Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo.
No ano de 1937, 10 de novembro caiu numa quarta-feira. Um dia nublado, ao menos para a história do país. Foi naquela data que o então Presidente da República Getúlio Vargas mandou fechar o Congresso Nacional, acabou com os partidos políticos, colocou uma série de opositores na ilegalidade e outorgou uma nova Constituição, dando início a um período que ficaria conhecido em nossa história como Estado Novo. Setenta anos depois, é possível fazer um balanço sobre aquela experiência, até porque, embora tenha oficialmente terminado em 1945, certos aspectos da ditadura de Vargas permanecem vivos e representativos, com impactos em nosso cotidiano, como os direitos trabalhistas, a organização sindical e a presença muitas vezes truculenta das Forças Armadas e da Polícia.
O novo regime nasce de um golpe. Ou melhor, de um golpe dentro do golpe. Afinal, Vargas chegara ao poder através da chamada Revolução de 1930, que derrubou a Política do Café com Leite, o jogo de alternância de poder na esfera federal entre as elites agrárias paulista e mineira, que se estendia praticamente desde a proclamação da República, em 1889. O movimento faz ascender uma nova elite urbana e industrial, mais moderna e afinada com o cenário internacional, além de representantes dos setores militares, alinhados ao Tenentismo. E é justamente o que se passa no exterior que credencia Vargas a dar o golpe do Estado Novo. O ocidente andava às voltas com o nazi-fascismo. Uma segunda guerra em âmbito mundial era quase certa, e os regimes autoritários europeus representavam inspiração mesmo para nações além-mar.
Assim, em 10 de novembro, vem o golpe branco, sem resistência de nenhum setor, porque os movimentos sociais e o comunismo já haviam sido abatidos em anos anteriores, e as Forças Armadas, assim como a burguesia industrial, acreditavam que o melhor caminho a seguir era o de um Estado forte, centralizador e autoritário. “Podemos sintetizar o Estado Novo, sob o aspecto socioeconômico, dizendo que representou uma aliança da burocracia civil e militar e da burguesia industrial, cujo objetivo comum imediato era o de promover a industrialização do país sem grandes abalos sociais”, escreve o historiador Boris Fausto, no livro “História do Brasil”.
Direitos trabalhistas
As primeiras marcas que o Estado Novo crava são aquelas ligadas aos direitos trabalhistas. A partir de 1937, o ditador começa a sancionar medidas que redundariam, em 01 de maio de 1943, na criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Fortemente inspirada na fascista “Carta del Lavoro” da Itália, essa legislação garante, dentre outros direitos, a licença-maternidade, as férias remuneradas, o 13º salário, a carteira de trabalho e o salário mínimo. Longe de ser uma benesse de Vargas, a oficialização é, antes, uma conseqüência das lutas dos trabalhadores durante todo o século XX. Político de larga experiência, o ditador percebe a necessidade e a importância de conquistar apoio e simpatia da classe trabalhadora e afina as reivindicações operárias com o discurso fascista, transformando reivindicações em leis e fazendo delas uma de suas principais bandeiras. “Tão fortemente que, ainda hoje, ele é lembrado como um defensor do trabalhador, alguém que brigou pelas classes mais baixas, o pai dos pobres”, relembra a professora de história contemporânea da Universidade de São Paulo (USP), Maria Aparecida Aquino, em entrevista exclusiva ao Sindicato”.
“Ainda nesse setor, toda a legislação sindical não deve ser esquecida. A vida sindical brasileira está esmiuçada lá na Constituição de 1937, apelidada de Polaca. Está lá também a proibição a outras formas de associações e a determinação de que o dinheiro que sustentaria as novas entidades seria transferido pelo governo, a partir do imposto sindical, pago compulsoriamente por todos os trabalhadores, sindicalizados ou não. Em outras palavras, “a maneira como foi estruturada coloca os sindicatos nas mãos do governo e cria a figura do sindicato pelego”, analisa a professora. Até hoje alvo de críticas dos mais variados setores da sociedade, a legislação sindical é analisada da seguinte maneira pelo jornalista Alberto Dines, em artigo publicado no site Observatório da Imprensa, no último dia 30 de outubro: “os fundamentos corporativos da ‘Carta del Lavoro’ de Mussolini estão muito presentes na Carta de 1937 graças ao controle total do Estado sobre a vida sindical. O nome foi cunhado posteriormente, mas o peleguismo é filho dileto do Estado Novo”.
