Os trabalhadores têm o que comemorar neste Primeiro de Maio?
Não, eles não têm comemorações a fazer. Faz quinze anos, desde a implantação do projeto neoliberal, que eles vêm sofrendo intensamente com a perda de uma série de direitos históricos – e há ainda tantos outros ameaçados. E esses eventos que estão sendo organizados deveriam pensar na importância da data, com dignidade. Não é dia de festa, de shows, de sorteios, de receber financiamento de empresários para fazer esses shows. Isso tudo representa a negação do Primeiro de Maio. O que deveríamos fazer? Mostrar essa situação difícil, exigir a garantia dos direitos que estão sendo ameaçados, denunciar esse neoliberalismo que se alimenta do desemprego, que acentua os cenários de exclusão e miséria, que incentiva os trabalhadores e a se afastar de seus sindicatos, pois defende o individualismo. Não devemos alimentar falsas ilusões. Este não será um Primeiro de Maio digno da história dos trabalhadores. Deveria ser mais um dia de lutas, uma data para reorganizar forças, para refletir sobre como resistir às investidas do capital, e não para organizar festas com financiamento de empresários.
Você aponta uma série de dilemas e obstáculos colocados pelo neoliberalismo. De que forma o Primeiro de Maio poderia ajudar a idealizar estratégias de resistência à perpetuação desse projeto?
Olha, os trabalhadores estão começando – e eu insisto, começando – a sentir os efeitos da barbárie que foi a chegada do neoliberalismo, que desembarcou por aqui com cerca de dez anos de atraso, em relação a países como a Inglaterra, os Estados Unidos e o Chile. O que indica que, até o início dos anos 1990, conseguimos resistir a ele, à cartilha defendida por Margareth Tatcher (então primeira-ministra inglesa), Ronald Reagan (ex-presidente norte-americano) e até mesmo pelo papa João Paulo II. Num primeiro momento, muitos movimentos caíram no sedutor canto da sereia das reformas modernizadoras. Há dez anos, a sociedade brasileira era majoritariamente favorável às privatizações. Acreditávamos também que a causa principal do desemprego no país eram as leis “duras”, uma legislação que segurava o capitalismo e que por isso fazia com que os empresários se sentissem desestimulados a investir na produção e na criação de novos empregos. Esse é o discurso único, a cantilena repetida aos quatro cantos. Hoje, o cenário mudou, e a reação, não só no Brasil, mas na América Latina, é marcante. Estamos começando a perceber que fomos enganados por essa pregação. O momento já é diferente, e os trabalhadores estão começando a colocar em dúvida essas falsas verdades.
E quais são as marcas desse momento de descoberta e percepções novas? Que caminhos e alternativas ele é capaz de apontar?
O jogo ainda não está definido. Os trabalhadores estão começando a enxergar, a criar condições para mudanças, a dúvida está começando a se manifestar. E a dúvida não vem por conta de novos discursos, de projetos das esquerdas, que foram extremamente frágeis e incapazes de conquistar a hegemonia. Nesse sentido, fomos derrotados. Mas, na prática, estamos começando a ver a desgraceira que é o desemprego, que é o trabalho precário, que são os salários achatados. Há pouco temo conversei com um representante do sindicato dos telefônicos de Brasília e ele me contava que um sujeito com 30, 40 anos de idade, responsável pela instalação e manutenção de orelhões, recebia um salário médio de 500 reais. Um outro companheiro, dos metalúrgicos do Recife, lembrava que, há alguns anos, um trabalhador da área chegava a receber em média vinte salários mínimos. Na Ford, hoje, há vários colegas meus que ganham, como torneiros mecânicos, algo em torno de 700 reais. Isso sem contar as condições de trabalho, o estresse, a carga, as pressões, que são muito piores do que há dez anos. Então é esse o cenário que está começando a fazer com que os trabalhadores percebam que aquele discurso que dizia que o sindicato é inútil, que deve valer a livre negociação, que cada um negocia e acerta o seu, tudo isso é balela. A prática está começando a mostrar os resultados do neoliberalismo, e os trabalhadores começam a abrir os olhos e a enxergar. É um cenário portanto que exige uma atuação séria do movimento sindical, que tem a tarefa de ajudar a desconstruir e desmontar o discurso que defende o neoliberalismo como sinônimo de modernidade.
Quais as tarefas e exigências então que estão colocadas para os sindicatos? Como eles devem agir?
