Por Francisco Bicudo e Elisa Marconi
O repórter brasileiro Luis Kawaguti desembarcou pela primeira vez em Porto Príncipe, capital do Haiti,em março de 2005, disposto a acompanhar o cotidiano das tropas brasileiras que, por determinação da Organização das Nações Unidas (ONU), são responsáveis por comandar o processo de pacificação daquela pequena ilha da América Central, a primeira colônia americana a libertar os escravos, em 1794 (a independência viria em 1804), e onde atualmente vivem pouco mais de oito milhões de pessoas – a maioria absoluta em situação de miséria extrema. “A situação era grave, mas havia um grande desinteresse pelo tema. Minha intenção foi colocar o assunto em evidência. De alguma maneira, a impressão que tenho é que o futuro do Haiti está diretamente relacionado às ações diplomáticas e militares brasileiras”, afirma o jornalista, que visitou a ilha caribenha em outras três oportunidades, a última delas em maio de 2006. Inicialmente, suas reportagens foram publicadas em séries especiais pelos jornais Diário de S. Paulo e O Globo; no final do ano passado, reunidos, os textos transformaram-se no livro A República Negra, lançado pela Editora Globo.
Em suas quase 200 páginas, a obra registra um olhar brasileiro sobre um dos mais sangrentos conflitos da história recente do continente, ajuda a desfazer mitos e preconceitos e surge como material pedagógico de referência para ser usado em sala de aula. “Ele (Kawaguti) conheceu uma terra do absurdo, pilhada e abandonada sem perspectivas, uma derrota da civilização onde pessoas se esforçam para encontrar a própria sobrevivência num horizonte dominado por uma miséria que tudo explica e tudo governa”, escreve o também jornalista Paulo Moreira Leite, na apresentação do livro.
Em “A República Negra”, referência explícita aos 96% de negros que formam a população haitiana, Kawaguti não se propõe a discutir a pertinência ou não do envio das tropas brasileiras ao Haiti nem está disposto a avaliar se essa participação é coerente com os princípios gerais da atual política externa do Brasil. Prefere deixar esse debate para os acadêmicos, estrategistas e especialistas em relações internacionais. Sua intenção era contar histórias, reportar e revelar o que viu e ouviu e oferecer a possibilidade de a opinião pública brasileira encontrar-se com aquele universo tão distante, e tão próximo. “Quando você desembarca no país, o choque é enorme. É como se estivesse chegando a uma gigantesca favela, em regime de ocupação. O Haiti inteiro é assim, exceção feita a pequenos bolsões, onde vive a aristocracia”, conta. Vale lembrar que, em 2004, o Haiti ocupava a 153ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU. É a nação mais pobre do ocidente, onde a taxa de desemprego atinge 80% da população, o índice de analfabetismo é de 45% e a expectativa de vida chega a apenas 52 anos.
Cenário de desagregação social
Esse cenário de desagregação social pode ser considerado conseqüência direta de uma história marcada pelo domínio francês e norte-americano, por golpes de Estado e por governos tirânicos e autoritários, que sempre atuaram em benefício de uma minoria privilegiada da população, em detrimento da imensa maioria do povo, colocado à margem não apenas das decisões políticas, mas do acesso a mínimos direitos capazes de garantir a dignidade humana. Em 1990, depois de um longo domínio da sanguinária dinastia Duvalier, o país parecia respirar aliviado com a escolha de Jean Bertrand Aristide para a presidência, em eleições diretas referendadas por observadores internacionais. Ex-padre e adepto da Teologia da Libertação, Aristide prometia colocar o Haiti no rumo da democracia e da justiça social. Sua administração, no entanto, durou apenas sete meses, e foi derrubada por um golpe liderado por militares que não aceitavam um governo de esquerda. O ex-presidente foi obrigado a se exilar na França; no Haiti, esse período foi novamente marcado por perseguições, muitas prisões e torturas, além de intensas negociações internacionais e pressões da ONU, até que Aristide pudesse reassumir o poder, em 1994, e concluir seu mandato em 1996, passando o cargo e a faixa presidencial para o partidário e esquerdista René Préval, também eleito pelo voto popular.
