Em junho completa-se um século da chegada dos primeiros japoneses ao Brasil. Qual a importância e os impactos principais dessa data e desse processo?
A gente estava com medo que a comemoração ficasse restrita à comunidade, mas pelo menos nos últimos dois meses já estamos vendo um grande envolvimento de toda a sociedade civil brasileira. A mídia e a população então juntas nesse trabalho de conscientização do marco que foi a chegada dos imigrantes. No início do século passado, o Brasil acolhe uma população que não estava bem em sua terra natal e hoje percebe que essa chegada foi positiva. No começo foi um período complicado de adaptação ao trabalho e à cultura mesmo e, passados 100 anos, uma parte importante dessa população tem uma boa inserção social. Atualmente, quem quer sair de sua terra para ganhar a vida num outro país são os brasileiros. Os descendentes estão fazendo o caminho inverso, o que intensifica as relações entre os dois países.
O senhor é descendente de japoneses. Poderia contar um pouco a trajetória de sua família?
A família do meu pai chegou pouco antes da Segunda Guerra Mundial, na primeira leva, portanto. Vieram para o trabalho agrícola, como era tradicional naquele período. Instalaram-se em chácaras e começaram a cultivar hortaliças. Tudo bem de acordo com o que era tradição mesmo. As duas famílias, do meu pai e da minha mãe, eram grandes, inspiradas pela cultura de que família grande é melhor para cuidar das plantações. Então meus pais e meus tios são os típicos japoneses da segunda geração, aquela que faz a ponte entre a produção agrícola e o comércio nas cidades. Eu e meus primos somos a terceira geração, que quase totalmente tem formação universitária, somos engenheiros, empresários e professores e somos bem diferenciados das que nos antecederam.
E quais seriam essas diferenças principais?
A segunda geração, a dos meus pais e tios, se afastou bem da cultura japonesa original. Claro que por um lado isso era bem difícil com pais japoneses, mas, por outro lado foi a primeira geração a falar português, a ir para escolas brasileiras e, embora fossem os guardiões da cultura japonesa, os pais são até responsáveis por esse afastamento. Eles entenderam que a volta para o Japão era inviável e que a vida seria construída aqui mesmo, então incentivavam os filhos a se aculturar de alguma maneira. A segunda geração então fala e entende japonês, mas não sabe mais ler nem escrever em japonês e aumenta consideravelmente o contato e a troca com a cultura brasileira. Nessa troca, alguns costumes e tradições vão sendo deixados para trás e o afastamento da matriz japonesa é inevitável. Com a terceira geração, a minha, acontecem dois fenômenos paralelos. Uma parte, ao notar esse afastamento, busca refrear e minorar esse processo. É uma parcela dos descendentes que procura resgatar costumes e hábitos, que tenta aprender japonês. Uma outra parcela, ao perceber o afastamento dos pais da cultura japonesa, se afasta ainda mais. Hoje os jovens e as crianças são a quarta e a quinta gerações. Entre eles, o grau de miscigenação é muito grande mesmo. Entre 60 e 70% dos casamentos já acontecem entre japoneses e brasileiros. Muitos desses jovens já foram ao Japão para estudar ou trabalhar, o que nos obriga a fazer uma revisão da cultura. E muitos dos que vão ficam por lá, o que acaba revigorando a cultura japonesa no Brasil.
Quem são esses jovens descendentes? Com quem eles se parecem mais?
Os jovens e as crianças estão muito afastados da cultura japonesa. Muitas famílias perderam os contatos e os laços que tinham no Japão. Por isso, embora aqui sejam apontados como japoneses e carreguem todas as características e os traços dos japoneses, se forem ao Japão e se defrontarem com a cultura de lá, esses jovens saberão que são, sem sombras de dúvidas, brasileiros.
Há uma ponta de tristeza ou de sentimento de perda nesse processo, professor?
Não, esse é um processo cultural, dinâmico mesmo. Mesmo a cultura do Japão de hoje é diferente daquela experimentada pelos imigrantes enquanto viviam lá. Certas tradições fortes aqui na época da imigração e que permanecem vivas de alguma maneira nem são mais usadas lá. É até engraçado porque a comunidade que foi embora é a que ainda preserva mais certas tradições. Palavras do japonês que se fala no Brasil nem existem mais no Japão. O que há aqui não é mais necessário lá. Aqui se mantém; lá, caiu em desuso.
E o que é o Brasil após 1908?
