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Entrevista com Eric Nepomuceno

Já faz mais de onze anos que o episódio de Eldorado dos Carajás aconteceu. Por que falar sobre esse tema nesse momento? Como nasceu a idéia do livro?
A idéia do livro, na verdade, não é minha. Aqui no Rio de Janeiro existe um advogado criminalista chamado Nilo Batista. Ele é considerado um mestre na área e foi dele a sugestão de escrever sobre o julgamento anulado dos militares envolvidos no assassinato. Aí, em 2004, eu fiz a primeira entrevista. Falei com um líder do MST lá de Marabá, no Pará. Conversei com ele por mais de seis horas e, concluída a entrevista, eu entendi o óbvio: aquela história precisava ser contada. Mas ser contada inteira. Porque até ali a minha lembrança era semelhante à dos brasileiros medianamente informados.

Lembrava das imagens do noticiário?
É, de algumas imagens, de algumas matérias de jornal, de um certo julgamento anulado. Mas depois de conversar com esse líder sem-terra, entrei em contato com a barbaridade que foi aquele massacre e entendi que eu só tinha uma coisa a fazer em relação àquela história, que era contá-la. Eu não acredito muito naquele papo de que os assuntos é que vão ao encontro dos escritores, mas nesse caso foi exatamente o que aconteceu. E quanto mais eu mexia e pesquisava sobre o assunto, mais entendia que o que eu devia fazer era contar a história, para que ela não caia no esquecimento.

Gostaríamos que você contasse como foi sua viagem ao Pará para fazer as entrevistas, sua passagem por aquele estado, que parece representar um outro universo.
Olha, durante mais de 20 anos que trabalhei como jornalista eu perambulei pouco pelo Brasil, até porque vivi um bom tempo, mais de 10 anos, como correspondente na América Latina. A partir de 1986, quando deixei o jornalismo diário e me dediquei a outros projetos, como documentários, eu viajei mais pelo país. Mas nunca tinha ido ao Pará, eu não conhecia o Pará. E meu trajeto então foi o seguinte: saí de Brasília num domingo de madrugada e cheguei em Belém numa segunda, uma hora da manhã. E foi uma semana inteira muito intensa, onde fiz várias vezes o trajeto Belém-região de Marabá. Duas coisas me chamaram muito a atenção em todas essas viagens. A primeira é a paisagem física, são 170 quilômetros de pura devastação. É pasto, pasto, pasto, pasto e, de vez em quando um bosquezinho para a gente lembrar como deve ter sido a floresta ali. E no meio desses pastos me chamavam a atenção os tocos queimados do que um dia foi uma castanheira. A castanheira é uma árvore enorme que quando é atingida pela queimada, não cai, morre de pé e fica lá aquele toco queimado como que para lembrar que ali passou uma queimada para transformar floresta em pasto. Minha lembrança é de uma árvore nobre que morre de pé e serve de testemunho.

E a segunda referência forte?
É a paisagem humana nos assentamentos e na ocupação. A ocupação parece um assentamento, mas ali os sem-terra não têm posse de nada, estão no aguardo da desapropriação. Mas entrando nos assentamentos e nas ocupações eu vi o olhar dos assentados. E só me lembro de ter visto algo assim em Cuba. É uma dignidade. É uma pobreza tão digna. A gente vê uma vida restrita, claro, mas tão honrada. E eu lembro dos olhos dessas pessoas.

É diferente dos pobres de São Paulo e do Rio?
É diferente porque é uma pobreza digna e não o último estágio da degradação humana. Para os nossos parâmetros, é uma vida dura, cheia de restrições. Mas para eles, e na verdade é isso que importa, eles tocaram os céus com as mãos. Era um sonho tão sonhado, mas que agora virou realidade. E o olhar dos jovens é muito revelador. Porque nos assentamentos, as famílias crescem e aquela terrinha não dá mais para todo mundo. Então os jovens vão adiante, buscando mais terra e dão continuidade aos sonhos dos pais e dos avós.

