Por que escrever um livro sobre o mundo do trabalho, tema considerado menos importante e marginal pela agenda dominante, e sobre o sindicalismo, que se encontra acuado e em posição defensiva, depois de viver tempos dourados?
Em meados dos anos 80 e início dos 90, sofri muita oposição quando apresentei essa tese do fim do trabalho, pelo menos como o conhecíamos até então. Mas essa discussão ganha corpo e torna-se crucial e central nessa virada de século, quando a precarização das relações de trabalho transforma-se em regra, quando os níveis de desemprego são altíssimos e o que se consolida para a classe-que-vive-do-trabalho, como costumo chamar esse segmento, é a ausência de condições que possam garantir melhorias em sua qualidade de vida. Nos países desenvolvidos, é verdade, a herança do Welfare State ainda suporta e contempla essa qualidade de vida, mesmo para os que não têm trabalho. Mas, em países como o Brasil, a ausência de trabalho representa a tragédia. Nas últimas duas décadas, o mundo do trabalho foi marcado por mudanças profundas. Vivemos a era da empresa flexível, supostamente moderna e enxuta, que combina reestruturação produtiva com uso de máquinas e a redução drástica dos custos de mão-de-obra. Portanto, o trabalho é algo a ser reduzido. É verdade que esse cenário chegou ao Brasil de forma tardia, mas seus impactos são intensos. Portanto, é preciso compreender esse novo cenário, com profundidade. Daí a proposta do livro, que pretende ser um trabalho de longo alcance, de fôlego, e que é ainda um primeiro resultado de nossas pesquisas, já que os estudos continuam.
De acordo com os primeiros resultados da pesquisa, quais foram as principais mudanças enfrentadas pelo mundo do trabalho no Brasil e que impactos elas trazem?
É possível construir um quadro que, de um lado, revela que formas clássicas de produção, como o taylorismo e o fordismo, predominantes a partir dos anos 1930, ainda têm presenças significativas no país, mas já são alterados pelos reflexos e influxos da chamada empresa moderna. Foram contaminados por elementos do toyotismo e da acumulação flexível. Em outra instância, é possível afirmar que essa reestruturação produtiva atingiu praticamente todas as categorias de trabalhadores. Nessa primeira etapa do estudo, por exemplo, analisamos empresas automobilísticas, bancos, setor de telecomunicações, profissionais de telemarketing, trabalhadores de espetáculo lírico e de orquestras, indústria têxtil e de confecção, segmento de calçados, além de trabalhadores informais, como os camelôs. E verificamos que a característica comum, que marca todos esses grupos, é um aumento explosivo da precarização das condições de trabalho e da terceirização, que passam a ser elementos estruturais, e não mais conjunturais, desse mundo do trabalho. Na área têxtil, por exemplo, a terceirização atinge 70% da categoria. Muitos dos que atuam no segmento de calçados estão sendo obrigados a cumprir suas tarefas em casa, e pedem ajuda para os filhos, o que faz aumentar o trabalho infantil. No setor bancário, o impacto das doenças provocadas pela automação, como as Lesões por Esforço Repetitivo, é significativo. Detectamos também o nascimento, em turbilhão, das falsas cooperativas, que representam na verdade mais uma artimanha dos empresários para não dar conta dos direitos trabalhistas. A verdade é que, embora a classe trabalhadora seja responsável por criar e gerar a riqueza brasileira, suas condições de vida ficam muito aquém do mínimo necessário para garantir sua dignidade. Daí o título do livro.
Na prática, o que significa e representa essa passagem de um cenário conjuntural para uma realidade estrutural?
Trata-se de uma ampla transformação intensamente articulada. Pela base, o que notamos é essa reestruturação produtiva monumental, com a redução do que chamo de substâncias vivas, que representam o trabalho humano. Simultaneamente, o projeto neoliberal desembarca no Brasil defendendo a privatização, o Estado mínimo, a flexibilização das relações trabalhistas e a liberdade absoluta para circulação de capitais e de mercadorias. Essa combinação consagra um traço de longevidade estrutural a esse cenário. Não é mais possível imaginar uma volta ao padrão de capitalismo minimamente civilizado dos anos 1930, quando tínhamos carteiras assinadas, relativa estabilidade no emprego, ofertas razoáveis e respeito a direitos conquistados. Esse dado estrutural é destrutivo. A competitividade entre as transnacionais é um componente marcante, fundamental desse cenário, e também reflexo desse estágio do capitalismo. É um delírio imaginar que ela pode ser controlada. Agora, o que é conjuntural, é importante destacar, são os projetos populares capazes de se contrapor a esse ideário neoliberal. Eles é que podem fazer um contra-movimento político para tentar barrar e amenizar essa onda avassaladora e destrutiva. É o que vêm fazendo, por exemplo, na América Latina, governos como os da Bolívia e da Venezuela. Essa resistência só pode acontecer se houver forte mobilização popular. Vale lembrar o que aconteceu recentemente na França, com a Lei do Primeiro Emprego. Com duzentas mil pessoas nas ruas, o governo se anunciava intransigente e convicto e se recusava a negociar; com quinhentas mil, ainda estava reticente; com um milhão, topava sentar à mesa; com dois milhões ocupando as ruas das principais cidades francesas, admitia fazer mudanças na lei. Mas aí foi a massa mobilizada quem não aceitou mais negociar e rejeitou a lei, e o projeto original foi abandonado. O lamentável é que, também na América Latina, alguns outros governos, incluindo o brasileiro, sucumbiram a esse projeto capitalista.
