Como foi idealizada e como está organizada a Jornada Interdisciplinar de Ensino do Holocausto?
A Jornada é uma estratégia pedagógica pensada há quatro anos e executada desde 2003. O intuito é estudar a fundo o Holocausto, coisa que normalmente não é feita, pensando esse tema como ponte para discutir as questões do anti-semitismo, da intolerância e da cidadania. Nossa idéia é despertar o professor para rever o passado, a história e, a partir daí, trabalhar com a questão do racismo, olhar para o Holocausto de forma crítica, com novos conhecimentos e novas estratégias. E essa é uma preocupação não só do meu grupo, no Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Descriminação. É de grupos ligados aos direitos humanos, às entidades judaicas, às secretarias de educação.
A senhora disse que normalmente o Holocausto não é um assunto discutido e trabalhado em sala de aula?
É, acredite, geralmente o Holocausto não é estudado. E se é, isso acontece de uma maneira muito superficial. Os professores em geral desconhecem as causas e as conseqüências do Holocausto. Normalmente sabem da morte de seis milhões de judeus e param aí. E isso é muito grave, porque o Holocausto teve e continua tendo conseqüências muito sérias até hoje e isso precisa ser conhecido, estudado, criticado. Ainda hoje, muitas gangues neonazistas se formam, atraem adolescentes e jovens, propagam idéias discriminatórias e violentas, e os professores não ligam os acontecimentos do Holocausto a essa violência de hoje. E isso é só um dos exemplos possíveis. Por isso a proposta é desenvolver uma estratégia multidisciplinar e transversal para atender alguns objetivos claros, como formar cidadãos que saibam conviver com seus diferentes e que coloquem em prática os direitos e deveres não só políticos, mas também civis e sociais.
A proposta da Jornada é que o ensino do Holocausto possa ultrapassar os limites de debates travados em aulas de história, em sala de aula?
Exatamente. Todas as disciplinas de todos os níveis podem trabalhar o Holocausto. Na aula de matemática, por exemplo, a questão dos números pode ser toda embasada em questões do Holocausto. Começando pelo famoso número de seis milhões de judeus assassinados, mas tantos outros milhares de pessoas exterminadas. Esses números são mais que retratos frios de um tempo, eles têm significados. Os usos e as manipulações desses números também são conteúdos valiosos. Quando olhamos as tatuagens feitas nos braços dos prisioneiros, eles são mais que numerais, são parte de uma história, de um contexto.
Ainda consigo lembrar de uma aula de química onde o professor, para que a gente nunca mais esquecesse do ácido carbônico, falava sobre a queima de corpos...
É, esse exemplo é formidável. O ácido carbônico é o H2CO3 e era usado na produção de armas, combustíveis e outras finalidades. Para conseguir matéria-prima para formar esse ácido, a solução bárbara encontrada pelos nazistas foi a queima de corpos, que libera água (H2O) e gás carbônico (CO2). E nunca mais você esqueceu de ácido, não é? Veja só: ao mesmo tempo estuda química e história e fica ciente do horror que foi o Holocausto. Então veja que quando as coisas são significadas, nunca mais perdem o sentido e não são esquecidas. É isso que a jornada propõe. A literatura também pode ser trabalhada a partir de relatos e biografias, histórias contadas para crianças alemãs e crianças dos países invadidos. É um material tão rico, cheio de expressões, de sensibilidades. Também em geometria, as figuras podem ser ressignificadas. Veja a Estrela de David, formada por dois triângulos sobrepostos, que representa tanto um povo quanto uma massa de gente subjugada, violentada, massacrada, quando aparece sobre a roupa de alguém.
É a importância de preocupar-se não com os fatos isolados, com a decoreba, mas com o sentido daquilo que é aprendido em sala de aula...