Ao término dessa administração, em 2001, Aristide seria eleito para um segundo governo – este, no entanto, não chegou ao fim. “A situação política se tornou praticamente insustentável para Aristide nos últimos meses de 2003. Manifestações que o acusavam de fraude eleitoral, corrupção e envolvimento com o tráfico de drogas rebentaram por todo o país. (...) Em janeiro de 2004, escolas e hospitais já não podiam mais funcionar, e o governo estava em colapso. O conflito armado irrompeu sangrento em Gonaives e, em poucos dias, os insurgentes tomaram as principais cidades do norte. Os esforços diplomáticos e as milícias armadas leais ao presidente não bastaram para conter a crise”, relata Kawaguti em seu livro. No dia 29 de fevereiro de 2004, acuado, Aristide renunciou ao cargo e buscou refúgio na República Centro-Africana. O vácuo de poder e a completa falta de representatividade do governo provisório liderado por Boniface Alexandre, presidente da Suprema Corte, lançaram o Haiti ao caos e a uma situação que os organismos internacionais classificam de “conflito armado”: de um lado, as forças policiais e golpistas do país; na outra ponta, ex-representantes do Exército dissolvido e gangues e milícias leais ao presidente deposto, que reuniam tanto grupos ligados à bandidagem quanto organizações de militância política. Pressionado, o Conselho de Segurança da ONU decidiu criar a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), liderada por tropas brasileiras, que chegaram a Porto Príncipe em junho de 2004.
Segundo Kawaguti, os soldados gaúchos, que foram os primeiros a desembarcar no Haiti, ainda acreditavam que se tratava de uma missão de paz clássica, sustentada por iniciativas como a distribuição de cestas básicas e a promoção de ações sociais, quando se viram no meio de um conflito armado de graves proporções. Para garantir o sucesso da missão, o jornalista lembra que a própria ONU mudou seus parâmetros de atuação, admitindo, nesse caso específico, o uso da força e o confronto direto com os rebeldes. “Eram princípios mais rigorosos, mais ativos”, reforça o repórter. Quando Kawaguti desembarcou no Haiti, em março de 2005, estavam chegando também novos contingentes militares enviados pelo Brasil, desta feita formados em sua maioria por oficiais paulistas, e já conhecedores da gravidade da situação e do tipo de ação que teriam de desenvolver. No início das operações, muito em função do futebol, uma das paixões do povo do Haiti, a população local acabou por receber de forma amistosa as tropas brasileiras, que inclusive representavam, para os haitianos, uma espécie de proteção contra a truculenta polícia nativa. “A empatia foi grande, nossos oficiais tinham muito jogo de cintura e souberam cativar”, completa o autor do livro. “Mas é claro que o enfrentamento com os rebeldes acabou desgastando em alguns momentos essa relação”, completa.
O jornalista brasileiro faz questão de ressaltar que o livro não representa a defesa incondicional da atuação das tropas brasileiras. “Vi situações boas e ruins e me preocupei em relatá-las”, afirma. Em relação à primeira vertente, ele destaca como uma ação positiva a pacificação do bairro de Bel Air, uma enorme favela com quinhentos mil habitantes, localizada na região central de Porto Príncipe, e que representava um dos principais focos do conflito armado. “Era uma grande ameaça, mas uma estratégia de ocupação que combinou o estabelecimento de pontos fixos com a criação de ligações entre essas bases acabou por controlar os rebeldes e pacificar a região, sendo ainda considerada pela ONU um modelo de ocupação militar a ser seguido”, diz Kawaguti. O jornalista brasileiro elogia também a participação dos militares e dos diplomatas brasileiros nas últimas eleições presidenciais do Haiti, realizadas em fevereiro de 2006, e que reconduziram ao poder o técnico agrônomo René Préval. Depois de adiamentos, de denúncias de fraudes, de boatos de novo golpe e de equívocos na divulgação antecipada dos resultados, foi possível firmar um pacto nacional, sugerido e liderado pelo Brasil, que controlou nova onda de violência que já se alastrava pelo país e permitiu finalmente a posse de Préval, em 14 de maio de 2006 – momento que marca também a última passagem de Kawaguti pelo Haiti. Em relação aos pontos negativos da atuação dos brasileiros, ele destaca agressões que teriam acontecido contra membros da resistência haitiana, e que envolveriam desde denúncias de espancamentos e de torturas para obtenção de confissões e informações até tiros que foram disparados sem real necessidade.
O jornalista conta que deve retornar à ilha caribenha em abril, para um balanço do primeiro ano da nova administração. “Quando saí de lá, as tropas brasileiras ainda enfrentavam um severo desafio, que era a rebelião na favela de Cité Soleil, o último reduto da resistência”. O autor de “A República Negra” diz que não há previsão para o fim das ações brasileiras no Haiti – o presidente Préval já inclusive solicitou à ONU a prorrogação do mandato da missão, solicitando que as tropas estrangeiras fiquem no Haiti pelo menos até o final de seu governo, em 2012. Embora não seja um especialista na área, mas com a autoridade de quem viveu muito de perto a realidade dramática do Haiti, Kawaguti não tem dúvidas: as ações militares precisam ser acompanhadas por um forte investimento na área social. “Só com segurança, sem projetos econômicos e sociais, a pacificação e o desenvolvimento não se concretizarão de forma efetiva”, finaliza.