Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Há duas décadas morria Carlos Drummond de Andrade. Mineiro de Itabira, uma cidadezinha do interior do estado, o poeta nasceu em outubro de 1902, foi autor de mais de 50 livros entre poesia e prosa e sua obra rendeu quase duas dezenas de antologias e de coletâneas – números grandiosos, que traduzem um pouco da importância dele para a literatura brasileira. Sem medo de parecer ser ufanista, até porque não é um crítico literário que se deixa levar por patriotadas, Antonio Cândido afirmou em certa ocasião que “Carlos Drummond de Andrade era o maior poeta vivo do mundo”, alguém que não ficava atrás de mestres da poesia portuguesa, como Fernando Pessoa, por exemplo.
Foi na tarde de 17 de agosto de 1987 que o velho poeta brasileiro morreu de mãos dadas com sua namorada, Lygia Fernandes, poucos dias depois da morte de sua própria filha, Maria Julieta, e poucos meses após ser homenageado pela Mangueira, escola de samba campeã do carnaval carioca naquele ano, com o enredo “No Reino das Palavras”. E, embora o país esteja há tanto tempo sem poder desfrutar da presença do poeta, ele não chega a fazer falta – essa é pelo menos a opinião de Letícia Malard e de Alcides Villaça, ambos professores de Literatura.
Antes que a afirmação cause espanto e protestos, eles explicam. Letícia, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acredita que “a gente não sente falta dele porque os livros continuam sendo editados, continuam chegando às pessoas, continuam sendo trabalhados nas escolas”. Villaça, da Universidade de São Paulo (USP), concorda e completa: “É claro que faz falta a pessoa do Drummond, é claro que a gente também sente falta do poema que ele não escreveu. Mas a obra dele está aí, aberta e viva. E continua nos ajudando a interpretar esse vasto mundo em que vivemos”. Essa sensação de presença constante do poeta, segundo o especialista, pode ser em parte explicada pela atualidade das obras do escritor mineiro. “A poesia de Drummond tem um quê de universal, de algo que não envelhece. E assim, ele permanece vivo. É assim que ele se vinga diariamente da morte”, resume.
Explicar o mundo
Ao mesmo tempo em que comentam a grandeza do poeta, os dois professores ressaltam que a obra de Drummond traz de maneira muito intensa essa preocupação de explicar o mundo, seja por revelar sentimentos universais, seja por fazer críticas irônicas à sociedade e ao sistema político. Para alcançar esse resultado, Drummond lançou mão de uma literatura múltipla. “Ele escreveu poemas, crônicas, contos e até crítica de cinema. Só não escreveu romances mesmo”, lembra Letícia. “E, em cada um desses formatos, ele tem vários estilos. Seus poemas têm jeitos e gêneros bem variados, assim como as crônicas”, completa Villaça. E o poeta foi grande também por isso: explorou como poucos os humores de cada tempo e expressou sentimentos e indignações que ajudam a compreender melhor os distintos momentos vividos pelo país e pelo mundo.
As crônicas, por exemplo, separam-se em linhas gerais em dois grandes grupos: as da juventude e as da maturidade do poeta. Quando moço, elas são mais extensas e reflexivas, como as publicadas em seu “Passeios na ilha”, de 1952; já um pouco mais velho, passa a escrever uma crônica mais carioca, mais voltada para as questões do cotidiano. “Essas têm um outro sabor, são mais humorísticas, falam das situações do cotidiano e fazem essa prosa da vida. São leves, divertidas e joviais mesmo”, conta Villaça, que é autor de “Passos de Drummond”, publicado pela editora Cosac Naify em 2006. Talvez o leitor se lembre de uma coleção famosa na década de 1980, lançada pela editora Ática, que reunia grandes nomes da literatura brasileira. As crônicas de Drummond estão lá, ao lado de textos de Fernando Sabino, Machado de Assis, Stanislaw Ponte Preta, Lima Barreto e Luís Fernando, dentre outros. Adotados em muitas escolas, os livros de crônica, na visão dos dois professores, ajudam no convite à leitura para os mais jovens. “As crônicas de cotidiano de Drummond cumprem bem esse papel, têm uma escrita fácil, prazerosa mesmo. E até os alunos mais novos conseguem compreender bem”, sugere Villaça.
