Elisa Marconi e Francisco Bicudo
É quase sagrado. A noite de sexta-feira é aguardada com enorme expectativa – é tempo de sair, de encontrar os amigos, de vagar pela cidade em busca do melhor programa, deixando em geral para trás pais apreensivos e preocupados, que só dormem de fato quando eles retornam. Mas na noite do último dia 14 de setembro, uma sexta feira, os jovens que tradicionalmente cumprem esse ritual da balada estavam em outro lugar. Naquela noite eles eram personagens – mais do que isso, protagonistas – de dez ensaios feitos por estudantes de antropologia ligados ao Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo (NAU/USP) e reunidos no livro Jovens na metrópole, publicado pela editora Terceiro Nome. Naquela noite, a juventude paulistana estava ali. Ou pelo menos retratada ali.
O organizador da obra, José Guilherme Magnani, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e coordenador do NAU, conta que os textos representam o desdobramento de um projeto pedagógico realizado pelos alunos da faculdade. “É uma proposta que pretende ensinar todos os passos da atuação teórica e prática do antropólogo mesmo. Eles estudam, pesquisam, vão a campo e escrevem suas etnografias”, explica. A iniciativa faz parte da disciplina ministrada por Magnani no curso de Ciências Sociais; ao final do percurso, os estudantes devem inclusive defender suas conclusões publicamente. Ou seja, “é uma experiência bem real de como organizar um evento, expor suas idéias, apresentá-las ao debate público e também estar aberto às críticas, exatamente a experiência vivida por um antropólogo, mas com a vantagem de estar sob a orientação de um professor”, prossegue Magnani.
No início de 2007, o professor de antropologia da USP percebeu que vários desses trabalhos que ele havia orientado tratavam de um tema comum, o jovem da metrópole. E então entendeu que havia ali um material muito rico e valioso, que merecia ser difundido, colocado à disposição da sociedade. Sempre em parceria com os alunos do NAU, selecionou dez desses textos e propôs que fossem revistos, melhorados quando necessários e preparados para edição. “Foi um trabalho coletivo mesmo. Todos os estudantes leram todos os artigos, fizemos juntos as modificações e deixamos os ensaios no ponto para serem publicados”, revela.
Os jovens retratados na obra são aqueles que fazem parte da multidão que habita a Grande São Paulo. Muitos deles pertencem a grupos urbanos específicos, como os punks, os pichadores, os “straight edges”, os manos. Seriam tribos? “Não, tribos não”. Porque tribo, segundo Magnani, é um nome dado pela mídia para designar grupos fechados de jovens, e a palavra tribo, na verdade e originalmente, diz respeito a ligações mais amplas, relacionadas aos clãs, às linhagens, às aldeias, como acontece entre os índios. “É exatamente o contrário, e a mídia deturpa o sentido real da palavra. A gente prefere usar circuito de jovens, como diz o subtítulo do livro. São circuitos de lazer, encontro e sociabilidade”, explica.
Ainda falando sobre os personagens, o autor reforça que eles pertencem a circuitos determinados, grupos com características, códigos e universos simbólicos próprios. E nesses grupos tudo significa “a fala, a roupa, o cabelo, a música que gostam e o lugar da cidade que ocupam”. E é nesse ponto que a antropologia urbana entra firme em cena. Os pesquisadores olharam com muito cuidado e refletiram intensamente sobre a ocupação da cidade por esses grupos de jovens. “Fatalmente eles se encontram em algum ponto da metrópole. É ali que acontecem as trocas, a sociabilidade e, em geral, esses jovens ressignificam aquele espaço”, comenta o coordenador do NAU. Em outras palavras, os skatistas, ao adotarem uma rua e levarem para lá seus skates, suas rampas, seus aparelhos de som, sua turma de amigos, mudam completamente a cara daquela região. “E isso nem sempre é bem visto pelos moradores do lugar”, prossegue.
Essa relação dos grupos jovens com o entorno, seja este formado por outras pessoas ou representado pelo aparato urbano, também está presente no livro. E o que os aspirantes a antropólogos encontraram? “Uma diversidade muito grande”, explica Magnani, “grupos que são muito variados. Existem os efêmeros e os duradouros, os que se posicionam a favor e os que são contra os sistemas vigentes, os que são mais sossegados e os que têm uma visão política mais firme”, conta. Estranho... Teriam de fato alguma utopia, visão política? Mas não há um certo consenso em relação a uma suposta apatia da juventude, que andaria desencantada com a política? Para Magnani, a visão dos jovens que salta das páginas do livro não confere com essa idéia. Nos ensaios, alguns circuitos se revelam bastante politizados, com convicções e posturas firmes e definidas frente a algumas questões. Um dos alunos autores, Alexandre Barbosa Pereira, conviveu e pesquisou por exemplo um grupo de pichadores para tentar entender por que aquelas pessoas achavam tão importante deixar suas marcas nos muros, prédios e monumentos da cidade. “É uma ocupação consciente e motivada. Eles sabem exatamente o que estão fazendo, a quem estão desafiando e a mensagem que querem passar”, garante o coordenador do NAU.
