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Especialistas apontam possíveis caminhos para disseminar a tolerância e a cultura de paz

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo

O 3º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, produzido pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e pela Comissão Teotônio Vilela e com informações que contemplam o período que se estende de 2002 a 2005, chama a atenção para um cenário de impunidade crescente e de violações cada vez mais intensas contra garantias fundamentais do cidadão. O documento revela, apenas para citar alguns exemplos gritantes, que o trabalho infantil atinge quase dois milhões de crianças e jovens com entre 10 e 14 anos; em 2004, foram registrados quase dez mil casos de trabalho escravo nas diferentes regiões do país. Em 2005, 102 pessoas foram mortas por conta de conflitos por terra, principalmente nas áreas de agronegócio, mineração, extração de madeira e construção de usinas hidrelétricas. Sem tergiversar, o texto afirma que “houve no período um recesso no desenvolvimento de políticas de proteção e promoção dos direitos humanos no Brasil”.

Na semana em que se comemora o 59º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948, a fotografia revelada pelo Relatório traz à tona profundas preocupações e suscita sentimentos de pessimismo e de desalento até mesmo entre os militantes que atuam na área. “Infelizmente é quase uma utopia falar de Direitos Humanos no Brasil”, lamenta o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH). “Por aqui, a maior parte da população não tem acesso nem às garantias mínimas, elementares, como saneamento básico, alimentação, água limpa”, completa. O discurso é corroborado por Antonio Carlos Malheiros, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) e professor da disciplina de “Direitos Humanos” na Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP). Segundo ele, é verdade que não estamos mais na situação que vivemos durante a ditadura militar, “mas ainda acompanhamos no Brasil desrespeitos absurdos e profundos a direitos que são fundamentais e deveriam ser invioláveis”.

Desigualdade sociais
Para os dois especialistas, o desrespeito começa com a profunda desigualdade social que assola o país. Apenas uma pequena parcela da população tem acesso a direitos básicos, universais, invioláveis e intransferíveis, que pertencem a cada pessoa desde antes ainda do nascimento. “É impossível imaginar que alguém que não tem o que comer ou que bebe água sem tratamento entenda que são instrumentos que favorecem a ela também. E aqui no Brasil o Estado está muito distante da maior parte da população, o que piora a situação”, afirma Malheiros. “A concentração desigual da renda é a primeira questão a ser enfrentada, porque ela aparta as pessoas de seus direitos básicos, incluindo a possibilidade de ser bem informada. E isso provoca sempre um mal entendido que é muito difícil de ser superado”, explica Ariel.

O coordenador do MNDH refere-se àquela distorção já tão estigmatizada no Brasil que afirma que “os direitos humanos existem apenas para proteger bandidos e que direitos humanos são para os humanos direitos”. Para ele, esse é um discurso conservador e reacionário que não entende, ou não quer entender, que homens e mulheres, independentemente da situação, têm direitos que devem ser observados em qualquer situação. Malheiros completa explicando que esse desvio não é só ruim porque aprofunda a distinção entre os que têm e os que não têm direitos, mas porque impede que a noção de que essas garantias legais existem cheguem justamente até os que mais precisam delas. “Esse discurso nascido ainda no tempo da ditadura fica colaborando para a manutenção do desrespeito. Naquele momento falava-se que quem defendia direitos humanos defendia terrorista, quem se colocava contra as leis. Isso pegou e até hoje serve como névoa e cortina de fumaça para discriminar quem defende os direitos da pessoa humana”.

O professor da PUC-SP lembra que não são apenas criminosos que se beneficiam dessas ações e lutas – quem atua nessa área tem ainda como prioridade a proteção daqueles grupos que são mais marginalizados, mais excluídos, que vivem mais próximos de situações de risco. Estão incluídos aí sim – e não poderia ser diferente - os presidiários e os adolescentes em recuperação, mas estão aí também as mulheres, os negros, os indígenas, os quilombolas, os idosos, os homossexuais, os moradores de rua e tantos outros, chamados erroneamente e por questões ideológicas de “minorias”. A opção não é por quem está dentro ou fora da lei, mas sim pelos que não têm acesso aos direitos básicos garantidos pela legislação brasileira e por todas as convenções internacionais assinadas pelo Brasil.

Falta de vontade política
Mas por que esse discurso cola tanto aqui no país? “Por que somos conservadores”, responde de imediato Alves. “E porque o Estado não se força muito a reverter essa situação. Caso o poder público se esforçasse, já teríamos ultrapassado certas fronteiras básicas, mas isso não deve interessar muito”, continua. Para Malheiros, o desrespeito aos direitos humanos no Brasil é assunto conhecido em todas as instâncias públicas e até internacionalmente. Por isso, a única explicação para que esse cenário se prolongue é a velha falta de vontade política – e, segundo o jurista, dos três poderes da República. Ele exemplifica com o caso tão recente quanto estarrecedor da menina L., de 15 anos, que ficou presa numa cela com vários homens adultos durante vários dias no município de Abaetetuba, no Pará. “Não é possível que nenhuma autoridade não soubesse do caso. Não é possível também que as autoridades continuem se fazendo de desentendidas nessa questão dos presídios, que são verdadeiros campos de concentração. Vou repetir, são campos de concentração”.

