A edição da revista do IEA saiu no final do ano, mas o cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas aconteceu, na verdade, no primeiro semestre, mais precisamente em maio. Vocês precisaram de um ano inteiro para montar o dossiê? Como foi a construção do especial?
A revista do IEA sempre sai em três edições por ano. No início de 2006, quando decidimos quais seriam os temas abordados, já sabíamos que o último número seria dedicado a Grande Sertão, na verdade, a um dossiê Guimarães Rosa, muito por conta dos 50 anos de Grande Sertão, mas também por conta das descobertas que fizemos pesquisando o sertão de Minas Gerais.
Mas os trabalhos começaram bem antes...
Ah sim, na verdade, eu venho pesquisando a região do Rio das Velhas, um afluente do Rio São Francisco – na altura do sertão mineiro –, há bastante tempo. Mas minhas pesquisas eram sobre essa região do São Francisco, eu estava investigando várias dessas comunidades em torno do rio e aí, nessas viagens, começou a aparecer muita informação rica sobre Guimarães Rosa. Em meados do ano, em junho ou julho, concluímos que, depois de colher tanta informação, tínhamos em mãos material suficiente para fazer um dossiê bem alentado sobre Guimarães Rosa. E foi o que fizemos.
O que vocês encontraram lá que merecia virar um dossiê?
Havia um material muito rico e não aproveitado fora de Minas Gerais. No eixo Rio-São Paulo e nos outros estados do Brasil, a grande preocupação, quando se fala em Guimarães Rosa, é sempre sua linguagem, sua literatura. O que nós descobrimos nessas cidades do sertão mineiro, às margens do São Francisco, é uma grande movimentação, que vai muito além da literatura Roseana e que move, que dá vida a essas cidades.
Essa movimentação acontece somente agora, por conta dos 50 anos de Grande Sertão?
Não. Na verdade, essa agitação está aparecendo agora para o Brasil por conta da data, mas ela sempre existiu. Talvez agora fique mais evidente, mas sempre fez parte da cultura daqueles lugares. As universidades e alguns veículos de comunicação de Minas conhecem bem e tratam desse assunto, mas fora do estado, essas manifestações eram praticamente desconhecidas.
Do que estamos falando exatamente? Você falou em manifestações para além da literatura.
Há um ano mais ou menos, estive na cidade de Três Marias. Lá assisti a uma grande contadora de histórias, Dora Guimarães – que é até parente de João –, na beira do São Francisco declamando histórias e contos mais famosos de Guimarães Rosa. No lugar onde ela fazia isso, segundo a tradição local, foi onde surgiu A terceira margem do rio, uma das histórias mais famosas e importantes dele. Era como um encontro entre a ficção Roseana e a realidade.
E como foi poder presenciar a cena?
Ah, fiquei emocionado... como mais eu me sentiria? Ali podemos experimentar um Guimarães Rosa Vivo, presente em cada palavra e em cada pedaço do lugar, da paisagem. De lá fomos no que eles chamam de barquejadas, uma viagem de barco até a desembocadura do São Francisco. De Três Marias até a confluência com o Rio de Janeiro. Naquele ponto, supostamente, foi onde aconteceu o encontro de Riobaldo e Diadorim. Talvez dê para imaginar a emoção de descer o São Francisco até o ponto exato, até o cenário onde aconteceu o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim. E o lugar é exatamente como Rosa descreva: um Janeiro fraquinho, limpo, depois do mar que é o São Francisco para baixo de Três Marias. Depois fomos a uma fazenda que foi o cenário do conto Boi Bonito. E de lá fomos para André Quicé, outra cidadezinha ali da região. E lá assistimos a um show fantástico com canções sobre a problemática e sobre as personagens de Guimarães Rosa.
Então já percebemos que as manifestações em torno da obra de Guimarães Rosa envolvem literatura, contação de história, música, ou seja, diferentes manifestações populares?
