Professor, quando deram início à guerra, Estados Unidos e Inglaterra ignoraram solenemente as resoluções das Organizações das Nações Unidas e passaram por cima do direito internacional. O senhor acredita que, de alguma maneira e em algum momento, será possível reconstruir e voltar a fortalecer essa instituição que, para muitos analistas, desempenharia papel crucial diante do processo de globalização? Depois da guerra, qual o futuro da ONU?
A declaração da guerra, a invasão do Iraque é um ato ilegal, imoral e que não tem o apoio da maioria da população do mundo. A guerra sinaliza bem a mudança de política dos Estados Unidos. O Iraque é apenas o primeiro de uma série de países que os EUA querem mudar, querem fazer mudar , para que vire um império, o único império. A Inglaterra segue, não tem escolha. A guerra foi um crime principalmente contra a humanidade e um aviso para a Síria, para o Irã. Ninguém sabe hoje o que vai acontecer no mundo. Eu diria que o próximo alvo pode ser a Colômbia, mas o Iraque foi a primeira colonização do milênio. A ONU acabou. Foi ignorada, descartada e agora está sendo chamada para limpar o lixo da guerra.
E agora, com a superação da etapa militar da invasão (em 13 de abril, os EUA anunciaram o fim das ações mais agressivas no país), como está o Iraque?
A primeira grande preocupação dos iraquianos hoje é a administração do caos instalado. Ouvi dizer que os Estados Unidos estão levando seus policiais para ajudar no Iraque. Os EUA vão governar o país, que se torna um território ocupado. A grande preocupação agora é administrar o dia-a-dia e colocar no poder um governo comandado por iraquianos. Ouvi falar num nome sugerido que é um absurdo. Ahmad Chalabi é um iraquiano, xiita, condenado na Jordânia por seu passado não muito correto com o dinheiro. Seu nome não é aceito pela Grã-Bretanha, nem pelo Departamento de Estado dos EUA, e nem pelos próprios xiitas do sul, que não o suportam. Um verdadeiro absurdo.
Nem um governo liderado pelos americanos e ingleses, nem um governo liderado por Chalabi. Como seria a transição ideal para o Iraque?
Se não houvesse essa política expansionista dos EUA, que vai fazer com que eles governem por um tempo um Iraque, o ideal seria procurar entre os exilados e ex-membros de partidos políticos líderes. Eles fariam um acordo com curdos e xiitas e teriam um governo de transição. Acho que um governo americano não tem chance nenhuma de ir para frente.
Quais são os riscos que esse Iraque sem governo corre?
Como está hoje, vejo que o Iraque pode ser dividido. Vejo para o norte do país um futuro violento. Os curdos que vivem ali querem o controle de cidades com Kirkuk, que tem maioria turca, por conta do petróleo. Isso deve gerar uma resistência muito grande da Turquia. O sonho dos curdos tanto do Iraque como da Turquia é ter um país próprio e independente, mas a Turquia jamais vai deixar. Boa parte de sua população é curda. Se eles saírem, o país não resiste. O futuro pode ser mais violento que essa guerra. Sim, porque ninguém sabe onde está Saddam. Dizem que ele fugiu e que fez até um acordo com os Estados Unidos: suas tropas não fariam uma guerra de rua em Bagdá, desde que deixassem ele fugir. E há boatos de que ele fugiu na comitiva do embaixador russo. Mas são boatos. O que se questiona é até quando vão acreditar nos Estados Unidos. Até que ponto os EUA vão ter credibilidade no mundo? Washington mente. Veja os motivos para a guerra, para invadir o Iraque. Onde estão as tais armas? Na verdade a guerra foi por uma razão estratégica e pelo petróleo.
Os EUA afirmam que a Síria protege terroristas iraquianos e que o país possui armas de destruição em massa. Como o senhor enxerga esse fato? O próximo alvo já está sendo colocado na alça de mira?
É um recado. O mundo árabe sempre soube que o governo da Síria e do Iraque são inimigos mortais. Nunca foram aliados. A Síria foi o único país árabe a ficar ao lado do Irã na Guerra Irã-Iraque. Então é mais um blá-blá-blá americano falar de aliança entre Iraque e Síria. Na verdade, o que os EUA querem é uma saída mais fácil e rápida para o Mediterrâneo. Contando que eles vão governar o Iraque e controlar a produção de petróleo, precisam escoar a produção. Com a Síria nas mãos fica mais perto e mais barato, porque sai diretamente no Mar Mediterrâneo.
E como estão os iraquianos frente a essa situação toda? O senhor tem notícias de lá?
Há 20 dias não consigo falar com meus familiares. Quando tento ligar para o celular da minha irmã, vem uma mensagem em inglês que diz que todas as ligações para aquele país estão proibidas. Não estão interrompidas. Estão proibidas. Mas eu imagino que a primeira preocupação é com a ordem. Caiu um governo péssimo, mas pode subir um ainda pior, controlado por forças estrangeiras. O povo deve ficar, mas muita gente quer sair. O Iraque virou um território ocupado, lembrando muito o final da 1a Guerra Mundial (1914 – 1918), quando saem os otomanos e entram os ingleses, que dividiram o país entre as famílias reais. A memória é muito viva. O Iraque ficou ocupado por 40 anos, até 1958, quando uma revolução contra o Império instalou a República Iraquiana. Mas eram tantas as pendências políticas que a instabilidade durou mais 10 anos. Em 1968, Saddam assume como vice-presidente, mas ele já era o líder, o homem forte do governo. Aí o país começa a se estabilizar. Uma estabilidade baseada no terror, perseguição e morte dos opositores do sistema. O Iraque pagou um preço alto pela estabilidade. E esse preço não vai ser menor com a ocupação americana.
E o senhor vê sinais de um governo iraquiano reconstruído por iraquianos? Existe alguma articulação nesse sentido?
Parece que em Londres há um grupo tentando articular o Iraque pós-Saddam. São ou colaboradores de Saddam (ex-criminosos), que saíram do país e agora se lançam como possíveis novos governantes, ou aqueles que saíram na Revolução de 1958, que são iraquianos, mas já não conhecem o país. Saíram de lá há muito tempo e se alinham com os ingleses e jordanianos. Colocam-se como potenciais líderes do próximo Iraque, mas ninguém acredita neles. Só conseguiriam governar com a presença de soldados americanos e ingleses e o Iraque ficaria pior que o Afeganistão. Se há grupos reelaborando o Iraque, isso é um sonho. Não vai funcionar agora. Nem os próprios iraquianos acreditam nisso. Os líderes têm que surgir do povo que vive lá, que sempre esteve lá, que conhece o Iraque, que fazia oposição ao sistema de Saddam. E os iraquianos não suportam os EUA e a Inglaterra, um governo deles não ia prosperar.
E onde está essa resistência, professor?
Está morrendo de fome! Mas é só dar uma chance que ela volta a aflorar. A classe média do Iraque é muito estudada. A quantidade de pessoas que vai à universidade é muito maior no Iraque que em qualquer país árabe. A média é muito maior que a do Brasil. É uma classe média muito ilustrada, esclarecida, mas estava muito mais preocupada em conseguir a comida para o dia seguinte, o remédio, a sobrevivência, que em pensar o futuro do país. Mas agora, é só dar uma chance que essa classe média ressurge orgulhosa e de pé. E são eles que vão governar o Iraque. Sem os EUA. Porque a democracia tem que surgir de dentro. Não adianta ser imposta.