Apesar do panorama desanimador desenhado pelos dois especialistas, é preciso chamar a atenção para algumas movimentações e conquistas recentes, capazes de fazer brotar pelo menos um fio de esperança. Alves e Malheiros são apenas dois militantes da causa dos direitos humanos – e continuam cotidianamente lutando para efetivar sua aplicação. A reportagem do SINPRO-SP conversou com o professor da PUC/SP na saída de um julgamento, no Tribunal de Justiça, e antes de uma reunião na Comissão Justiça e Paz, entidade que preside desde 2006. Já o coordenador do MNDH abriu uma brecha em sua agenda e interrompeu sua participação na VII Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. São apenas duas peças de uma engrenagem bem mais ampla e que, mesmo com todas as controvérsias, não pára de atuar. Trata-se das associações, organizações e redes da sociedade civil organizada. Sem a atuação cotidiana dessas entidades, a situação estaria ainda pior.

Como já se anotou aqui, atualmente os braços de atuação da luta pelos direitos humanos são muito variados e englobam desde a defesa da mulher, dos pobres, dos índios, dos negros, dos quilombolas, dos sem-terra e dos sem-teto até as demandas dos presidiários, das crianças e dos adolescentes. Transitam pela cobrança ao acesso universal à saúde e à educação. E passam ainda pela luta contra a violência e a tortura. Por isso cada organização tem papel central na observação desses direitos, na cobrança para que sejam cumpridos, na denúncia quando são desrespeitados e, mais recentemente, na confecção de projetos de lei. “O tempo que nos separa da ditadura ajuda muito a caminhar em direção a essa participação mais efetiva da população, o que faz bastante diferença”, sugere o professor da PUC-SP. Alves enumera alguns dos últimos avanços nessa seara dos direitos humanos que passaram pelos esforços de entidades ligadas a essas lutas. “Podemos destacar a Lei Maria da Penha, que trata da violência contra a mulher, a discussão sobre a terra dos quilombolas, a proteção às testemunhas e vítimas de violência, a redução da mortalidade infantil e a consolidação do debate sobre o aborto também”.

Aliás, especificamente nesse tópico da interrupção da gravidez, os dois entrevistados ressaltam a importância de o governo federal assumir a responsabilidade por fomentar a discussão. Embora seja uma questão conflituosa e controversa, jogar luz sobre o tema sempre é uma boa notícia. Ou seja, há uma movimentação perene, mas de fato o avanço concreto fica ainda muito aquém do que se deseja. “Ainda assim, vejo caminhos para melhorar a realidade”, sustenta Alves.

O papel da educação
Ele aponta que a principal saída passa pela Educação. Pode parecer lugar comum, pode parecer chavão, a alternativa mais batida, mas o coordenador do MNDH acredita que está na escola o início de pequenas mudanças. Primeiro porque é o local onde as crianças podem começar a aprender o que são os direitos humanos e a entender amplamente que essas garantias são muito mais abrangentes do que se imagina e que têm estreita relação com a realidade que cerca cada um desses alunos.

Segundo o especialista, é na escola também que os estudante poderão se defender dos discursos reacionários contrários à universalização dos direitos, porque terão acesso à informação e ao conhecimento. “Esses meninos educados para os direitos humanos não se tornarão reprodutores de um discurso que se volta contra eles mesmos, contra suas famílias, contra sua comunidade”, avalia. E, por fim, é na escola – principalmente a pública – que se os direitos humanos e suas premissas forem aplicados, mudanças reais podem começar a ser presenciadas, tocadas, sentidas pelas crianças.

Ariel conta que as bandeiras da não-violência, da superação de tensões, da convivência harmônica com a diversidade, quando levantadas e exercitadas nas escolas, costumam dar muito bons resultados no que diz respeito à redução dos conflitos e das agressões. É a idéia de construção de uma cultura de tolerância e de paz. Contudo, o advogado ressalta que não é o professor sozinho o responsável por essa mudança. “Não dá para imaginar que o educador consiga reverter essa situação. Ele precisa do apoio da direção da escola, de assistentes sociais, de psicólogos e do sistema educacional como um todo”.

Nesse caminho, um passo importante foi a aprovação recente pelo Senado Federal do ensino do Estatuto da Criança e do Adolescente nas escolas. Se os professores forem bem orientados e trabalharem bem o tema na sala de aula, haverá avanços, segundo Alves. Outra boa notícia é que o crescimento do acesso à internet pode ser um propagador dessa consciência sobre os direitos humanos. Para o coordenador do MNDH, o jovem de hoje não tem as heranças da ditadura muito vivas, portanto não precisa acreditar que direitos humanos servem para defender criminosos. “Se o jovem tiver acesso à informação de boa qualidade, pode ter um repertório maior e começar a entender que respeitar todos é uma tarefa de cada um. Só assim essa luta sairá do gueto, deixará de ser coisa de advogado, de sociólogo e de gente de ONG e passará a ser uma bandeira da população”, conclui.

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