Passada já uma semana da chegada do Papa ao Brasil, como podemos analisar a visita de Bento XVI ao país? Por que ele escolheu o Brasil e, afinal, o que veio fazer aqui?
Vamos começar com a decisão de ele vir para cá. Bento XVI praticamente começa seu pontificado vindo para o Brasil. Ele ainda não tinha feito nenhuma grande viagem como foi essa, então foi – certamente – uma decisão estratégica. Exatamente como João Paulo II, Bento XVI está preocupado com a realidade de uma religião que perde fiéis a cada dia. Ele reconhece essa realidade e está se mexendo para minimizar o problema. Aí ele escolhe o Brasil, que é sabidamente, uma nação de maioria católica, mas que também perde muitos fiéis para as outras religiões, para vir passar uma mensagem aos fiéis.
Agora, em vez de condenar abertamente a migração de católicos para as igrejas evangélicas, o Papa escolheu um outro caminho, não?
Sim, ele preferiu aprofundar e reafirmar os valores das práticas católicas a culpar os evangélicos. Veja que falei em identidade católica e não cristã. Bento XVI veio resgatar e reafirmar essa identidade católica, do cumprimento de todas aquelas normas, com toda a ortodoxia proposta pela Igreja.
Mas é uma postura arriscada, não é? Quanto mais conservadora e mais cheia de regras é uma religião ou doutrina, mais difícil de ser seguida? Ou seja, o Papa não está arriscando perder mais fiéis?
Olha, é e não é arriscado. Porque, veja, ser católico no Brasil é mais ou menos como ser negro ou branco. Por aqui a gente admite que a pessoa é aquilo que ela se proclama ser. Quando se proclama negra, é negra, independentemente da cor da pele. Quando se proclama católico, é católico, mesmo que não vá à missa, que não tenha casado na igreja, que use camisinha, ou outro método anticoncepcional, por exemplo. Ou seja, no Brasil, existe uma identidade de fundo que é ser católico. E ser católico aqui significa inclusive ter acesso, acreditar e praticar outras religiões e doutrinas. Então a pessoa é católica, mas vai ao centro espírita, vai ao candomblé ou a umbanda. Por isso ser católico no Brasil é uma identidade para além da doutrina.
Isso quer dizer que o enrijecimento do discurso, a cobrança por uma postura mais conservadora não terá efeito para a maioria dos brasileiros?
Um discurso conservador como o do papa Bento XVI claro que é importante e traz uma série de conseqüências, mas, de verdade, não vai alterar a maneira como as pessoas vão seguir vivendo suas vidas. A pessoa vai continuar se pronunciando católica e vai continuar se prevenindo da gravidez, vai continuar abortando, vai continuar tendo relações sexuais fora do casamento e assim por diante. A presença do chefe de uma religião no país é algo muito importante, claro. Foi uma festa aqui, as pessoas seguiam o papa, queriam ver, tocar, ouvir sua mensagem. Mas não significa que isso vai mudar a postura e as atitudes de toda aquela multidão.
Então, se não são mudanças na postura imediata da população, quais são os efeitos reais da visita e da pregação do Papa?
Como eu disse, é claro que uma visita dessa natureza, e com a importância dos temas tratados, tem efeitos. Efeitos até importantes. Podemos dividir esses efeitos em duas áreas. A religiosa e a política. Na área religiosa é impossível não prestar atenção na reação e no crescimento do discurso da ala mais conservadora da Igreja. Uma ala que nega o Concílio Vaticano II. Uma ala que também afirma que a Teologia da Libertação, uma corrente muito forte na América Latina e com grande apelo entre as camadas sociais mais excluídas, é a responsável pela divisão da Igreja e pela conseqüente perda de fiéis. É importante lembrar que regiões onde a Teologia da Libertação não tem uma participação muito forte, como no Rio de Janeiro, a perda de fiéis é ainda maior que em lugares onde ela está presente. Portanto a reação conservadora parece realmente uma reação aos exemplos dados por parcelas da Igreja que, ao ouvirem as aspirações da comunidade, ao colarem seus discursos numa prática de grupo, de somar forças e de ter uma atuação popular, mantém os fiéis. Para a ala mais conservadora da Igreja isso não é interessante, porque dá à atividade religiosa uma força política. E ao unir religião e política, os fiéis acabam dando sentido à sua vida e à sua luta. E isso é um ingrediente muito poderoso. E perigoso às vezes.
Esse é o efeito político a que você se referia?
Esse sim e mais alguns, bem importantes. Em Sociologia, a gente tem uma expressão que é o Efeito Perverso. O Efeito Perverso acontece quando o efeito de uma ocorrência não é o efeito que se esperava. Aconteceu exatamente isso na visita do Papa. A Santa Sé esperava que ao reforçar a identidade católica como uma identidade rígida, cheia de normas impossíveis de serem cumpridas, que isso ajudasse a manter os fiéis na religião católica. Reforçar os valores católicos, relembrar e cobrar essa obediência faria o Brasil se fortalecer como nação católica conservadora, e foi exatamente o oposto que aconteceu. A visita do Papa e sua pregação fizeram o Estado brasileiro vir a público para reafirmar seu caráter laico. Há muito tempo não era preciso repetir isso, não era preciso se colocar assim. E foi muito bom isso. De Brasília, passando pela mídia, até chegar na boca do povo, o Brasil reafirma que é um Estado Laico, que respeita igualmente todas as religiões e respeita até a não-religião. Ou seja, aqui o cidadão ou cidadã pode pertencer a qualquer religião, ou não pertencer a religião nenhuma, sem prejuízo dos seus direitos. E essa reafirmação da laicidade também dá um recado ao Vaticano. Com Concordata ou sem Concordata, nenhum Estado do mundo tem o direito de interferir no direito brasileiro.