Há momentos em uma guerra em que você conseguiu acumular tanta força que você parte para o confronto e para o ataque, para o tudo ou nada, para a batalha final, até para acelerar o final do conflito. Não alcançamos nem minimamente esse momento. O que devemos fazer hoje é organizar as tropas, essencialmente. E não sabemos ao certo quanto tempo essa organização irá demorar. Pode ser que levemos décadas. O fracasso das experiências socialistas, somado ao avanço do neoliberalismo, não nos permite criar ilusões e imaginar que estejamos próximos dessa batalha final. Nosso dever é fazer as lutas possíveis, tanto nas campanhas salariais, algo mais pontual e específico, quanto em momentos mais globais, como as lutas por reforma agrária e educação pública, gratuita e de boa qualidade. E, nessas lutas, precisamos conscientizar, dar os passos organizativos, acumular forças, investir em formação política, que deve acontecer a partir das experiências e referências práticas. Precisamos entender a realidade, os impactos da reestruturação produtiva, o futuro dos empregos e do trabalho, para então definir coletivamente como responder a tudo isso. É uma organização que deve acontecer no calor das batalhas, com uma forte dose de reflexão.
E o governo Lula? Contribui para o avanço dessa resistência ou consolida o projeto conservador?
O que o governo deve fazer é facilitar a auto-organização dos trabalhadores. Ele não pode atrapalhar ou interferir, pretender ajudar a organizar essa resistência. O imaginário construído com a eleição do Lula, em 2002, o primeiro operário e líder de um partido de esquerda a chegar ao poder no Brasil, dizia que os trabalhadores iriam se dar melhor, que o presidente os representava. Mas esse imaginário precisa ser concretizado, ele não é automático. Claro que se fosse um neoliberal de carteirinha e com longos anos de trajetória, a conjuntura seria muito mais desfavorável. O fato de ter na presidência um trabalhador encheu de esperanças as classes trabalhadoras, mas, insisto, esse fato não é garantia de que teremos avanços. É só pegar o caso da reforma agrária, que não tem caminhado a contento. Se pensarmos nas leis trabalhistas, os setores conservadores da sociedade insistem em flexibilizar esses direitos. Os trabalhadores devem resistir. E um governo eleito pelos trabalhadores deve estar ao lado deles para impedir que isso aconteça. Se não for assim, o sentimento de frustração poderá ser muito grande.
Falando um pouco do seu livro, que resgata a história dos trabalhadores brasileiros. Como surgiu a idéia? Como foi o desafio de organizar todos esses relatos em uma única obra?
Foi uma experiência apaixonante. Eu dou um curso para trabalhadores, já há quinze anos, e eles invariavelmente manifestam verdadeira paixão em conhecer essa história. Em todas as oportunidades, me pediam a indicação de livros sobre o tema, e eu apontava umas 50, 60 obras. São todas ótimas indicações, mas é claro que um trabalhador não tem tempo para ler todas elas. Essas obras davam contas de momentos, de fragmentos da trajetória dos trabalhadores, eram artigos, teses, dissertações sobre aspectos muito isolados, temas específicos e singulares. Eram peças de um quebra-cabeça que precisavam ser articuladas e resumidas. Nós precisamos conhecer nossa história. E eu ficava pensando nisso, sempre prometendo, prometendo, até que não teve jeito. O livro, portanto, é um simples compêndio, uma síntese, que serve para militantes, professores, estudantes, com linguagem acessível para esse público. Demorei dez anos para escrever esse livro. E o resultado tem sido bastante razoável, pois a primeira edição, com quatro mil e quinhentos exemplares, já está se esgotando.
Sem esgotar o conteúdo da obra, para não estragar as surpresas, você poderia destacar algumas passagens mais representativas dessa história?
Olha, o livro briga o tempo inteiro com uma idéia antiga vendida pela mídia, pela história oficial, que diz que o brasileiro é passivo, não luta, que todos os avanços e conquistas acontecem lá fora, e que por aqui todo mundo é bonzinho, somos os homens cordiais. É uma balela, uma posição ideológica que pretende deixar o povo cada vez mais desmobilizado e atordoado, anestesiado. O livro mostra que, na verdade, no Brasil se luta, se morre, se briga muito para alcançar direitos de cidadania. Tem uma passagem do livro que mostra que, em 1908, no início do século passado, portanto, estava sendo construída a estrada de ferro Sul-Espírito Santo, que ligaria o porto do Rio de Janeiro à Cachoeira do Itapemirim. Houve então uma greve dos peões da obra, por conta de atrasos no pagamento. Durou quatro dias. Ao final do movimento, a polícia, a cavalaria do Rio de Janeiro, chegou à obra, e já chegou atirando. Foram centenas de feridos e mais de 70 mortos. E isso não é contado nos livros tradicionais. Estava numa apostila de um colega meu. Não acreditei. E fui checar no Jornal do Comércio da época, em arquivos da Biblioteca Nacional, e de fato lá está o relato microfilmado desse episódio. Essa mesma resistência se espalha pelos mais diferentes momentos da nossa história. E os grupos que brigaram contra a ditadura militar? E as atuais mortes no campo? E depois ainda falam que os brasileiros são passivos, não lutam...