Francisco Bicudo e Elisa Marconi
O historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello não esconde a irritação e torce o nariz para a festa que vem sendo feita em torno dos 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil. Ele não hesitou em afirmar, em entrevista publicada no final de novembro passado pelo caderno Mais! da Folha de S. Paulo, que “não gosta de celebração de efemérides em geral e que essa coisa de fazer festa em torno de dom João VI é armação de carioca para promover o Rio”. Teme que essas comemorações “reforcem interpretações equivocadas sobre o período joanino e a Independência”. Mas o fato é que “centenas, talvez milhares de páginas já foram escritas em 2007 sobre isso e outro tanto se escreverá em 2008, dada a importância crucial, agora reavaliada, desse fato para a história do Brasil”, como destaca a jornalista Mariluce Moura no editorial da revista Pesquisa Fapesp, edição de janeiro.
Atento ao alerta feito por Evaldo e disposto a contribuir com o debate, o SINPRO-SP conversou com o historiador Jurandir Malerba, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e com a cientista política Isabel Lustosa, da Fundação Casa de Ruy Barbosa. Os dois especialistas ajudam a compreender com riqueza de detalhes aquele conturbado mundo da virada do século XVIII para o XIX, uma época marcada por revoluções, conflitos e contradições e pelo embate entre o Antigo Regime das monarquias absolutistas que agonizavam e a Era Moderna, que procurava consolidar o capitalismo industrial e os ideais humanistas e iluministas. “É um momento crucial da história ocidental, quando duas épocas e temporalidades coexistem. Essa passagem de um sistema colonial que estava carcomido e ruindo para o alvorecer do liberalismo é traumática”, revela Malerba. Para ele, episódios como a disputa de hegemonia mundial entre França e Inglaterra e o bloqueio continental decretado por Napoleão Bonaparte em 1806 são algumas das manifestações dessa briga entre valores que estavam ficando para trás e os novos horizontes que se anunciavam. “O Brasil acaba recebendo os influxos dessa turbulenta história européia”, reforça.
Isabel completa o raciocínio e lembra que o projeto expansionista e militarista francês vence praticamente todas as resistências que encontra – não por acaso, a única exceção foi a Inglaterra, dona de uma marinha poderosa – e muda por completo a correlação de forças e o desenho do mapa do continente europeu da época. A disputa acaba finalmente atingindo Portugal, colocando o pequeno país da Península Ibérica diante de um dilema de difícil solução. Caso cedesse às pressões e ameaças de Napoleão, corria o risco de ver a Coroa Britânica, como forma de retaliação, invadir e dominar o Brasil, que era responsável por aproximadamente 85% das riquezas e produtos obtidos então pelos lusitanos; se decidisse enfrentar o avanço francês, seria facilmente derrotado e imediatamente anexado ao império napoleônico. “Foi diante dessa contingência de pressões de todos os lados que um país oprimido e empobrecido, liderado por um príncipe regente, decidiu evitar o confronto e transferiu para o Brasil o centro de poder do Reino”, diz Lustosa, autora de obras como “Dom Pedro I, um herói sem nenhum caráter”, lançada em 2006.
Foi assim que a família real portuguesa partiu da metrópole em 27 de novembro de 1807 e veio parar no Brasil, chegando a Salvador em janeiro de 1808, para desembarcar definitivamente no Rio de Janeiro em março daquele mesmo ano. E foi também graças a essa estratégia que Napoleão não pôde se apoderar da Coroa Portuguesa. “De certa forma, é possível afirmar que D. João VI articula habilidade política com um golpe de sorte e consegue prolongar por mais alguns anos esse último suspiro do regime absolutista português”, completa Malerba, autor de “A Corte no Exílio”, publicado no ano 2000, dentre outros livros.
Fuga da Família Real
Diante desse cenário, e apesar das divergências conceituais (há quem fale em “mudança” ou em “passagem transitória”), os dois historiadores não têm dúvidas em afirmar: o que aconteceu foi uma fuga, e a nação portuguesa foi literalmente abandonada por seus soberanos, com todas as nuances, desencontros e conseqüências que uma decisão como essa pode significar. “Sem o rei, o país ficava à míngua e sem rumo. Dele dependiam toda a atividade econômica, a sobrevivência das pessoas, o governo, a independência nacional e a própria razão de ser do Estado português (...) Na confusão da partida, a pressa foi tanta que centenas de caixas repletas de prata das igrejas e milhares de volumes da preciosa Biblioteca Real, entre outras coisas, ficaram esquecidas no cais de Belém, em Lisboa”, escreve o jornalista Laurentino Gomes, no livro “1808”, lançado recentemente. É bem verdade que a decisão não foi impensada, tomada de afogadilho, da noite para o dia, e a possibilidade de escapar para o Brasil já vinha sendo discutida em Portugal com mais consistência pelo menos desde agosto de 1807, quando o quadro político já era bastante tenso.