Universo rico e desconhecido
Assim, nos retratos que nascem com Jovens na metrópole, revela-se a ponta de um novelo que, se seguida, acaba por conduzir a um universo simultaneamente rico e desconhecido. A pergunta que dá início a essa trilha é: por que os jovens se associam? “Eles se juntam porque procuram seus iguais e é nos grupos que acontece a troca das informações que trazem segurança para aqueles indivíduos”, responde Magnani. Segundo o organizador da obra, jovens não são adultos e, por isso, precisam ocupar um lugar na sociedade coletivamente para, assim, marcar espaços, separar os iguais e os diferentes, se contrapor à família e a outros grupos importantes. E isso ajuda a encontrar a identidade que está ali em formação. Seguindo a pista dada pelo novelo, vai-se encontrando mais e mais características desses jovens. São informações valiosas para pais, educadores e todos aqueles que de um jeito ou de outro trabalham com jovens. Afinal, o coordenador do NAU defende que esses grupos, no mais das vezes, são pouco conhecidos. Para ele, pais, professores e escolas efetivamente não conhecem os adolescentes. E conhecer com detalhes cada um desses movimentos representaria a primeira atitude para se construir uma comunidade tolerante.
Se o leitor seguir direitinho os passos feitos pelos pesquisadores – e eles relatam cada uma das etapas de uma maneira muito leve e gostosa – vai experimentar mais de perto um pouco do método de trabalho da antropologia, que tem um olhar muito treinado para evitar pré-julgamentos ou juízos de valor, impeditivos de uma pesquisa mais aprofundada. Magnani conta que seus alunos são colocados frente a essa questão logo no primeiro ano de faculdade. Quando a proposta do trabalho é apresentada, muitos deles revêem seus valores e suas expectativas. E, paulatinamente, vão se aproximando daquilo que a antropologia entende como sendo um método científico de trabalho. “O leitor pode viver tudo isso junto com o estudante, pode enfrentar as mesmas dificuldades, dilemas e angústias e chegar ao final com uma nova percepção sobre aquele sujeito, aquele tema”, sugere o professor.
“Eu valorizo muito a graduação”, costuma dizer o professor de antropologia. “Sei que vou contra a corrente, mas acho que é na faculdade que o aluno se desenvolve. É ali que a gente pode ensinar a pessoa a estudar e a pesquisar”. É assim que ele justifica seu investimento nos primeiros anos do ensino superior, onde acontece, ou deveria acontecer, o que ele chama de uma substituição das expectativas dos alunos. “Eles entram na faculdade – pelo menos onde leciono – cheios de mitos e idéias sobre a profissão que vão seguir. Quando se deparam com a realidade nada romântica dessa área, é a hora de apresentar a verdadeira antropologia”, ensina o professor. Ele já viu acontecer mil vezes a desistência nesse ponto. Os calouros que esperavam estudar povos primitivos, religiões e tribos exóticas, acabam se defrontando com obras clássicas e pesquisas variadas. “E aí eles entendem que não se faz antropologia a partir de sacadas geniais, se faz também lendo, pesquisando, consultando os clássicos”. E esse seria, de acordo com Magnani, o ponto ideal para ensinar o aluno a estudar, a pesquisar.
Ele conta que os estudantes chegam à graduação com uma formação muito deficitária – e insiste em dizer que essa realidade é comum a ricos e pobres, oriundos de escolas públicas ou particulares –, mas que essa deficiência pode ser corrigida com a orientação de um professor. Dá para ensinar a ler os clássicos, a fazer relações, reflexões, a lidar com o conhecimento previamente construído. Os trabalhos da graduação devem servir para isso, segundo o coordenador do NAU, para gerar essa familiaridade com o estudo. “À medida que eles vão se aprofundando nos estudos, vão também alargando os horizontes e ficando curiosos em relação à cultura, aos clássicos e vão ficando também mais tolerantes. Eu vejo isso nos meus estudantes, então sei que dá para conseguir”, garante.
E aí vem o passo crucial: para fazer antropologia ou qualquer outra ciência, sempre de acordo com o professor de antropologia da USP, é preciso raciocinar, construir argumentos, pois é com eles que se desenvolve uma pesquisa e até uma teoria nova, “porque dados, qualquer livro ou a internet têm, mas reflexão e argumentos, aí é com os estudantes”. É nesse momento que a transformação acontece, e o professor assume o papel de guia, de orientador. A graduação deixa de ser uma etapa burocrática de formação e representa então um divisor de águas. Os jovens tocados por esse processo passam a integrar o grupo dos pesquisadores. E nos ajudam a compreender com mais detalhes alguns dos complexos cenários de nossa metrópole – como o próprio universo jovem paulistano.