A importância da obra de Bento Prado Jr.
Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Há quase um mês - no último dia 12 de janeiro – morria o filósofo Bento Prado Jr., um dos mais importantes nomes da filosofia brasileira. Prado Jr era professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), tinha 69 anos e há quatro lutava contra um câncer de laringe. A doença, no entanto, não o impediu de trabalhar até o final de 2006. Nos últimos tempos, vinha se dedicando a estudar e produzir ensaios sobre o austríaco Ludwig Wittgenstein, autor de destaque na filosofia do século XX, bastante conhecido pelo livro Tratado Lógico-Filosófico, que publicou em 1921, e pelos trabalhos relacionados ao pensamento lógico. Mas, embora estivesse debruçado sobre a obra do colega austríaco, Prado Jr. não podia ser classificado como um dos integrantes da “corrente dos lógicos contemporâneos”. Aliás, ele não podia ser enquadrado em qualquer das grandes escolas da filosofia. Era um homem de pensamento livre.
“Ele não fazia distinção entre as vertentes filosóficas. Estudava história da filosofia, filosofia analítica e fenomenologia”, reforça a professora de história da filosofia da UFSCar, Débora Morato Pinto, que trabalhou diretamente com o Prado Jr. nos últimos quatro anos. “Ele fazia aproximações não muito comuns entre as mais diversas áreas, dentro da própria filosofia, e entre a disciplina e as demais ciências humanas. E não era um chutador. Fazia isso com uma grande profundidade e inteligência”, explica. E, por não ficar amarrado a apenas uma escola de pensamento, Prado Jr pode ser considerado um especialista em autores tão diversos como Jean Paul Sartre, Jean Jacques Rousseau e, acima de tudo, Henri Bergson. O pensamento deste último foi inclusive objeto de sua tese de livre docência, escrita em 1964 e só publicada em 1985. Até hoje o livro Presença e Campo Transcendental é tido como uma das grandes obras sobre Bergson, tanto que em 2000 foi publicada na França.
Filosofia bergsoniana
O caminho de Prado Jr. até a filosofia bergsoniana revela bem a característica de seu pensamento. No tempo em que morou na França, por ter sido cassado pela ditadura militar aqui no Brasil, o brasileiro estudou Rousseau profundamente – e ficou temeroso de que todos os seus textos ficassem contaminados pelas idéias do ilustre filósofo iluminista francês. Para afastar esse risco, tratou de estudar um filósofo anti-Russeau, que era Henri Bérgson, mais ligado ao espiritualismo e que buscava a superação do positivismo. Essa flexibilidade no caminho do pensar foi, assim, se tornando uma de suas marcas mais pujantes. E, justamente por acreditar que o pensamento mais livre pode proporcionar uma filosofia mais profunda, menos presa, é que Bento Prado Jr. era um crítico ferrenho da burocratização, do excesso de institucionalização que vem tomando conta das universidades e da pesquisa filosófica no país.
“Por um lado, essa exigência de uma carreira e de produção científica constante ajudou a consolidar um mercado consumidor importante para a filosofia. Trata-se de uma massa crítica que lê e entende filosofia. Isso, sem dúvida é bom. Dissemina e difunde a filosofia”, admite o professor de filosofia da Universidade de São Paulo, Paulo Arantes. “Mas, por outro lado, fez as universidades se transformarem em máquinas de produzir papers filosóficos e essa indústria nem sempre está afinada com a possibilidade de produção de boas idéias”, conta. Além disso, o sistema burocratizado tornou-se quase um modelo único, “situação que não combina com a multiplicidade que a filosofia precisa ter para ser criativa”, comenta o professor da UFSCar, Eduardo Baioni, que é da área de filosofia moderna. Mas, embora lançasse seu olhar crítico e ácido para o excesso de burocratização para conseguir bolsas de estudo, ou para seguir na carreira acadêmica, a professora Débora lembra que “Bento era um filósofo muito produtivo. Ele não criticava para justificar sua falta de produção. Produzia bastante, mas se queixava dessa necessidade de contabilizar a produção”. De fato, Prado Jr. preferia ser autor de poucas obras perenes, significativas, a ser autor de uma obra vasta, mas passageira. Ele dizia que gostava de deixar para amanhã, porque queria que seus escritos durassem. E ficava satisfeito que seus trabalhos permanecessem vivos e capazes de influenciar filósofos por muito tempo. Por isso não teve pressa em publicar a tese sobre Bergson. O texto ficou 20 anos na gaveta, antes que chegasse às prateleiras das livrarias. É verdade que esse não foi o único motivo. Como já foi dito, Prado Jr. foi exilado, morou na França, voltou ao Brasil apenas em meados da década de 1970, e foi só quando a ditadura militar acabou, em 1985, que ele pôde pensar em lançar Presença e Campo Transcendental. Contudo, tanto ele quanto os colegas concordam que foi essa publicação que fez de seu nome um dos mais importantes aqui e no exterior.