Quando o aluno começa a se conscientizar, começa a alcançar a dimensão simbólica do que é ensinado a ele, nunca mais perde essa capacidade. E ressignificar significa compreender, atribuir sentido, significa, em última instância, fazer daquele conteúdo exterior algo com significado para o mundo interior de cada um. E ninguém tira isso do professor, ou do aluno. É uma conquista e tanto. Esse exemplo simples da tatuagem, por exemplo. Uma tatuagem hoje é uma coisa. A tatuagem feita no braço dos prisioneiros é outra. Se o professor entender e puder ajudar o seu aluno a compreender que aqueles números ali marcados são a marca da tentativa de dominação de uma raça sobre outra, tentativa que é mais grave porque vem de uma ordem do Estado, estará cumprindo uma tarefa fundamental. A gente marca boi e cavalo, não gente. E o Estado marcar pessoas assim é algo muito delicado.
A senhora diz que a Jornada é baseada em novos conhecimentos e novas estratégias. Poderia falar um pouco sobre esses novos conhecimentos? São novas informações sobre o Holocausto?
São novos dados e informações que viemos recolhendo nos últimos anos. Os professores que não são de História certamente não têm acompanhado que desde 1995 os arquivos diplomáticos brasileiros estão abertos. E outros tantos arquivos na Europa, principalmente na Alemanha e na Itália, foram abertos. E com base no estudo desses arquivos, inclusive os do Brasil, é que tivemos acesso a documentos nunca antes revelados. Pouco se fala em anti-semitismo no Brasil, por exemplo, mas a era Vargas foi marcada por atos anti-semitas e isso está lá nos documentos. No Arquivo do Itamaraty há cartas dos diplomatas em missão nos países ocupados pela Alemanha nazista. Essas cartas trazem novos ventos para algumas questões, inclusive o envolvimento do país, a partir de 1933, no salvamento ou na morte de pessoas em perigo, através da concessão ou não de vistos de entrada no Brasil. Tem uma carta, em especial, que a gente gosta de citar, de um diplomata que não obedece à determinação do governo Vargas de não conceder vistos a judeus e emite uma série de vistos falsos e permite o salvamento de judeus. Por causa disso ele é processado e vai para uma aposentadoria compulsória. Ele então escreve uma carta ao então chanceler do Brasil, Osvaldo Aranha, onde diz que fez os vistos para salvar pessoas à beira do abismo e que não acredita que isso possa ser um erro. São relatos assim, cheios de emoção e que trazem novos conhecimentos sobre o Holocausto, inclusive de inserção do Brasil nessa história. E aí o professor que achava o Brasil um país tão neutro começa a entender que, opa, temos a ver sim com tudo isso que está aí. E temos informações sobre processos semelhantes na Argentina, na América Latina toda. Também sobre o envolvimento de setores da igreja católica fornecendo certidões de batismo falsas para salvar judeus. Tantas novidades que, em geral, não estão nos livros didáticos. E ali na Jornada o professor vai poder se atualizar e recontextualizar muita coisa.
A senhora fala em novas estratégias de abordagem do tema também.
É, a abordagem é multidisciplinar. Vamos trabalhar o Holocausto a partir de peças da música. Recuperamos músicas cantadas nos guetos e nos grupos de resistência. Silvia Lerner e Léia Freitag vão apresentar essas músicas. Vão cantar lá para os professores. Imagine que bonito voltar a um gueto através da música. Também vamos ter a apresentação de dois grupos de teatro, com destaque para o grupo Paidéia, que fez um trabalho belíssimo de resgate de texto, criação da peça e etc.
Mas essa estratégia é um roteiro pré-definido?
Não, não é uma estratégia engessada. É um ponto de partida para que o professor entenda que é uma arte ensinar e fazer lembrar do Holocausto e que, por isso mesmo, serve a todas as disciplinas. Damos sugestões, mas não temos um modelo pronto. Entre as sugestões, por exemplo, temos uma visita ao museu Lasar Segall, em São Paulo, onde há uma mostra permanente muito sensível e expressiva sobre a imigração forçada dos judeus para o Brasil. E aí, além da história, resgatamos as artes plásticas que, em geral, os alunos adoram. Preciso destacar também a mesa de debates que acontece com dois sobreviventes dos campos de concentração, momento bem singelo e emocionante mesmo.