No entanto, uma invasão tem como um de seus princípios norteadores o elemento surpresa, e não se sabia ao certo quando Napoleão decidiria ocupar o território português, o que obrigava a Corte a jogar contra o tempo, sem sequer saber ao certo que tempo era esse; além disso, uma vez tomada a decisão de partir, não era possível anunciá-la publicamente, sob risco de ver revoltas populares se espalharem por Portugal, além de chamar a atenção da França. Foi como caminhar pelo fio da navalha.
“Prevalecia uma certa teimosia de D. João em resistir aos dois lados, um esforço de manter a neutralidade. Ele posterga o confronto até o limite”, avalia Isabel. Para a cientista política, trata-se de uma das passagens históricas que revela um D. João hábil politicamente, diferente das caricaturas folclóricas que foram construídas pela nossa historiografia, que costuma representá-lo como um bonachão, um tolo comedor de coxas de frango, quase como um imbecil. A especialista lembra que de fato D. João não havia sido preparado para assumir o trono português – essa tarefa caberia ao irmão mais velho dele, D. José, que morre de varíola aos 27 anos, em 1788. O príncipe regente era ainda um rapaz tímido, muito religioso, casado com Carlota Joaquina por força de tratados firmados com a Espanha. Mas estava bem longe de ser abobalhado. “É um personagem polêmico. Era mais conciliador que guerreiro, mas tinha visão estratégica do Império e procurava manter sua unidade. Sempre soube cercar-se de ministros e de diplomatas competentes”, destaca Isabel.
Para Malerba, um dos aspectos positivos das discussões feitas sobre os 200 anos da chegada da família real ao Brasil é a possibilidade de desmontar clichês e estereótipos, de afastar as visões extremistas e maniqueístas. “Nem bobalhão nem estadista. D. João era um líder relutante, que tergiversava e postergava decisões, criticado muitas vezes por isso. Mas teve bons tutores e era inteligente. Sabia ouvir seus auxiliares diretos e mais importantes, que tinham um peso considerável nas decisões dele”, analisa o professor da Unesp.
Viagem difícil
Se a partida da Corte Portuguesa foi confusa, a travessia do oceano pode ser classificada de caótica. “Antigas e mal equipadas, as naus e fragatas portuguesas viajaram apinhadas de gente. O excesso de passageiros e a falta de saneamento favoreceram a proliferação de pragas. Uma infestação de piolhos obrigou as senhoras nobres a raspar o cabelo e a lançar suas perucas ao mar”, escreve Laurentino Gomes, desta feita em reportagem publicada pela edição da National Geographic que está nas bancas. E não é difícil também imaginar o que aconteceu com um Rio de Janeiro provinciano, atrasado, com casas acanhadas e sistema de esgoto inexistente, onde viviam cerca de 60 mil pessoas, sendo metade dessa população formada por escravos negros, quando a cidade viu-se obrigada de uma hora para outra a abrigar os quinze mil viajantes que chegavam de Portugal – era esse o tamanho da comitiva trazida pela Corte. “Era muita gente, levando-se em conta que a capital Lisboa tinha cerca de 200.000 habitantes. O grupo incluía pessoas da nobreza, conselheiros reais e militares, juízes, advogados, comerciantes e suas famílias. Também viajavam médicos, bispos, padres, damas de companhia, camareiros, pajens, cozinheiros e cavalariços”, destaca Gomes, novamente em “1808”.
Os relatos dos viajantes revelam que os portugueses ficaram maravilhados com a exuberância natural da paisagem que encontraram. Mas, em sua dimensão urbana, a cidade precisou sofrer drásticas e imediatas intervenções, para dar conta da nova realidade. Sem perder tempo, as portas de muitas casas pertencentes a membros das elites brasileiras foram marcadas com as iniciais “PR” (de príncipe regente) e alocadas para a nobreza portuguesa. O episódio foi imediatamente traduzido pelo humor carioca, que dizia que a sigla significava na verdade “ponha-se na rua” ou “propriedade roubada”. Ao vice-rei do Brasil, dom Marcos de Noronha Brito, também conhecido como Conde dos Arcos, e ao desembargador e ouvidor da Corte, Paulo Fernandes Viana, foi atribuída a tarefa de civilizar a cidade – o que significava pensar em novas construções (sobrados mais amplos, por exemplo), na iluminação e no calçamento das ruas, no sistema de esgotos, nas estradas e nas praças. “Ficaram responsáveis até mesmo por definir códigos de comportamento e de boas maneiras, em indicar como as pessoas deveriam se comportar em espaços públicos como teatros, por exemplo”, acrescenta Isabel.
A intenção era oferecer ao Rio de Janeiro aspectos de uma capital européia. “Era preciso preparar a cidade para abrigar o rei, que não sabia exatamente quanto tempo teria de ficar por aqui”, confirma Malerba. Vale lembrar que, por conta de melhorias como igrejas, teatros, salas de música, cafés, o Paço Municipal, a Escola Militar, o Jardim Botânico e o surgimento da imprensa, o Rio passou a atrair viajantes de diversos países, principalmente da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos. Quando a família real foi obrigada a retornar a Portugal, em 1821, por conta dos ecos da Revolução do Porto, a população do Rio de Janeiro já era estimada em 115 mil pessoas – praticamente o dobro do que D. João havia encontrado em sua chegada, apenas 13 anos antes.
