Entrevista com Isa Kabacznk, coordenadora do Ambulatório de Interconsulta da Infância e Adolescência do Hospital das Clínicas
Como você começou a estudar o tema da depressão e do suicídio na adolescência?
Eu sou coordenadora do Ambulatório de Interconsulta da Infância e da Adolescência do HC e por lá passam todos os casos diagnosticados de crianças e adolescentes com transtornos psíquicos. E o que a gente vem percebendo é um aumento muito grande no número de casos e, pior, fomos tendo contato com os dados mais recentes sobre depressão e suicídio nessa fase da vida.
E quais são esses dados?
Segundo a Organização Mundial de Saúde, o suicídio já é a terceira causa de morte entre os jovens. A gente não tem dados sobre isso no Brasil, mas em relação aos transtornos psíquicos sim. Nos Estados Unidos, 18% dos jovens desenvolverão algum transtorno psíquico. Aqui no Brasil, os dados não são unificados, mas a gente tem números que indicam que entre 14 e 22% dos adolescentes terão algum tipo de transtorno. Estão aí incluídos ansiedade, compulsão e principalmente depressão.
Mas esses números aumentaram mesmo, ou agora estamos contabilizando isso de forma mais intensa e dando mais visibilidade ao assunto?
Não, aumentaram mesmo. Aumentaram também os estudos, os dados, mas o crescimento de casos é real, é substancial.
E por que esses jovens estão ficando mais deprimidos?
A depressão na adolescência sempre existiu. Mas o que vemos hoje é um mundo muito mais exigente. E também vemos que esses meninos e meninas vêm de famílias desestruturadas, pais sem tempo, crianças e adolescentes sem projetos de futuro. Existe uma população de risco, que são os adolescentes expostos, na família, a abuso de álcool e drogas, ou que sofreram traumas violentos, como seqüestros, assaltos, ou outros episódios de violência. Também entram aí acidentes, doenças mais sérias ou eventos que deixem o jovem imobilizado por um tempo. Mas tem também a população de adolescentes que está fora desse grupo de risco, mas que sentem depressão mesmo assim. Outro dado importante é que 95% dos jovens que tentaram ou cometeram suicídio tinham algum transtorno mental associado, normalmente depressão. Um terço desses também tinha esquizofrenia. Agora, é importante diferenciar depressão de tristeza.
Fazer parte da população de risco está mais relacionada a pertencer a uma ou outra camada social?
A maioria dos estudos afirma, de um jeito ou de outro, que as populações de baixa renda estão sim mais sujeitas a entrar nos grupos de riscos. Os jovens dessas classes têm mais chances de pertencer a uma família desestruturada, com pai alcoólatra, ou usuário de droga, por exemplo; também têm contato com a violência doméstica e urbana desde muito cedo e são desassistidos em relação às necessidades básicas. E isso eleva muito a chance de desenvolver um transtorno mental - principalmente aqueles ligados à auto-estima - e, com isso, também as chances de se tentar ou cometer suicídio. Entre as classes mais favorecidas isso tudo também acontece, mas o grau de assistência parece ser maior, então os adolescentes mais abonados têm menos depressão e cometem menos suicídio. Há estudos internacionais que provam que esse número de jovens de classe média e alta que cometem suicídio vem aumentando, mas ainda é inferior ao dos jovens de classes baixas.
Como é que os pais e educadores podem reconhecer um adolescente triste e um deprimido?
Tristeza é mais rápido. Acontece um fato, esse fato atravessa a pessoa, que fica triste, abatida por um tempo. Sei lá, morreu alguém, repetiu de ano, terminou com a namorada. Mas na tristeza não há perda funcional. Ou seja, para aquela pessoa, a vida continua, cedo ou tarde vai continuar. No começo é mais difícil, mas devagar a pessoa vai reagindo, sai de casa, volta para a escola. Como ela sai dessa? Sendo acolhida pela família, pela escola. Ou seja, se seu sentimento é aceito de forma acolhedora, isso minimiza o sofrimento e a pessoa sai dessa. Na depressão não. Primeiro que, normalmente, o que caracteriza a depressão não é uma tristeza profunda e sim mudanças de humor. Irritabilidade, impaciência agressão. Se o adolescente não era assim e passa a ser, vale a pena averiguar.
Mas não é comum o adolescente ter variação de humor, ficar irascível, não é próprio da idade? E aí como a mãe ou o professor podem diferenciar isso?
Olha, o adolescente bater a porta do quarto porque brigou com a mãe um dia é normal, esperado. Mas isso todo dia, várias vezes ao dia, chama a atenção, não chama? Se era uma menina doce e fica irritadiça, qualquer coisa agride os pais, os amigos, preste atenção. A hiperatividade brusca também pode ser um sintoma. O problema é que os pais, hoje, acham tudo normal. Não desconfiam do comportamento dos filhos. Também os professores vêem um aluno hiperativo e não relatam isso à coordenadoria porque ‘hoje em dia isso é assim mesmo’. A vida é dura para os adolescentes, eles são testados, colocados à prova, são obrigados a fazer escolhas importantes e a decidir quem são eles. Se ele é um cara flexível e tem mais esperança na vida, fica mais fácil, ele consegue lidar melhor com essa fase. Mas se é uma pessoa com a auto-estima muito lá embaixo, inflexível, esse garoto, ou essa garota vai ter muito mais dificuldade de atravessar a adolescência. Mas principalmente a visão de mundo pode mudar tudo. Se o adolescente acha e acredita que, mesmo com todas as situações adversas, as coisas vão dar certo, ele está muito mais protegido da depressão. Se ele perder a esperança, perde a ligação com a vida e aí está tudo perdido. Ele acha que não tem nada a perder. E aí acontecem aqueles acidentes que o menino de 18 enfia o carro no poste.