Contudo, nem toda a prosa de Carlos Drummond de Andrade é assim leve e despreocupada. Na década de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, ele escreveu crônicas para diversos jornais, onde expressava fortemente sua postura contrária ao nazismo, por exemplo. Era um intelectual e um poeta bem conhecido já nessa fase e, portanto, sentiu-se chamado a participar vivamente da situação política que o país e o mundo viviam. “Durante um período, a obra de Drummond tinha uma postura ideológica muito clara”, reforça a professora da UFMG, também autora de “No vasto mundo de Drummond”, lançado pela editora da própria universidade, em 2005. “Até durante a ditadura militar ele se manifestava e como era um grande nome, ninguém ousava prendê-lo, ou calá-lo”, completa Letícia. Até assim seus escritos cumprem esse papel de fazer entender o mundo.
Preocupação social
Mas a participação política mais marcante na trajetória de Carlos Drummond de Andrade provavelmente foi expressa em forma de poesia. É de 1945 “A rosa do povo”, o livro mais longo do poeta. Escrito em plena segunda grande guerra, traz versos com forte preocupação social. E os temas relacionados ao povo são retratados em poemas fáceis de serem compreendidos. É verdade que até aquele momento, a poesia de Drummond já não tivera vergonha de se mostrar idealista e defensora de valores humanistas. Mas segundo o professor da USP, o momento mais agudo dessa veia política manifestou-se mesmo durante a década de 1940, quando o poeta, reconhecendo-se como um intelectual, sentiu-se chamado a fazer parte das mobilizações e lutas por democracia. “Ele flerta com o Partido Comunista, mas desiste de se filiar. E escreve poemas como “Carta a Stalingrado” e “Com o russo em Berlim”, que têm forte convicção socialista. É uma poesia de conclamação mesmo, e o leitor se sente convidado a entrar naquela luta socialista”, explica. No momento seguinte, com a Guerra Fria, Drummond caminharia para uma crise de identidade significativa, desiludindo-se fortemente com os rumos da História. É um período de forte descrença, até de certa amargura. A poesia dele na década de 1950 reflete bem isso, quando o autor passa a achar que a História é um grande absurdo, um enigma, e padece de uma desesperança profunda. Ele chega a questionar o seu papel e a força da poesia frente ao mundo. “É uma dúvida de todos nós, não é? Quem sou eu e o que posso eu frente a esse outro? E ele soube expressar isso como poucos”, conta Villaça.
Todas essas fases distintas presentes na obra de Drummond ajudam a provar que, de fato, ele foi um escritor múltiplo. Escreveu vários gêneros, sobre variados temas e, em cada um, atuava com um grau de dificuldade diferente. “Encontramos desde os textos mais fáceis para o público jovem até os mais difíceis até para os críticos literários”, propõe Letícia, que continua: “É com esse diálogo com variados públicos, de variados níveis e faixas, que ele se faz um grande poeta. Sua mensagem chega a todos eles”. Villaça amplia a explicação: “Sua obra varia muito em função da perspectiva pela qual ele encara a vida e o mundo. Sua poesia fica sujeita aos humores. E aí varia também a linguagem adotada pelo poeta, para refletir aquele sentimento todo”. Nesse sentido, ele vai dos poemas-piada aos celebrativos e conclamativos, com diversas dificuldades de compreensão e mensagens diversificadas, dependendo da fase em que ele estava.