E como foi a reconstituição da história propriamente dita?
Olha, foi um trabalho muito intenso, muito pesado de pesquisa. Eu li mais de vinte mil páginas de processos, tenho mais de cinqüenta horas de entrevistas gravadas – fora as que eu não gravei – e entrevistei mais de trinta pessoas. E o que posso dizer é que ninguém tem a mais remota idéia de o que é o Pará. A violência, os absurdos e a devastação. Não há imaginação de escritor, do melhor escritor, que consiga imaginar uma situação tão absurda quanto é a realidade do Pará.

Por isso você passou mais tempo no Pará?
Exatamente. Quando eu comecei a escrever me dei conta de que ninguém conhece e sabe do que acontece no Pará. Por isso parei tudo e comecei a pesquisar o estado e conto lá no livro sobre essa situação relacionada à terra, ao trabalho escravo, à violência, quanto se passa por cima da lei em nome da terra e por aí vai. Também só explicando isso dava para fazer o leitor entender a história do massacre. Aí sim, no segundo capítulo começo a falar da vida no assentamento Vila 17 de Abril, que é onde moram os sobreviventes do massacre. Digo no livro que lá a vida é simples, segue num ritmo de valsa. São casas simples, com aquela memória de infância rural, singela, sabe?

E dá para sentir no ar na Vila 17 de Abril a lembrança do massacre?
Ah sim, a lembrança está em toda parte, porque os sobreviventes são mutilados. São mutilados fisicamente. É gente com bala na garganta, no crânio, nas pernas. Tem um sem terra que já fez onze operações na perna, ficou com uma perna mais curta que a outra e não pode trabalhar. O governo prometeu botas ortopédicas há onze anos e até agora, nada. E também quando chegar não vai precisar mais, porque, enfim, já se passou tanto tempo. . . e são os mutilados da alma também, porque são viúvas, órfãos e vizinhos que passaram por isso. Viram aquela pequena multidão sonhadora ser violentada assim. E a lembrança fica ali rondando, porque eles conseguiram a terra, mas a terra representa morte. E isso é terrível para eles.

Mas você não deu voz só aos trabalhadores sem-terra... Como foi reconstituir a história com os outros envolvidos?
Eu acho que ali no meu texto não faço nenhuma grande revelação. O que fiz – e que ninguém tinha feito até agora – foi contar tudo. O antes, o durante e o depois. Ouvi os sobreviventes, os mutilados e os não mutilados. Ouvi muitas testemunhas. Muitas mesmo. Gente que estava ali e viu tudo, jornalistas, membros do governo estadual e tal. E pesquisei um vasto material do processo penal. Li os 112 depoimentos do inquérito da polícia civil e da polícia militar e conversei com os advogados do Major Oliveira e do Coronel Pantoja, que são as únicas autoridades militares condenadas e que estão em liberdade.

E como é escrever sobre tudo isso? Porque é difícil não se posicionar ou se posicionar e isso não afetar a apuração. Como você resolveu essa questão?
Eu posso garantir que a apuração foi muito minuciosa. Não há nenhuma informação no livro que não tenha, pelo menos, três versões. Então não há nenhuma dúvida de que o que eu relato ali aconteceu mesmo. É a verdade sobre o massacre. Na introdução do livro eu me apresento, coloco ali as minhas convicções e apresento as minhas conclusões e fim. Eu, Eric, vou até ali. A partir dali, é a história. E eu não interfiro na história. Agora, eu acredito que a vida é feita de escolhas e só de colocar ou não açúcar no cafezinho, você já está optando por um time, por um lado, tomando partido. Então eu não acredito na balela da neutralidade. O que eu acredito é na objetividade, na apuração objetiva. Então o que está escrito lá, aconteceu sim. São as minhas conclusões sobre o fato e a minha maneira de escrever. Mas é a história. Agora, tudo o que eu escrevo tem a minha cara, a minha história, a minha trajetória, os meus amigos, o meu mundo. E com esse livro não é diferente. E para que isso não interfira no que aconteceu mesmo, fiz uma pesquisa e uma apuração objetiva e minuciosa.