Ou entra para o mundo do crime.
Ou entra para o crime. Porque ele não tem auto-estima. Ele acha que para ter precisa ter poder. E ele vai buscar esse poder fazendo racha, assaltando banco. O adolescente, por princípio acha que é onipotente, que é muito poderoso, que nunca vai estar sozinho. Só que quando ele tem essa auto-estima abalada e uma situação familiar e escolar que não ajudam, é mais fácil entrar num caminho torto e se ferir muito.
E as escolas, como vêm lidando com tudo isso?
As escolas fingem que nada disso acontece. Pouco se mobilizam em relação a uma causa muito freqüente de depressão que é o bullying. Bullying é aquela perseguição que um grupo de alunos faz a um colega. Essas coisas têm sido cada vez mais freqüentes e mais graves. E, claro, as conseqüências têm sido cada vez mais graves. Estou falando de depressão mesmo, coisa séria. A gente tem que medicar os adolescentes, porque sofrem perseguições terríveis dos colegas de classe. Atos com tamanho grau de crueldade que a vítima desenvolve um transtorno mental mesmo.
E a escola não percebe? Nem a família?
Não. Quando percebem já é tarde demais. Um trauma já se instalou ali, o transtorno já apareceu, aí só um tratamento psicológico ou psiquiátrico mesmo. Não sei muito bem a razão pela qual a escola não percebe e não age. Não sei se professores e coordenação acham que não seja problema deles. Ou se têm receio de agir, porque imaginam estar entrando na seara dos pais. Mas ora, enquanto estão na escola, os alunos são responsabilidade da escola. A escola precisa proteger os adolescentes. E quanto aos pais, não é desculpa, mas eles têm passado cada vez menos tempo com os filhos. E quando estão juntos, a troca é quase nenhuma. Os filhos não falam e os pais não ouvem. E esse é o acordo na maioria das famílias.
Mas a depressão profunda, essa que leva a pessoa a tentar se matar, ou a se matar mesmo, não dá pistas?
Dá sim. A principal delas é o que a gente chama de inventário da desesperança. Ou seja, quando o adolescente bota a vida na balança e sente que não vai perder nada se der cabo da própria vida. Se ele não tem mais nada que valha a pena na vida, que o ligue à vida, nem que seja um cachorro ou um jardim, ele pode tentar suicídio. Mas para perceber isso, é preciso querer ver e ouvir, estar aberto para enxergar o tamanho da tristeza do filho, do aluno. E isso é duro, é doloroso. Os pais se culpam, a escola também. Mas as pistas estão ali. É só querer ver.
E como deveria então ser essa relação dos pais, dos professores e da coordenação com os alunos?
Em relação ao suicídio, por exemplo, ninguém fala sobre o assunto. Vira um tabu. É como se para as escolas e as famílias ninguém nunca tivesse atentado contra a própria vida. E esses números não param de crescer. É preciso enfrentar o problema, falar dele, falar das causas, das razões que levam alguém a tentar ou a se matar. É duro, claro que é. Mas é preciso falar abertamente sobre isso. E se houve algum caso, qualquer um na escola, claro que sem expor, aí o trabalho deve ser cansativo. Digamos que um menino que tenha tentado o suicídio foi internado, foi tratado e agora está voltando para a escola. Como ele tem que ser tratado pela direção? Pelos professores? Pelos colegas? Todo mundo vai fingir que não aconteceu nada? Que está tudo normal? Isso não dá resultado. É preciso orientar todo mundo, fazer um trabalho delicado de conscientização de todos os envolvidos.
O que significa isso na prática? Vida normal? Ou um excesso de zelo?
Se o médico liberou o paciente, vida normal, mas sem excessos. Mas a orientação maior é no sentido de acolher o adolescente. Acolher calorosamente. Esse menino e essa menina precisam saber e sentir que foram aceitos de volta à vida. E, se possível, se der, é bom tocar no assunto, deixar o paciente falar sobre isso. Sem forçar, claro, mas não deixar virar um tabu.
E os pais?
A mesma coisa em relação à acolhida. Só que tem que ser verdadeira. Olhos nos olhos, o menino tem que sentir que os pais o aceitam de volta à vida. E sem cobranças, pelo menos nesse momento. Um adolescente que atentou contra a própria vida está muito fragilizado. Em depressão, certamente. Não é hora de cobrar, de dizer a vergonha que você sente por ele ter tentado se matar. Que ele desgraçou a sua vida. Ele precisa se sentir aceito. E, de novo, não precisa virar tabu. Se o menino ou a menina quiser falar, é bom enfrentar o assunto. É importante também que o pai se coloque, diga que é um adulto e que vai compreender o filho e que não volte atrás nessa decisão. É legal dizer que também ele, pai, ou ela, mãe, também passam por tristezas, desesperanças. E saber, sem culpa ou vergonha, pedir ajuda. Seja na escola, seja numa terapia, seja para o pediatra do filho. O importante é não perder tempo e, em caso de dúvida, o ideal é consultar um psiquiatra, um terapeuta. Primeiro para que ele possa ajudar a identificar e, depois, para auxiliar no lidar com a questão.