Independência do Brasil?
Outra questão que provoca intenso debate entre os historiadores e suscita opiniões divergentes diz respeito à relação entre os anos de 1808 e 1822: teria a chegada da família real acelerado o processo de independência do Brasil ou, por outro lado, teria ajudado a refrear os movimentos separatistas? “Quando os navios reais aportaram na Bahia e houve a abertura dos portos às nações amigas, acabou o sistema colonial”, afirma Malerba. Segundo ele, as elites portuguesas que vieram para o Brasil ainda eram movidas por uma mentalidade arcaica, sustentada pelos princípios absolutistas do Antigo Regime. Num primeiro momento, sequer desejavam misturar-se com os nativos e torciam apenas para que a conjuntura internacional mudasse rapidamente para que pudessem retornar ao país de origem.
Encontraram por aqui classes dominantes que, embora também inspiradas por comportamentos e ideologias conservadoras, eram formadas por latifundiários e comerciantes – ou seja, gente que vivia da exploração do trabalho, do tráfico negreiro e da produção. Com o desembarque da Corte, esses capitalistas nacionais tentam se aproximar da nobreza portuguesa, procurando assumir e reproduzir ares aristocráticos, muitas vezes imitando os patrícios e comportando-se como nobres, em busca de privilégios e de títulos. Como D. João VI chegou ao Brasil literalmente quebrado, sem dinheiro, aproveitou-se da situação para fazer agrados e afagos aos brasileiros, conseguindo dessa forma financiar a Corte, sua estadia e até mesmo as inúmeras melhorias e obras feitas na cidade. “Ainda não estava colocado um projeto de independência. Essa elite nacional queria que o rei ficasse aqui”, diz Malerba. O cenário ganha outros contornos a partir de 1820, com a Revolução do Porto, movimento liberal português que, já depois da queda de Napoleão, exige a volta de D. João VI a Portugal e a consagração de uma monarquia constitucional. “Aí sim fica desenhado caminho para a independência, já que não havia qualquer possibilidade de o Brasil retornar ao status de colônia”, completa. Naquele momento, no entanto, a unidade territorial não estava consolidada ou garantida e não existia também uma identidade nacional. Como explica o professor da Unesp, o país era formado por fragmentos e mosaicos de distintos interesses regionais, e as diversas elites defendiam variadas propostas de independência. “A referência centralizadora e autoritária representava a opção feita pelas elites do centro-sul. Acaba saindo vitoriosa, abafando e calando, inclusive por meio das armas, outras iniciativas”, diz. Depois de enfrentar movimentos como Balaiada (1838, Maranhão), Sabinada (1837-38, Bahia), Confederação do Equador (Pernambuco, 1824) e a Revolução Farroupilha (1835-1845, Rio Grande do Sul), relativa calmaria e consenso políticos só vão se instalar de fato no Brasil e partir do II Reinado, mais especificamente a partir de 1854, já sob o comando de D. Pedro II, quando a estratégia da cooptação entra em campo e representantes das distintas classes dominantes locais são chamados a compor o governo e o gabinete de ministros. “Se o desejo do centro-sul não tivesse sido imposto, talvez tivéssemos hoje diversos países menores falando português, a exemplo do que aconteceu com a América espanhola”, especula Malerba.
Para Isabel, ao mudar o status político do Brasil e colocar fim ao monopólio colonial, a chegada da família real é um fator decisivo para acelerar a dinâmica da independência – e, nesse sentido, 1822 seria resultado direto de 1808. “A mudança de cenário e de espírito, o contato com outros povos e culturas, os ventos liberais que começaram a chegar por aqui, o surto de progresso, a necessidade de garantir comunicação entre as diversas províncias, os jornais que nasceram, tudo isso faz surgir novas idéias, desejos, ambições e desafios, que passam a mover os interesses dos liberais daqui. Havia um processo em marcha”, analisa a pesquisadora da Casa de Rui Barbosa. “Com o retorno de D. João a Portugal e o “fico” de D. Pedro I, em janeiro de 1822, já não havia mais como segurar a independência do Brasil”, completa. Para ela, a formação do Estado brasileiro, que tem como alguns de seus episódios marcantes a expulsão dos franceses e dos holandeses do território nacional e a interiorização promovida pelos bandeirantes e pelo ciclo do ouro, encontra na passagem da família real pelo país mais um capítulo decisivo dessa trajetória de consolidação. “A opção pelo modelo monarquista como a melhor forma de organizar e ordenar a nação, contrariando os demais países da América, certamente foi influenciada pela vinda do rei”, define. E assim nascia o Brasil independente. Mas essa já é uma outra história...