Exatamente. Isso é o mais curioso. A região vive uma movimentação impressionante. E não foi um empreendimento organizado por um grupo. É verdade que a região tem uma troca e sofre alguma influência de grupos das universidades mineiras, Federal de Minas Gerais e PUC de Minas, e também da USP. Mas as manifestações nasceram nas comunidades baseadas nessas cidades que inspiraram Guimarães Rosa. E tudo isso se mantém vivo – e esse foi o maior tesouro que encontramos e que está ali presente no dossiê – independentemente de qualquer data comemorativa. Os habitantes da região continuam sendo personagens de Guimarães. É um universo muito rico porque permite o estudo da literatura Roseana, dos personagens, da História, da Geografia, da Economia...
Adolescentes e jovens também participam ativamente desse universo roseano?
Lá na reportagem, e veja que não é uma pesquisa acadêmica, a revista do IEA traz uma grande reportagem sobre o mundo de Guimarães Rosa, a gente fala dos Miguilins. Quem são eles? São adolescentes de 11, 12 e até uns 17 anos que são ganhos por um projeto de manutenção da memória dos contos de Guimarães Rosa. Uma médica, prima do escritor, percebeu que se não houvesse um trabalho com as crianças e os adolescentes, toda a riqueza da obra de Guimarães Rosa ia se perder quando os mais velhos fossem morrendo. Aí criou um projeto de contação de história para os meninos. Eles passam um ano e maio tendo lições e decorando contos, histórias e trechos dos romances de Guimarães. Aí, quando se formam, ganham uma camiseta de Miguilim. E eles só podem declamar quando estão com a camiseta. É como se encarnassem um personagem. Aos 17 anos eles têm de deixar o projeto. Normalmente, esses meninos vão para a universidade. Eles são diferenciados porque têm uma base cultural muito vasta. Conhecer a literatura de Guimarães a ponto de decorá-la permite que os meninos tenham uma cultura fantástica. Então a fantasia tem uma influência na realidade social e, até, econômica desse povo.
Mais gente vive de manter Rosa vivo?
Além das declamações e das encenações, tem um comerciante de Cordisburgo, Brasinha, que de tanto perguntarem a ele onde as passagens das histórias de Guimarães Rosa tinham acontecido, começou a mapear esses lugares. Porque, veja, os lugares e a maioria dos personagens são reais, existiram mesmo. Guimarães Rosa escrevia baseado na vida real das pessoas e do lugar. Aí Brasinha foi mapeando esses pontos e acabou criando as caminhadas eco-literárias, como eles chamam lá. Na que eu participei, tinha umas 400 pessoas, que andavam e paravam ponto por ponto por 12 quilômetros. Então perceba que essa alma Roseana brota com força, porque é um empreendimento de centenas de pessoas. Há chances de muita gente ali, inspirada por essa realidade, acabar virando escritor.
Mas a produção local não vive apenas de reproduzir Guimarães...
Não, de jeito nenhum. Os habitantes dessas cidades acabaram se tornando produtores de cultura também. Claro que muito vem da inspiração de Guimarães, mas há uma produção fortíssima. Eu vi 30 músicos cantarem sua produção em torno dos personagens de Rosa. Era muita música boa, de qualidade mesmo.
E aí vocês acabaram precisando fazer um CD.
Isso mesmo. Tinham tantos sons que precisamos criar um CD. Um professor de música da USP já vinha desenvolvendo algo parecido, um trabalho com as partituras de Guimarães Rosa, aí ele coordenou esse trabalho. E nesse CD tem pérolas.
Tem o professor Antônio Cândido, por exemplo.
É ele está lá cantando uma canção, [o bibliófilo] José Mindlin também e muito mais da produção local está no CD.
Esse fenômeno que nasce na literatura e se espalha por tantas outras manifestações culturais e acaba por pontuar o cotidiano de habitantes de um lugar é algo inédito? Há outras situações parecidas aqui no Brasil?
Assim, com essa movimentação fantástica que reaviva diariamente a obra de um escritor, não se tem notícias. Algo parecido, mas em escala um pouco menor, acontece em Dublin, na Irlanda, por conta da obra de James Joyce. Mas na literatura brasileira não. Paulo Coelho, o recordista de venda de livros, não passa por nada parecido. Nem Jorge Amado, que retrata um patrimônio bem brasileiro também e que também foi se inspirar em comunidades pequenas, é foco de uma manifestação rica e viva como essa que encontramos lá no sertão de Minas Gerais.