqui, tudo vai muito bem. Mas nem tudo são flores para os alunos dessa linha. Acostumados a esse tratamento muito próximo, a uma avaliação muito personalizada e à cooperação no lugar da competição, os estudantes Waldorf por vezes têm dificuldades de se adaptar ao mundo além dos muros da escola. Os vestibulinhos e o vestibular podem ser momentos muito difíceis e a convivência com ou demais alunos e professores também pode ter problemas durante a faculdade. Sueli conhece casos de estudantes que não se adaptam. “Pode acontecer, mas não é tão comum. Eles cresceram num meio social muito familiar, eram chamados pelo nome, e não viam razão em competir com os colegas, aí têm de enfrentar tudo isso de repente”, conta. Mas a professora acredita que faz parte da educação Waldorf aprender a lidar com as diferenças, saber resolver os problemas cotidianos.
Outra sensação muito freqüente quando se fala em escolas Waldorf é que os alunos que saem de lá sempre viram artistas. Entre uma risada suave e outra, a autora de O Fio de Ariadne explica que em parte é verdade mesmo. Muitos alunos Waldorf acabam seguindo carreiras artísticas. “De fato eles são muito estimulados a terem contato com Arte e a se expressarem de forma artística, seja na matemática, seja na dança. Mas isso não significa que vão necessariamente ser artistas”. A educadora admite: para os professores de Artes Plásticas, é ótimo ter alunos Waldorf, porque eles já vêm bastante preparados para desenhar, pintar, esculpir.
Alfabetização
Ainda sobre os possíveis dilemas vividos pela pedagogia Waldorf, o SINPRO-SP conversou com a professora da faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da pós-graduação da Universidade Brás Cubas, Marina Elias. A especialista aponta que uma das questões que as escolas Waldorf precisarão responder rapidamente diz respeito à alfabetização. “Nessas instituições, o letramento é tardio. Acontece após os sete anos, e eles acreditam que isso é muito importante para respeitar o tempo das crianças”. No entanto, com a mudança nas séries do ensino fundamental e a crescente pressão social e das políticas de educação para a aceleração da alfabetização, as escolas Waldorf terão de buscar saídas para a encruzilhada. Sueli Passerini conta que algumas escolas já estão inclusive consultando advogados e especialistas internacionais para decidir o que fazer.
Outro ponto que merece atenção é a relação da pedagogia Waldorf com os meios de comunicação e a informática. “De um modo geral, as escolas desestimulam o contato precoce com computadores e também buscam tirar os meninos da frente da televisão”, lembra Marina. São duas posturas difíceis em tempos de internet e TV a cabo. As escolas e os professores sabem que as crianças terão contato com essas mídias e que isso trará grande influência para as suas vidas, mas preferem oferecer outros atrativos. Marina conta que “eles estimulam muito a leitura. Desde muito pequenos, os alunos ouvem muitas histórias, a professora conta as lendas e os contos de fada clássicos para os meninos”. Mas concorda que é um ponto a ser observado porque há um mundo fora da escola Waldorf que também interage com essas crianças. “Mas de um modo geral, esses estudantes são bons leitores e se expressam muito bem com as palavras. Esse estímulo freqüente à leitura realmente os influencia”, retoma Marina.
A relação com o professor também pode ser conflituosa para quem sai de uma escola Waldorf. Nessas instituições, o docente leva a sua turma da pré-escola ao ensino médio. O educador não ensina todas as disciplinas, mas há sempre um responsável por acompanhar a turma durante todo o tempo de permanência dela na escola. Assim, o professor é incentivado a conhecer muito bem seu aluno. Conhece e reconhece aspectos do comportamento e da expressão da criança, tem uma relação muito próxima com os pais do estudante, numa troca constante entre a casa e a escola. Fora dessa realidade, é quase impossível imaginar um professor universitário que conheça assim tão de perto os seus alunos, e isso pode ser chocante. Na faculdade, dependendo do tamanho das turmas, o professor nem consegue aprender o nome de cada aluno.
Aliás, entre todos os aspectos da Antroposofia e, em especial, da pedagogia Waldorf, é a questão do professor que mais chama a atenção. Um diferencial bastante significativo é que a formação para ser um professor Waldorf é longa e profunda. É preciso tempo e disposição para conhecer a Antroposofia, seus exercícios e suas aplicações, como a medicina, a farmácia, e a pedagogia. Mas, mais do que isso, é preciso o professor entender que a educação nunca é algo que vem de fora. “Para Rudolf Steiner, a educação só é verdadeira se for uma auto-educação. Ou seja, você tem que ser responsável pelo seu processo e procurar se superar a todo momento”, explica Sueli. Ela mesma precisou viver isso na pele, quando ensinava teoremas, em Matemática, para seus alunos e lembrava muito pouco desse assunto, a partir do que havia decorado quando tinha cursado o colegial. “Aí eu estudei freneticamente. Passei as férias inteiras estudando e posso dizer que meus alunos aprenderam matemática”. A pedagogia Waldorf propõe que, se um aluno tem alguma dificuldade de aprendizado, o professor deve se educar, transformar aquela barreira em habilidade e, assim, fatalmente o aluno aprende.
Em nome de uma carreira acadêmica, Sueli acabou tendo que sair do Colégio Micael, onde levou duas turmas até o fim, mas continua sendo considerada uma especialista na área, não só por causa do seu livro, mas também porque não parou de estudar Antroposofia. Fora das dependências de uma escola Waldorf, o que ela vem propondo é uma maior disseminação dessa pedagogia, porque entende que parte da resistência e do preconceito em relação a essas escolas vem da falta de conhecimento, ou de um conhecimento superficial do assunto. Por isso a professora ministra cursos e palestras sobre a pedagogia Waldorf em que o principal não é formar professores antroposóficos nem aprofundar o conhecimento desses. “A idéia é difundir o conhecimento para que ele possa ser somado ao que já existe”, conta. Ou seja, dá para adotar práticas e posturas Waldorf em instituições construtivistas, ou montessorianas, por exemplo.
Dentro dessa possibilidade está a recriação das aulas a partir da ótica antroposófica. “Sabe aquela aula que o professor dá há anos, igualzinho e da mesma maneira? Então, talvez dê para reinventar levando em conta a criação artística, o imaginário, o lúdico, a cooperação, o querer do aluno, o sentir do aluno e o pensar do aluno”, sugere. O principal, segundo ela, é o professor criar sua aula porque é isso que ele tem em mãos, essa possibilidade do como,” respeitando suas próprias competências, articulando o conteúdo com as outras disciplinas, de forma solta, criativa e que aguce a curiosidade dos meninos para que, no limite, eles venham a ser – de fato – “seres que buscam se aprimorar, se auto-educar, atores principais de sua educação e que se responsabilizem por ela, para que a gente forme seres sociais e planetários”, finaliza.