E a questão do aborto? O Papa chegou aqui bem num momento em que se discutia isso, inclusive com declarações contundentes do Ministro da Saúde.
Esse foi o segundo Efeito Perverso. Em vez de sentenciar e silenciar as pessoas sobre essa questão, o Papa acabou ajudando a pôr mais lenha na fogueira. O debate já estava aberto, as posições do Papa ajudaram a esquentar ainda mais o debate. Eu li numa pesquisa que 67% dos brasileiros são favoráveis à manutenção da legislação sobre o aborto, exatamente como está. Enquanto as pessoas lêem isso e dizem ‘como a população brasileira é conservadora, é contra o aborto’, a leitura que a gente faz é que a posição dos brasileiros é muito positiva. Há alguns anos isso não era assim. Hoje, 40% dos brasileiros aceitam que o aborto aconteça em alguns casos.
Você falou sobre o respeito aos direitos do país. A Concordata entre o Vaticano e o Brasil desrespeitaria os direitos brasileiros?
Na verdade essa é a grande preocupação que fica depois dessa visita. Porque por trás do jogo político, fica um discurso para se encobrir algo que não é dito. E a preocupação é: quais são os termos desse acordo entre Brasil e Santa Sé? O presidente Lula e o ministro Temporão estão firmes em posicionar o Brasil como um Estado Laico e isso significa que aqui nenhum outro Estado tem o direito de interferir em questões ligadas à saúde pública, por exemplo. Mas a gente não sabe quais são os termos desse acordo, o que Brasil e Vaticano estão combinando. É grave a situação, porque o antigo vice-presidente da CNBB escreveu num e-mail que não existe Concordata nenhuma sendo negociada. Que o que existe é uma questão jurídica sobre a propriedade de terras pela Igreja Católica. Então, ou ele mentiu, ou nem ele sabe o que está acontecendo. E se nem ele sabe, imagine a população. E o Estado brasileiro tem obrigação – já que se diz firmemente laico – de passar para a população o que está em negociação com a Santa Sé.
Vamos voltar um pouco à questão da multidão que seguiu Bento XVI por São Paulo. Uma boa parte ali era de jovens. Não é surpreendente que em 2007 jovens sigam uma pregação tão conservadora? O que desse discurso todo pode tocar a vida desses adolescentes e jovens?
João Paulo II promoveu na cidade de Assis, na Itália, um grande encontro com os jovens. Foi um mundo de jovens de todas as partes da Europa e o jovem europeu é, sabidamente, o mais distante da religião. Bem, foi uma multidão de jovens, que ouviu a mensagem também conservadora do Papa. Ouviram tudo atentamente, mas em nada mudaram seus comportamentos ao saírem de lá. O jovem precisa de referencial, o jovem precisa de líderes, de mitos. Mas entre ouvir e participar da festa e seguir, à risca, seus ensinamentos vai uma grande distância. Alguns ali podem conseguir seguir a doutrina ortodoxa direitinho, mas a maioria, a grande maioria vai continuar perdendo a virgindade antes do casamento, não se mantendo castos, usando preservativos e até abortando. Isso sem deixar de ser católicos. Tanto lá quanto aqui, a presença do Papa é um grande show, um espetáculo, uma festa. Mas quando acaba, as pessoas voltam à normalidade. É que as pessoas precisam desses referenciais. E, se não for o Papa, pode ser o Senna, por exemplo. Basta lembrar do que foi o enterro dele.
E, para finalizar, como a Sociologia da Religião vê a Igreja Católica hoje? Porque me parece que é uma igreja dividida e cheia de possibilidades de caminhos a seguir. É isso?
É isso mesmo. É uma igreja cheia de divisões, mas, acredite, unida. Porque embora múltipla, é uma instituição que tem, de fundo, uma unidade muito forte. E alguns sociólogos já há bastante tempo falam não em catolicismo, mas em catolicismos. Agora, historicamente, a trajetória da Igreja Católica é assim mesmo, feita de divergências, que criam grupos, mas grupos unidos a uma crença central e única. E não são só as correntes mais avançadas que promovem esses rachas. Hoje temos a Teologia da Libertação, a Canção Nova, a Opus Dei, os grupos carismáticos todos, os Legionários de Cristo lá do México. Enfim, os grupos vão divergindo, criando correntes, mas sempre dentro desse grande guarda-chuva chamado Catolicismo. É uma igreja plural por natureza. O que é o oposto dos evangélicos. Entre os protestantes, se há um racha, o grupo sai e funda uma nova seita ou religião. E quanto aos caminhos, é difícil prever. Os dados que temos mostram que, embora exista um grupo conservador e outro mais avançado, temos de um modo geral uma visão muito forte dentro da Igreja Católica, que diz que é hora de começar a aumentar as ações contra as exclusões de todos os tipos, o que pede mudanças.