Drummond vive até mesmo uma fase erótica. O livro “O amor natural”, publicado postumamente, em 1992, revela um viés até então pouco conhecido do poeta – pelo menos para o grande público – e mostra 40 poemas cheios de sensualidade e erotismo. Pode parecer curioso que aquele senhor de idade avançada, circunspecto por trás dos óculos, tinha também uma faceta jocosa e libidinosa. Entre os amigos mais chegados e os colegas de trabalho na repartição pública em que trabalhava, contudo, esse traço não chegava a ser uma surpresa. “Contam que, na repartição, cada vez que chegava uma funcionária nova, uma funcionária mais bem arrumada, os funcionários já diziam: ‘cuidado com o poeta’”, conta entre risos o professor Villaça. A publicação do livro não chegou a chocar o público e a crítica, até porque são textos mais brincalhões que pesados, mas com certeza trouxe novos ventos para o cenário literário. “O [crítico literário e poeta] Affonso Romano de Sant’Anna, no prefácio de O amor natural, fala que aquelas poesias podem causar certo constrangimento, porque o público não reconhecia no Drummond, um senhor de idade, aquela figura erótica, libidinosa”. Letícia reforça ainda que a obra ajuda a perceber que, mesmo disfarçado de temática erótica, o ofício de Drummond é sempre o mesmo. “Seu trabalho, sua lida é com a palavra. A partir daí ele encontrava a forma que mais convinha. E isso salta aos olhos até nas poesias sensuais”.
Drummond nas escolas
Passando da temática adulta para a adolescente, Carlos Drummond de Andrade é presença obrigatória na imensa maioria das escolas. Desde o ensino fundamental, com as crônicas do cotidiano, até o final do ensino médio, nas análises de poema, a obra do poeta mineiro figura quase como unanimidade. Segundo Letícia, é claro que esse uso e aproveitamento pedagógico variam. Mas, de um modo geral, diz ela, o que acontece é que os professores gostam muito e indicam a leitura; e, entre um verso e outro, os jovens se identificam com o que o poeta diz. Villaça faz apenas uma ressalva. Para ele, no ensino médio não dá para desvelar todas as facetas das obras de Drummond. Há algumas situações que, de acordo com o especialista, não precisam aparecer nessa fase da vida do adolescente. “Existem sentimentos de grande ironia e desencanto que não fazem ainda parte da vida daqueles jovens. A gente vê em Graciliano Ramos e em Machado de Assis que existe uma certa melancolia que só chega com a idade mesmo. E talvez os adolescentes não precisem lidar com isso numa fase tão viva e enérgica da vida”, sugere. Feito o alerta, os dois pesquisadores concordam que adotar as poesias ou as crônicas de Drummond é uma maneira muito apropriada de apresentar esse fantástico mundo da literatura para crianças e adolescentes. “Os estudantes são convidados a ler poesia com o que há de melhor nessa área”, defende Letícia. E, para Villaça, além de se depararem com uma criação primorosa, ainda ficam em contato com uma obra que traz, ao mesmo tempo, as expressões do eu (de uma maneira simples e compreensível) e uma lucidez aguda de o que é o mundo.
E é isso que faz dele um dos maiores poetas da língua portuguesa? Para Letícia, o trabalho de Drummond com a linguagem é primoroso e a isso soma-se a vocação para perceber, captar e expressar sentimentos – dos mais banais aos mais profundos –, usando para tanto uma técnica formidável. Tudo isso começa a explicar por que o poeta é tão importante para a literatura brasileira. Segundo o professor da USP, a obra de Drummond consegue, sem perder jamais a personalidade, tratar dos assuntos da modernidade. “Ele não é só um mineiro tímido e funcionário público. Embora revele sempre esse lado, não mostra só isso. É capaz de fazer entender essa presença do homem no mundo moderno”, defende. Mas certamente Drummond não é o único a fazer isso. Então, o que o torna especial? “O que faz os grandes serem grandes? Esse é um dos mistérios da arte. O mistério é onde eles vão buscar essa privilegiada possibilidade de expressar o próprio interior e, fazendo isso, expressar o interior de todos nós”, sugere Villaça. Nos 60 anos em que escreveu, Drummond sempre alcançou essa perspectiva, qualquer que fosse o gênero ou a fase, e ainda que fosse extremamente tímido, retraído, ensimesmado. “E essa entrega, mesmo com as impossibilidades que a timidez impunha, é muito tocante, porque nos obriga a repensar também os nossos próprios limites, no fazer, no pensar, no expressar”, reflete o professor da USP. Assim, o leitor das poesias e das prosas do poeta mineiro, além de se deliciar com a linguagem bem trabalhada, as imagens belíssimas que só ele foi capaz de criar, ainda encontra as respostas necessárias para essa “mania necessária que temos de acreditar que o mundo pode ser um lugar melhor”, nas palavras de Villaça.