Você faz questão de afirmar que não se trata de um livro sobre o MST. . .
É, é uma advertência que gosto de fazer. O livro não é SOBRE o Movimento dos Sem Terra. O MST é um personagem do livro. O livro é sobre a impunidade, a covardia e a barbárie que se cometeu e se comete no país.

E você descreve o massacre, como o conflito começou, a barbárie que se seguiu?
Em detalhes, detalhes preciosos. E descrevo sob duas óticas. A de dentro, de quem estava lá e viu e sentiu tudo aquilo, e a de fora, em terceira pessoa. Eu aprendi essa estrutura com os cineastas, com os documentaristas. E com os laudos das necropsias fica muito fácil saber quem foi executado com tiro, quem morreu com golpe de pau na cabeça. Teve até um que morreu com uma foiçada. E aí eu narro o momento em que a polícia parte para cima dos sem-terra, quando se dá o massacre.

Como foi ouvir, ler e pesquisar tudo isso? Como é que dá para separar o mal-estar do dever de narrar?
Ouvir foi muito doloroso. E ler os laudos me causou muita indignação. Eu não testemunhei nada daquilo, mas vi todas as fotos das necropsias, falei com os jornalistas e só vi alguma coisa tão violenta na guerra civil de El Salvador. A guerra da Guatemala foi um pouco menos, da Nicarágua e do deserto do Saara bem menos. Então entenda que são momentos de uma violência ímpar. A polícia foi para matar mesmo. E é uma violência tão grande que não basta matar. É preciso matar e continuar matando para que não sobreviva nem a lembrança do morto. Mas o negócio é que a história das lutas populares faz lembrar – embora tudo faça força para a gente esquecer – que existem alguns mortos que não morrem nunca. No MST é isso que acontece. Os assassinados não morrem porque têm os filhos, as viúvas, os outros trabalhadores. E os filhos reivindicam a mesma terra que os pais reivindicavam. A violência que tive notícia, que apurei e que percebi existir ali, nenhum escritor, por mais inventivo e genial, teria condições de imaginar. Por isso demorei mais de um ano e meio para escrever. Fiz três versões anteriores e estava insatisfeito com as três e cheguei a ponto de desistir. Mas aí, em fevereiro deste ano, eu me tranquei e escrevi o livro todo de uma vez só. Fui até abril ou maio e em dez semanas ele estava escrito. Aí, claro, muita revisão, mas ele já nasceu assim, inteiro.

E quais são as suas conclusões depois desse processo longo e doloroso e depois do livro pronto e lançado?
A primeira conclusão é que é um ultraje se referir ao que aconteceu em Eldorado dos Carajás como um choque, um conflito entre a polícia e o MST. Não houve choque, nem conflito. Foi uma chacina mesmo. A polícia chegou disposta a abrir caminho à bala. E poderia ter sido evitado. Dessa maneira, é ultrajante chamar o acontecido de conflito. Foi uma matança mesmo. A segunda conclusão – são quatro no total – é que para mim, e espero que para o leitor também, o massacre foi mais uma reprodução de um dos males desse país que garante que certa elite faça uso da força pública para defender interesses privados. É um sistema que tem essa característica. E o uso da força é tão brutal que não há nenhuma lei nenhuma norma escrita, mas a ordem é cumprida sem que haja direito à defesa ou apelação. Simplesmente a ordem é cumprida. Quem ousa se posicionar contra, fatalmente morre. A terceira conclusão é que isso não é próprio deste ou daquele governo. É próprio deste sistema que expliquei antes e que se reproduz em todos os governos. E enquanto a questão agrária não for resolvida no Brasil, nada vai mudar. O trabalho escravo, a devastação da terra, a violência e os conflitos vão continuar exatamente como estão. Nada vai mudar e, por fim, a quarta conclusão é que para que esse sistema exista tem que existir a impunidade. E para que a impunidade aconteça, temos uma justiça que se corrompe, uma justiça facciosa. A impunidade faz com que a sociedade se mantenha dividida em castas e garantindo que esse sistema se reproduza eternamente.

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