Grande prazer em ser filósofo
Aliás, poucas coisas lhe deram tanto prazer como esse reconhecimento internacional. Débora revela que certamente essa alegria foi um dos combustíveis para os últimos anos de vida e de produção de Prado Jr. “Ele era movido à alegria. O prazer de estudar, de conhecer, de fazer ensaios. Ele tinha um grande prazer em ser filósofo”. Paulo Arantes, hoje aposentado, era também um amigo pessoal de Prado Jr. Encontravam-se sempre e falavam-se pelo menos uma vez por semana desde o final da década de 1960, quando Arantes ingressou na faculdade de filosofia – “em primeiro lugar, depois de passar pelo exame oral com o Bento”, faz questão de lembrar. Ele afirma, e os outros dois colegas filósofos concordam: “Bento era a figura do filósofo, era O próprio filósofo”. Débora lembra que isso pode soar meio pedante, ou polêmico, mas era exatamente assim. “Ele trazia isso para o dia a dia, para o pensamento, para o almoço, para as aulas, para os colóquios”, completa Baioni. “Bento entendia que a filosofia não precisava ficar trancada dentro dos muros da universidade. Ele levava a filosofia para onde ele estivesse. Na sala de aula, na mesa do bar. Ele filosofava o tempo todo, 100% do tempo”, anima-se Arantes.
Talvez por isso sua morte esteja sendo tão sentida pelos alunos, pelos colegas e pelos amigos. O crítico literário Antônio Cândido, em entrevista à Folha de S. Paulo de 13 de janeiro, traduziu esse sentimento assim: “Mortes como esta diminuem demais a graça da vida”. Mas não é só a figura bem humorada e cheia de prazer em viver; não é só filósofo de pensamento livre e abordagem mais aberta que o Brasil perde. É um estilo. Quando perguntado sobre qual era a essência do pensamento de Bento Prado Jr., Paulo Arantes pensa um pouco e responde: “Sei lá...”. Ele explica a aparente dúvida: Prado Jr. podia desde abrir um dicionário, escolher um verbete como verdade ou democracia e dar uma aula sobre aquilo, até se debruçar anos sobre um pensador e tirar dali várias idéias novas. Mas Bento era, sobretudo, “um estilo em busca de um assunto”, reforça. Arantes se refere às críticas que Prado Jr, assim como outros filósofos brasileiros, recebem por não terem um pensamento original, fundador de uma nova escola. O professor aposentado explica que Bento era original não por semear um pensamento inédito, mas pela construção que fazia da filosofia, tendo-a como companheira profissional e pessoal. “Como não é original alguém que defendia que poesia e filosofia, suas paixões, eram a mesma coisa, só se diferenciando na forma?”, pergunta Arantes. “Ele era uma auto-paródia, traduzia seu estilo próprio até nas roupas, imagine que usava gravatas-borboleta”, brinca.