Hoje vemos que há benefícios para o Brasil também com a chegada dos imigrantes. Além de todos esses aspectos culturais, há ainda a contribuição na língua, nos esportes, na alimentação, na religião. Mas acho que o que mais salta aos olhos é a questão econômica. O setor agrícola em especial. A partir da década de 1970, os japoneses fizeram grandes investimentos em soja, por exemplo. A ocupação do Centro-Oeste do país e a transformação do Brasil no grande exportador de soja que ele é hoje deve-se, em grande parte, ao incentivo japonês. A idéia original era produzir soja e exportar para o Japão, onde se consome muito o produto, mas o setor cresceu e hoje o mundo todo consome a nossa soja.
Novamente aparece a questão do empreendedorismo, não? Parece uma missão de todos os japoneses prosperar, vencer na vida pelo trabalho e pelo estudo.
É o valor da educação. Isso vem diretamente do Japão e se mantém lá e aqui. Hoje, a população brasileira é composta de 1% de japoneses e descendentes. Na Universidade de São Paulo, entre os estudantes, os japoneses são cerca de 10%; entre os professores, 7 ou 8%. Ou seja, oito, dez vezes mais que a proporção em relação à população. Isso mostra uma inclinação forte para os estudos. Os japoneses sempre apostaram no estudo como caminho para alcançar o sucesso. Quando os imigrantes vieram para cá, há 100 anos, a situação econômica estava muito complicada, mas a situação educacional não, então os imigrantes que chegaram aqui tinham uma boa formação cultural e isso se estende para a segunda geração. Esse segundo grupo ainda encontra algumas dificuldades, porque embora já fosse cobrado nos estudos, ainda tinha que trabalhar muito para ajudar a família. Já a terceira geração não, essa vai em peso para o estudo. Veja que, portanto, essa premissa de estudar para vencer não se perde com o tempo. A exigência das famílias muda um pouco depois da terceira geração, a cobrança acaba se atenuando um pouco, mas não deixa de existir. No Japão esse traço é um pouco mais rigoroso. Lá é uma cultura muito competitiva, e a escolaridade é condição básica para o sucesso, por isso a exigência das famílias é muito grande. Às vezes, mesmo quem é bem sucedido nem percebe isso, porque a auto-cobrança e a cobrança da família são tão grandes que nem há espaço para relaxar.
Mas as relações entre Brasil e Japão vão além das questões pessoais e familiares... Que outras áreas e laços merecem destaque?
O auge dessas relações aconteceu na década de 1970, com a expansão da soja que já comentamos. Na década de 1980, a crise econômica do Brasil reduziu um pouco esse comércio e na década de 1990 foi a crise econômica dos países asiáticos e do Japão que obrigou esse relacionamento a ficar estagnado. O que a gente espera é que nesses primeiros anos do século XXI possa se reverter a queda no comércio e que as relações se dinamizem e voltem, pelo menos, ao patamar dos anos 1970. Empresas japonesas no Japão vêm tendo um bom desempenho, como as montadoras de automóveis e motos. Tudo isso sinaliza para os empresários japoneses que aqui há mercado para seus produtos. Em linhas gerais, o Brasil manda para o Japão suco de laranja, pasta de madeira – celulose, minérios, etc. Mas há dois ou três anos começou a acontecer investimentos do Brasil no Japão. Uma fabricante de autopeças abriu uma filial lá para vender diretamente para a Toyota e a Petrobrás comprou, recentemente, uma refinaria na ilha de Okinawa para vender etanol lá e começar a promover a mistura de etanol à gasolina japonesa. Bem recentemente também a Jal, empresa aérea, comprou três aviões da Embraer e uma outra empresa de aviação comprou mais três aeronaves. Então algumas mudanças começam a aparecer nesse mercado.
E em termos de colaboração acadêmica?
Desde que o Japão se reorganizou, depois da Segunda Guerra Mundial, a política de amparar e cuidar dos japoneses em outros países e de seus descendentes sempre esteve presente. Aqui no Brasil, o governo japonês concedia muitas bolsas e promovia intercâmbios entre os filhos de japoneses. Isso veio muito forte até o final da década de 1990, quando a crise econômica no Japão freou um pouco o processo. Ao que tudo indica, essas ofertas já voltaram a surgir e são hoje um dos grandes fatores de aproximação entre os dois povos.
E na geopolítica internacional?
Embora estejam em espaços diversos em uma série de questões, Brasil e Japão têm se dado as mãos em outras áreas importantes. São países divergentes na economia mundial e que cobram medidas opostas nos organismos internacionais. O Japão é exportador de produtos tecnológicos altamente desenvolvidos, e o Brasil é poderoso na agricultura, o que os coloca em lados diferentes nas rodadas de negociação internacional. Por outro lado, em certos temas, os dois países ocupam o mesmo lado na mesa, como é o caso da batalha para conseguirem um assento no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. São países bem diversos, mas que podem – mais uma vez – se fazer bem mutuamente.