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Prof. Paulo Bezerra fala sobre a importância da literatura Russa

Certamente o senhor já respondeu essa pergunta uma centena de vezes, mas vamos começar por ela: por que ler literatura russa?
Primeiro porque é uma das mais ricas entre toda a literatura universal. Rica mesmo, um das que tem mais materiais e conteúdos de qualidade. Depois, porque ela se consolida rapidamente como vanguarda, não só nos temas e nas formas como aborda esses temas, mas principalmente pela qualidade mesmo das obras produzidas. E a literatura russa ainda teve a felicidade de contar com gênios e grandes escritores nos mais variados gêneros. Na poesia tem Alexandre Pushkin, no conto tem Liev Tolstoi, no romance o incomparável Fyodor Dostoievsky, na dramaturgia, Anton Tchekhov. E tantos outros, como Ivan Turgeniev, Nicolai Gogol... O fato é que em cinco décadas eles conseguem alcançar o que há de melhor na literatura ocidental e até superá-la. A partir de 1840, final do século XIX e até o início do século XX, a literatura russa avança e se sobrepõe à literatura mundial. Um fenômeno que não tinha sido visto antes.

O senhor está falando exatamente de quais características da literatura russa?
Em meados do século XIX, Dostoievsky consegue fazer uma representação da alma humana, da psique humana tão profunda e tão inédita que a ciência só viria a descobrir esses aspectos bem depois, no início do século seguinte, com os estudos de Sigmund Freud. Estou falando do romance O duplo, escrito quando ele tinha apenas 24 anos. Ele fala ali com tanta propriedade sobre as múltiplas personalidades, o inconsciente e sobre como a alma humana pode se dividir. E isso só foi descoberto no finalzinho do século e só comentado e revelado no início do século XX. Quer dizer, esse olhar profundo e agudo para o ser humano e essa representação única da alma, só a literatura russa consegue. É um mergulho na alma humana e uma visão de que o ser humano é um ser essencialmente ético. Isso é incomparável.

Mas esse olhar agudo não é obra apenas dos russos.
Não, claro que não. Acontece que na literatura de outros países, para se alcançar essa profundidade, foram necessários séculos. Na Rússia estamos falando de uns poucos anos. E ela se iguala às demais quando traz para a discussão a relação entre Literatura e História. Não a história oficial, mas a história das pessoas daquele lugar. Outros grandes também fizeram isso em seus tempos. Cervantes, Shakespeare, os autores gregos e latinos da antiguidade clássica. O que os russos fazem é atualizar essa questão e dar a ela uma roupagem totalmente russa, de um modo novo. Nunca feito antes. Daí porque isso é importante.

Os artistas, nesse caso representados pelos escritores russos, foram capazes de enxergar e de representar traços e mudanças da alma humana antes de outras áreas do conhecimento?
Exatamente isso. E quando isso acontece, a literatura pula de degrau na escala de importância. Quando o escritor consegue antever e antecipar o que virá, porque enxerga esses aspectos no homem, na sociedade, no mundo, ele está fazendo – em geral – uma literatura de qualidade.

E por que esse rasgo acontece na Rússia, em meados do século XIX?
Naquele século XIX a Rússia passava por agudas contradições sociais. Vamos lembrar que o país só conseguiu acabar com o feudalismo em 1861. E era um feudalismo misturado com escravidão. A Europa já tinha deixado o feudalismo para trás há mais de 300 anos e a Rússia ainda estava lá naquele sistema híbrido e medieval. A reforma que instala o capitalismo na Rússia, em 1861, expõe as contradições mais profundas das relações sociais e da psicologia humana. E isso é representado brilhantemente na literatura. Fenômenos até então desconhecidos na ética ocidental, como o dinheiro gerando a destruição da psique humana, são retratados com muita profundidade na obra de Dostoievsky. A alienação provocada pelo capitalismo, ainda em 1859 – antes mesmo da reforma que implantou o capitalismo na Rússia – já é descrita por Tolstoi.

São autores muito atentos à alma humana...
E também às relações sociais. Na verdade, a grande atenção é para o que as relações sociais projetam na alma humana. Eles captam esse estado e relacionam com a crise da psique humana na Rússia daquele momento. É excepcional.

E como eles se posicionam diante dessa ação do social sobre o psicológico?
Os grandes escritores de quem estamos falando, Dostoievsky, Tolstoi, Tchecov, têm um engajamento absolutamente consciente sobre como essa projeção torna o homem subserviente diante do social, das convenções sociais. Eles enxergam essa postura e retratam com grande precisão na literatura.