O contato do professor Bento Prado Jr com a poesia remonta a infância. Ele e seus irmãos cresceram num ambiente muito rico intelectualmente. O pai, um Almeida Prado, era professor de Latim e leitor de grandes autores. Bento cresceu cercado de literatura. Como diz Paulo Arantes, isso fez com que ele já chegasse alfabetizado à universidade, porque além de leitor voraz, era um poeta bissexto. Certamente a aproximação da filosofia com a literatura foi algo quase natural no caminho de Prado Jr. “Ele gostava de trabalhar com áreas fronteiriças e trazia a literatura para a filosofia não só no conteúdo do que escrevia, mas também na forma como escrevia”, conta Baioni. “Era um dos melhores textos – se não for o melhor – entre os filósofos. Ele se deixava levar pela literatura, era um ensaísta, o que tornava suas obras muito prazerosas de ler”, lembra Débora. “Trocar em miúdos A fenomenologia do espírito e fazer disso um papo delicioso é um talento raro. Ele fazia exatamente isso. Era a própria inteligência funcionando. E tinha uma prosa ensaística, cheia de graça”, completa o colega da UFSCar. A aproximação com a literatura também rendeu o posto de crítico literário a Bento Prado Jr., que gostava muito de encontrar intersecções entre a filosofia e as demais ciências humanas.
Além da filosofia
“Bento conhecia antropologia, sociologia e tinha trabalhos muito interessantes unindo filosofia e psicanálise”, conta Débora. Novamente sua aproximação com as áreas para além da filosofia tem uma origem pessoal – sua esposa é psicóloga e ele acabou se interessando muito por Sigmund Freud e por Jacques Lacan. Vale lembrar que o contexto histórico também foi aliado e favorável. Nos anos 1960, a primeira geração de filósofos brasileiros estava encharcada até a alma da influência das escolas francesas. Acontece que, naquele país, segundo Paulo Arantes, a filosofia estava passando por uma revolução e se abrindo para as demais ciências humanas. Estava muito influenciada pela antropologia de Claude Lévi-Strauss, pela lingüística de Auguste Saussure e pela psicanálise de Jacques Lacan. Naquele momento dizia-se que a filosofia havia acabado e que o que importava era o comentário filosófico. Os filósofos, então, deviam ser grandes comentaristas, críticos literários e aproximadores de áreas fronteiriças. Prado Jr. faz exatamente isso. O professor Paulo Arantes explica ainda que foi esse movimento o responsável por fazer da filosofia um sucesso de público no mundo e no Brasil. O mercado leitor/consumidor de filosofia existe e tem o tamanho que tem hoje (que não é pequeno, haja vista os cafés filosóficos, os cursos de extensão, instituições como a Casa do Saber) por conta desse movimento que a filosofia fez nos idos dos 60. E Bento Prado é um grande incentivador dessa guinada, quando liga áreas das ciências humanas e quando se inspira na boa literatura para produzir uma filosofia gostosa de ler e de ouvir.
“E ele teve essa trajetória e essa preocupação em traduzir a filosofia para algo leve e cheio de graça porque era um homem extremamente generoso”, frisa a professora da UFSCar. “Ele gostava muito de compartilhar seus conhecimentos, era generoso – o que é uma coisa rara no meio acadêmico, muito personalista e competitivo. Mas por ser assim generoso Bento fez grandes discípulos, que vão dar continuidade a essa filosofia criativa e livre”, concorda Baioni. O depoimento que talvez melhor traduza a figura do filósofo Bento Prado Jr vem na voz de seu amigo de mais de três décadas, colega de profissão e assumido admirador, Paulo Arantes: “Depois da minha primeira aula na Filosofia, Bento – que lembrava de mim por ter me examinado no vestibular e lembrar do meu nome no movimento estudantil – me chamou para tomar um chope. Eu saí desse papo filosófico às seis da manhã, totalmente convertido ao culto da pessoa e da inteligência do Bento. Para mim, a vida do espírito – como ele mesmo gosta de chamar – começou exatamente ali, com Bento Prado Jr.”, conclui.