A nova estrutura de produção faz do trabalho mais uma mercadoria plenamente descartável?
Sim, é uma mercadoria descartável, desde que seja mantido o número de trabalhadores de que as empresas precisam. Também aqui, temos uma tendência pendular. Temos um dado de perenidade, onde cada vez menos pessoas ocupam postos de trabalho, e quem fica trabalha muito. Mas estes são imprescindíveis para o projeto neoliberal, que não pode se sustentar apenas com as máquinas. Na outra ponta, uma multidão cada vez maior encontra cada vez menos emprego e, quando isso acontece, são postos precários. Resumindo, quem fica trabalha desenfreadamente, enquanto há milhões em busca de qualquer trabalho.
E que acabam no limite aceitando qualquer proposta que lhes permita sobreviver e fazer parte do sistema.
Exatamente. Vamos pensar no exemplo dos professores. Ele procura aulas no ensino superior, no colegial, bate de porta em porta, mas não encontra as chamadas vagas formais e estáveis, e acaba se deparando com as cooperativas. Mesmo sabendo que não terá direitos como férias e 13º salário, que estará à mercê do patrão, que não poderá participar da discussão de projetos pedagógicos, ele acaba aceitando a vaga, pois precisa de algum trabalho. Nesse sentido, os sindicatos têm um papel fundamental a desempenhar, pois precisam fiscalizar essas cooperativas, ao mesmo tempo em que conscientizam os docentes e escancaram para eles os riscos de assumir esses empregos. A boa notícia é que há vários exemplos de lutas bem sucedidas.
Quais são os desafios que essa desestruturação produtiva estrutural apresenta para o movimento sindical?
Em primeiro lugar, creio ser preciso desenvolver uma visão crítica sobre essa nova morfologia do mundo do trabalho e idealizar estratégias que possam agregar as demandas de assalariados, cooperados, terceirizados, precarizados e desempregados. É preciso também entender a chegada definitiva da mulher a esse mercado, equacionando questões de classe e gênero. Há ainda a necessidade de analisar a vertente geracional. Temos cada vez mais jovens entre 20 e 25 anos desembarcando nesse mercado, mas não há vagas para todos, e muitos ficam perambulando em trabalhos precários e vão buscar alternativas fora de suas áreas de formação. Creio que a institucionalização e a burocratização das entidades deve ser combatida, ampliando o contato com as bases. Ao caminhar pela base, o sindicato deve posicionar-se diante do mundo que o cerca. Esse é o caminho: combinar lutas sindicais mais específicas com lutas políticas mais amplas.
Mas o que muitas vezes agonia e atormenta é que o sistema é tão cruelmente competente que acaba nos convencendo de que, se estamos desempregados, é por absoluta incompetência nossa, e não por falta de oportunidades.
Essa muito provavelmente é a face mais nefasta que o neoliberalismo oferece para o sujeito trabalhador. O projeto está conseguindo empurrar para o nosso cotidiano a idéia de que vivemos em uma sociedade individualista, que aceita o egoísmo, que prega e valoriza com unhas e dentes as competências individuais, a barbárie e o salve-se quem puder. A individualização das relações capital-trabalho chega ao requinte de fazer do sujeito não mais um trabalhador, mas um consultor, um colaborador. Ele passa a ser um parceiro. Esse é o discurso hegemônico, que acaba por consagrar a nefasta idéia que diz que aqueles não têm emprego estão nessa situação por falta de qualificação, ou seja, são incompetentes. Essa é a mais dura ideologia do projeto neoliberal.
Apesar do quadro sombrio, é possível ter esperança e acreditar em tempos mais solidários e menos individualistas?
Sim, com certeza. É preciso acompanhar muito cuidadosamente a nova morfologia das lutas travadas no mundo do trabalho. Essas novas formas de estruturação produtiva levam a novas formas de organização, que geram novas formas de resistência e de lutas. O movimento dos desempregados na Argentina, extremamente organizado e forte, é um exemplo desse espírito crítico e criativo, que não se perde, mas se modifica, a partir de novos desafios. Na América Latina, temos lutas sociais em vários países e, mesmo naqueles em que a esquerda vence, mas manifesta pouca disposição para transformações, é preciso lembrar que os governos foram eleitos justamente porque a população desejava interromper o ciclo neoliberal. Aliás, é extremamente importante destacar que a onda neoliberal que se abateu sobre o continente nos anos 90 já está bem mais fraca, sem a mesma intensidade...