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A quem pertence uma história? O autor da biografia ou o personagem principal dela?

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo

A quem pertence uma história? Quem é o dono dessa história? O autor da biografia ou o personagem principal dela? A sociedade, se pensarmos no direito à informação? Essas foram algumas das questões suscitadas pela disputa judicial que culminou com um acordo que deu ao cantor Roberto Carlos a prerrogativa de retirar de circulação, no final de abril último, a biografia “Roberto Carlos em detalhes”, lançada em dezembro de 2006 pelo historiador Paulo César de Araújo. O episódio tornou-se alvo de acalorados debates envolvendo editores, escritores, advogados e jornalistas, a maior parte deles preocupados com o fantasma da censura e com os precedentes que a decisão pode criar em relação à liberdade de pensamento e de expressão.

A obra parece ter desagradado ao “Rei” não porque contivesse inverdades sobre sua vida pessoal, mas principalmente porque revelava ou relembrava fatos que o cantor não gostaria de ver divulgados – pelo menos da maneira como estavam contados. Em especial, o artista condenava as passagens que tratam do acidente de infância, que lhe custou a perda de parte da perna; os momentos finais e a morte de Maria Rita, a esposa que faleceu vítima de câncer em 1999; e o relato sobre seus casos amorosos. Roberto Carlos, no entanto, não afirmou em momento algum que Araújo estivesse inventando, ou mentindo. O que o cantor sempre alegou é que não havia autorizado a publicação de biografia alguma e que os episódios de sua vida pertenciam somente a ele.

O curioso é que o autor, fã de Roberto Carlos desde criança, passou 15 anos pesquisando sobre a vida do cantor e entrevistou cerca de 250 pessoas ligadas ao ídolo, justamente porque esperava que a biografia fosse, na verdade, uma homenagem. “O livro não traz nenhuma grande novidade, também não traz nenhuma revelação bombástica. É um trabalho de fã mesmo e só faltou o autor cravar no final: ‘Roberto, eu te adoro’”, conta Sergio Vilas Boas, especialista em biografias, professor e fundador da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL), e editor do portal Texto Vivo. Parece que o tiro saiu pela culatra. E, ao que tudo indica, a Justiça entendeu que a história que preenche as 500 páginas de Roberto Carlos em detalhes pertence mesmo somente ao Rei.

Repúdio à decisão
Mas se é assim que pensa a Justiça, não é essa a opinião majoritária de figurões do mercado editorial. Imediatamente após a decisão, o escritor best seller Paulo Coelho, por exemplo, veio a público repudiar a decisão. Também o compositor e escritor Caetano Veloso se posicionou contra o acordo judicial. “Ninguém contesta o direito de Paulo César Araújo escrever a história, ou de Roberto Carlos de querer que ninguém saiba de sua vida. O grande questionamento é sobre o papel da Justiça no episódio”, explica Sergio Vilas Boas, que também é autor de “Biografias & Biógrafos”, livro que trata das possibilidades e dos limites de contar a história da vida de alguém.

A crítica sobre a posição da Justiça brasileira tem boas razões para se manifestar. A primeira delas é que algumas editoras já começam a rever contratos para editar biografias. Segundo matéria escrita pelo repórter Tiago Cordeiro para o site Comunique-se, a própria editora Planeta, que publicou o livro sobre Roberto Carlos, estaria deixando para um futuro incerto e indeterminado um projeto de lançar uma biografia sobre o bispo Edir Macedo, fundador e presidente da Igreja Universal do Reino de Deus. Uma outra, sobre o compositor e atual ministro da Cultura Gilberto Gil, também estaria ameaçada.

Como o mercado editorial brasileiro ainda engatinha quando o assunto é biografias, Vilas Boas lamenta a decisão judicial e afirma que episódios como esses representam o que chama de tropeço. “Faz só uns quinze anos que o Brasil passou a publicar biografias com mais freqüência e essa decisão da justiça é um passo atrás, um desserviço para os leitores”. Chega a colocar em risco o hábito da leitura de biografias? “Não, acho que não é para tanto, mas acho que coloca em risco um direito adquirido, que é o de contar histórias livremente”, explica o professor da ABJL. Ele completa dizendo que, se essa postura das editoras transformar-se mesmo em fato consumado, o retrocesso só deixará transparecer ainda mais o amadorismo do mercado editorial brasileiro.