E essa postura se mantém durante todo o período capitalista, ou seja, retratando a crise que a passagem do feudalismo para o capitalismo representou e, depois, já pressentindo as mudanças que começariam a se desvelar em 1905?
Sim, se mantém, porque a crise se mantém. E vai além, Turgeniev, por exemplo, tem um romance chamado A véspera, de 1860, que antecipa não só a Revolução Russa, mas também os tipos revolucionários. Aliás, a gente vê a mesma coisa em Dostoievsky. Em Os demônios ele retrata um tipo de político que era a antecipação de Stalin. Aquela queda pelo Estado Total, no que viriam a se tornar o stalinismo e o nazifascismo. E não é ilação. Se analisarmos acontecimentos recentes da política brasileira, por exemplo, a morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel, veremos que existe um certo tipo de esquerda que tende a atos nefastos e amorais. E isso está tanto nas tragédias políticas do século XX, no mundo todo, como nas palavras de Dostoievsky em Os demônios, que é de 1872. Por isso a gente pode dizer que a literatura clássica russa é feita por uma literatura tribuna, de autores profetas. Profetas não no sentido religioso, mas no sentido de quem antevê uma realidade futura a partir dos traços do presente.

Mas é uma literatura difícil, muito densa e às vezes difícil de alcançar.
Olha, não é uma literatura difícil quando se pega o jeito. O negócio é que o russo fala demais, pensa demais. Os russos têm uma tendência muito forte à reflexão. Por isso, qualquer decisão que o personagem vai tomar, ou qualquer atitude passa por uma longa reflexão, uma grande explicação de tudo. É que os russos são assim. Então, veja, é um romance de reflexão, cheio de problemáticas, denso. Mas tudo isso porque é uma literatura típica de um país que tem história, uma história longa e cheia de acontecimentos importantes. Eles têm muito o que dizer, o que representar, por isso são tão densos e profundos o tempo todo. Os conflitos são sempre graves, há sempre uma violência avassaladora, que são os mesmos conflitos e a mesma violência que marcaram toda a história do país e eles retratam isso. Quem não tem história, quem não tem o que contar é que fica fazendo literatura levinha, sem densidade. Não é esse o caso da literatura russa.

E o leitor deve começar por onde?
É difícil definir um roteiro, mas eu sugeriria os clássicos dos clássicos. Ou seja, “Crime e Castigo”, de Dostoievsky, “A morte de Ivan Ilitch”, depois “Guerra e paz” e “Anna Karenina”, de Tolstoi. E tudo de Tchekov para quem gosta de ver a beleza da alma humana, a estética da beleza. Com isso dá para começar a sentir o gosto dessa literatura.

Quem passar por esse portal?
Vai se apaixonar e querer ler todo o resto. Várias vezes (risos).

E hoje? Entre os autores russos atuais?
Ninguém de maior relevo, nenhuma relação de boa qualidade.

Mesmo com a crise recente do fim socialismo e início do capitalismo?
Não. E é curioso, não é? Porque se a literatura grandiosa surgiu numa crise assim, essa crise mais recente poderia gerar novos grandes, certo? Mas não foi o que aconteceu. A crise espiritual que o país vive hoje e que começou com o fim do socialismo é muito profunda e tem impedido que surjam novos grandes escritores. E não adianta dizer que é muito difícil surgir alguém tão bom, porque já teria dado tempo, são mais de 150 desde o tempo de Dostoievsky. É uma crise espiritual mesmo.

Mas essa recomendação serve para pessoas de todas as idades? Estudantes de ensino médio também?
Olha, do ensino médio eu não sei, porque não sei qual é a profundidade que esses alunos têm e a capacidade de compreender a profundidade dos autores russos, mas, de um modo geral, quando dou palestras a maioria esmagadora do público é de jovens. Universitários certamente, mas jovens. Agora, os professores do ensino médio e universitários esses sim podem e devem ler. E alguma coisa fica e serve de material pelo menos para comparação.

Comparação com a literatura brasileira, por exemplo?
É. Eu consigo encontrar muitas semelhanças entre Graciliano Ramos e Dostoievsky, por exemplo. Aquela dureza da alma humana retratada em “São Bernardo”, por exemplo, parece muito com algumas passagens de obras de Dostoievsky. Também dá para traçar paralelos entre Tolstoi e Machado de Assis. Em “Sonho de um homem ridículo”, o delírio do personagem principal é muito parecido com o delírio de “Brás Cubas”. Agora, não dá para falar em influência, porque esses autores não se leram. Mas podemos dizer que eles todos, certamente, têm a mesma matriz literária, a mesma formação literária, daí as semelhanças que podemos encontrar.

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