Sob a fachada da organização do sindicalismo brasileiro, o ditador na verdade amarrou e despolitizou os sindicatos. “Eles deveriam ser a instância mediadora entre o trabalhador e a empresa e entre o trabalhador e o governo, mas acabaram sendo, em boa parte dos casos, agremiações sem a força da base e movidas apenas pela garantia financeira vinda do governo”, explica Maria Aparecida. Aliás, pode parecer uma contradição, mas essa herança do Estado Novo ficou ainda mais presente no imaginário brasileiro a partir de 1990, quando no discurso dos governantes alinhados com a cartilha neoliberal, os direitos dos trabalhadores repentinamente se transformaram no grande vilão da estagnação da economia. Em nome do crescimento e do desenvolvimento do país, arautos desse projeto passam a dizer que valeria a pena abrir mão dessas conquistas, a partir de então chamadas privilégios. A professora da USP lembra que “embora naquele momento a oposição tenha se movimentado, direitos sociais acabaram sendo tirados do trabalhador. O governo mexeu na aposentadoria e no registro em carteira, por exemplo”.
Ditadura militar
Mais nefasta que o sindicalismo com tendências ao peleguismo é a herança ligada à legitimação da violência por meio de aparatos estatais que a Era Vargas e especificamente o Estado Novo deixam. Especialista em no tema “Ditadura Militar”, Maria Aparecida Aquino não gosta de comparar a dureza do regime que vigorou entre 1964 e 1985 à da Era Vargas. “A desumanidade de um regime não se mede pelo número de mortos que ele provocou. Basta haver uma morte para que esse Estado tenha cruzado a fronteira do Estado de direito”, explica. Sob esse ponto de vista, os dois regimes desrespeitaram os direitos humanos e fincaram uma de suas bases de sustentação na aniquilação a qualquer custo de seus opositores. Havia no governo Vargas, exatamente como na ditadura militar, todo um aparato estatal para calar a imprensa e perseguir, prender, torturar e assassinar seus opositores. Existe também uma figura que liga os dois regimes, um sujeito conhecido por sua crueldade e sua frieza ao utilizar métodos nada convencionais para conseguir depoimentos e confissões: o capitão Filinto Müller. Durante o Estado Novo ele era o chefe da Polícia Política. Na ditadura, quase 20 anos depois, lá estava ele, dessa vez como senador eleito pela Aliança Renovadora Nacional, a Arena, partido político que dava sustentação ao regime militar.
Quando perguntada se a origem da violência do governo militar estaria no fortalecimento das Forças Armadas e da Polícia durante o Estado Novo, a professora de história responde que não. Ela acredita que essa violência tenha uma origem anterior, ligada diretamente às nossas heranças coloniais. “Não dá para tirar de cena a maneira atroz como o Estado tratava os escravos. Com autorização estatal, pessoas tomavam posse de outras e, em nome de uma maior produtividade, eram capazes de cometer as maiores atrocidades”, reage. Essa marca ficou impregnada na sociedade brasileira e, segundo a professora, é um câncer que, enquanto não for extirpado, não vai parar de crescer.
O sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e consultor das Nações Unidas no que tange a violência contra crianças, chama essa apropriação da violência pelo Estado em nome da manutenção da ordem ou de um regime de “legitimação do ilegitimável”. O que o Estado Novo fez foi reeditar essa herança, essa marca. Vale lembrar que essa legitimação ganha tons ainda mais sombrios durante o Estado Novo justamente porque, graças a seu pragmatismo político, o governo esteve muitas vezes alinhado com o nazismo alemão e com sua política anti-semita. Assim, além de usar a violência aqui, ainda chancelava uma violência além-mar, que marcou todo um período e deixou cicatrizes profundas na história recente da humanidade. “Basta lembrar do caso da alemã Olga Benário, membro do Partido Comunista de Moscou. Ela era casada como líder comunista Luis Carlos Prestes. Como era judia, ao ser presa foi mandada para a Gestapo da Alemanha, onde foi morta em campo de concentração”, exemplifica Maria Aparecida.
Fim do Estado Novo
Com o fim da Segunda Guerra Mundial – e seus regimes autoritários – era quase uma conseqüência imediata que o Estado Novo também chegasse ao final por aqui. Em outubro de 1945, então sentindo que já não havia mais clima para cenários autoritários e percebendo os ventos democráticos que ecoavam no Brasil, as Forças Armadas depõem Getúlio Vargas. Oficialmente ele não é deposto, porque segue em liberdade para São Borja, sua terra natal, no Rio Grande do Sul, após assinar uma declaração de que saíra por vontade própria. Os movimentos sociais, na sua nova roupagem de movimento estudantil, vinham se reconstruindo principalmente com a fundação e a oficialização da União Nacional dos Estudantes, a UNE, em 1943. Também a imprensa – lentamente – voltava a ter mais espaço para falar e, no final de 1945, já havia dois partidos políticos oficiais. Há eleições gerais ainda em 1945 e no ano seguinte promulga-se uma nova Constituição. E assim, o Brasil sai oficialmente da era Vargas – embora marcas profundas até hoje nos remetam àquele período.