Estamos falando de censura então? O jornalista Alberto Dines defende essa linha de raciocínio e, na edição de 15 de maio do “Observatório da Imprensa”, transmitido em São Paulo pela TV Cultura, enumerou suas preocupações logo no editorial de abertura do programa. “Estabelecido o perigoso precedente de censurar uma biografia, breve teremos a censura de obras de ficção, censura de peças de teatro e censura de filmes sob o pretexto de que seus personagens se parecem com gente de carne e osso tiradas da vida real”.

A preocupação do veterano Dines é legítima. Afinal, a Constituição de 1988 aboliu definitivamente a instituição da censura no Brasil, garantindo o direito às liberdades de pensamento e de expressão. Segundo Dines, o que a Justiça fez foi, de uma maneira nova e que abre precedentes perigosos, instalar a velha censura. Ainda no mesmo “Observatório da Imprensa”, ao ser questionado por que a Justiça agira assim, por que havia favorecido o direito da privacidade contra o direito da sociedade de usufruir de uma informação, Marcello Cerqueira, advogado e procurador-geral da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, respondeu que a Constituição fala tanto da liberdade de expressão quanto da inviolabilidade da vida privada. Jogo empatado, segundo ele. Também pesa para o lado da Justiça a determinação do Novo Código Civil, que proíbe as biografias não autorizadas.

Biografia não autorizada
Mas, ora, o que é uma biografia não autorizada? Sergio Vilas Boas sugere que essa expressão e esse entendimento devam ser contextualizados, porque, segundo ele, não existe biografia totalmente não autorizada. “Sempre que se faz uma biografia, há sempre uma negociação, mesmo que informal, entre o biógrafo e o biografado”. O professor da ABJL se refere aos acordos e aos combinados que o autor de uma biografia sempre tem que cumprir e que sempre aparecem quando se está escrevendo sobre a vida de alguém. Seja dar um crédito, seja não revelar a fonte, seja ser delicado com as lembranças dolorosas de alguém. Esses acordos sempre acontecem, o que determina, segundo o especialista, a inexistência de uma biografia 100% não autorizada.

Outro problema grave que aparece quando um episódio dessa natureza se manifesta é uma involução no caminho ascendente que o mercado de biografias vinha conhecendo no país. Vilas Boas conta que essa percepção de que há espaço para biografias na estante dos brasileiros é recente no Brasil e ainda carece de apoio para que se fortaleça e cresça. Por isso, tropeços como o do caso Roberto Carlos, ou dos herdeiros de Manuel Bandeira (que estão contestando a circulação e a venda de uma biografia do poeta) ou de Léo Maia, filho de Tim Maia (que também questiona na justiça uma obra que conta a vida de seu pai a partir do depoimento de um amigo de Tim), não contribuem em nada para o desenvolvimento desse gênero literário. Aliás, “se fosse possível comparar, a biografia seria um réptil, um gênero ainda muito atrasado, enquanto o romance já seria algo de cibernético”, argumenta Vilas Boas.

Humanizar as grandes figuras
Para o especialista, biografias têm ainda outro papel importante no cenário brasileiro. Se feita com equilíbrio – expressão usada pelo autor de “Biografias & Biógrafos” – o gênero apresenta visões múltiplas sobre os personagens da história de um lugar. Esse olhar tridimensional pode ser muito revelador da vida e da obra do personagem e também dos acontecimentos históricos de uma localidade. “Num país como o nosso, é comum usar a velha máxima ‘aos amigos tudo, aos inimigos a lei’. É importante ter acesso a visões variadas sobre um personagem, para que a gente pare com as apologias e revele várias faces dele”, propõe Vilas Boas.

E isso humaniza as grandes figuras. O que, segundo o professor da ABJL, é um feito positivo, e não negativo, como imagina Roberto Carlos. “Ele acha que mantendo a vida pessoal totalmente afastada da vida como cantor vai preservar a imagem do personagem Roberto Carlos”, explica, “o que, primeiro, é impossível, porque a vida e a obra se completam e, segundo, é uma postura doentia, porque fatos da vida pessoal não rebaixam ninguém, apenas humanizam. O que é bom”.

Vilas Boas lembra também que apresentar os personagens não como heróis ou vilões a priori pode ter grande valor não só para o estilo biografia, mas também quando o assunto é educação. Humanizar as grandes figuras da nossa história, por exemplo, pode não só aproximar os alunos da História, como também revelar contextos históricos fundamentais para a compreensão do país hoje. Por isso, segundo ele, a importância de existir no mercado editorial sempre biografias novas, histórias bem contadas sobre a vida de alguém. “Novas e livres”, conclui o autor de Biografias & Biografados, inegavelmente concordando com Alberto Dines, quando o jornalista afirma que “biografia é história, e a história não pertence às pessoas – história é de domínio público”.

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