envie por email 

Entrevista com Plínio de Arruda Sampaio Jr.

Lula foi eleito com a expectativa da mudança, para buscar um outro modelo e alternativa de desenvolvimento. Em recente artigo publicado pela revista da Associação dos Docentes da USP, porém, o senhor afirma que a atual política econômica continua seguindo as imposições e exigências feitas pelo FMI e pelo Banco Mundial. Na sua opinião, o governo Lula tem na verdade representado a continuidade do governo FHC?
Quando você olha a história do Brasil, ela é feita por uma sucessão de continuidades. Esse é o traço dominante. Não houve, nesses mais de 500 anos, nenhuma ruptura profunda ou significativa com nosso passado colonial. Nesse momento, não é diferente. Apesar do discurso da mudança, há uma inércia que leva à continuidade. Com base nessa premissa, eu diria que o governo Lula faz o mesmo movimento que foi feito pela administração FHC. Mas, muito cuidado, há diferenças entre eles. O governo FHC era cientificamente neoliberal, havia uma coerência estreita entre o pensamento e a prática política. Malan era neoliberal, as políticas de saúde e educação eram nitidamente neoliberais, a reforma agrária era neoliberal. Com o governo Lula, há uma mudança de cenário, e a troca de agenda. Sobe ao poder uma nova classe dirigente, que tem uma intenção sincera de defender o país e seu povo. Claro que, entre a intenção e a realidade, há muitos percalços. A segunda novidade é que a base da sociedade também mudou, e hoje pede mudanças, nova política econômica, mais emprego e melhores salários, justiça social. Creio que esses dois pólos ainda não são suficientes para alterar o sentido daquele movimento histórico de que falamos, mas podem ser fundamentais para começar a romper a inércia, promovendo as rupturas necessárias. Infelizmente, porém, eu acho que essa oportunidade está sendo desperdiçada e perdida.

A bomba-relógio deixada pelo governo FHC não justifica esse período de transição, uma certa cautela no encaminhamento das mudanças? Esse cenário já não era esperado?
Não vamos nunca subestimar a nocividade da herança deixada pelo governo Fernando Henrique. O contexto histórico internacional é também muito complexo, o que justificaria que as mudanças fossem feitas lentamente. Mas a minha crítica é que, além de elas não estarem ocorrendo, o problema maior é que o governo Lula vem até aqui aprofundando o neoliberalismo. Por quê? Porque ele não conseguiu construir uma correlação de forças sociais que lhe permita sair dessa armadilha do neoliberalismo. É refém da aliança política e eleitoral conservadora que foi organizada para garantir a eleição. Eu acho que essa é a chave-mestra para se compreender o problema. As forças progressistas estão na defensiva, e a direita está se aproveitando dessa espécie de paralisia ou letargia para imprimir um ritmo de reformas nos moldes neoliberais, nos moldes do mercado. Essa é a situação.

O grande drama e dilema do governo Lula, o nó a desatar, mesmo depois de eleito, são as alianças feitas para garantir essa eleição?
Sim, eu creio que é justamente nisso que reside o problema. A saída seria promover uma intensa mobilização popular, que fosse suficientemente forte e coesa para promover a reversão da correlação de forças e resistir ao avanço neoliberal. Se a sociedade não se mobilizar, não há como reverter a situação.

O erro foi acreditar que era possível agradar a gregos e troianos, reunindo no mesmo barco de trotskistas a liberais e conservadores?
O Lula faz uma leitura política e social de que é possível atender a gregos e troianos. Eu acho impossível acomodar forças políticas, projetos políticos e interesses tão distintos e opostos. A experiência histórica mostra que o neoliberalismo é anti-social e anti-nacional, principalmente para os países que vivem na periferia do mundo. Veja só um exemplo que revela bem os limites do neoliberalismo. O Programa Fome Zero, a prioridade absoluta do governo em termos de políticas sociais, levou o governo federal a aumentar a dotação orçamentária para os programas destinados a combater a fome em 1,8 bilhão de reais. Praticamente no mesmo instante, a redução de gastos promovida pelo governo para atender à necessidade de elevar o superávit fiscal foi da ordem de 14 bilhões de reais, sendo que cinco bilhões foram retirados das áreas sociais. Ou seja, de uma tacada só, cortou-se quase oito vezes mais do que aquilo que será consumido pelo principal programa do governo. É uma boa mostra de interesses conflitantes, e sinal de que a preocupação maior é mesmo com a questão do pagamento das dívidas externa e interna – exigências do mercado.

É preciso resgatar o Lula metalúrgico, o Lula das greves do ABC, o Lula como grande líder popular e hábil negociador?
O Lula é uma figura política, forjada dentro de determinado contexto histórico. Não dá para olhar para o Lula de maneira individualizada ou personalista. Ele nunca foi um formulador, um estadista. Sua grande qualidade foi a de ser um hábil negociador, alguém que conseguia acomodar os interesses de pólos contraditórios. Ele vinha de São Bernardo, legitimado pelas greves e assembléias, e dizia para os empresários da Fiesp “olha, o pessoal lá está bravo, vamos tentar encontrar uma saída”. E conseguia vitórias para os trabalhadores. É esse Lula, o da Vila Euclides, que representa e encarna a possibilidade de mudanças para milhões de brasileiros. Eu tenho usado uma imagem que ajuda a ilustrar o momento que vivemos. O Lula é como uma bexiga. O povo mobilizado enche essa bexiga de ar e segura o seu bico. O Lula, com respaldo, aproveita esse movimento para fazer as negociações e promover as mudanças. Agora, se a sociedade não se mexe, não infla a bexiga, não tem como o Lula agir para reverter a situação, e ele acaba se tornando refém da ordem estabelecida e sucumbindo aos ditames da direita.

Mas as reações no partido a essa guinada à direita têm sido intensas, inclusive de setores e pessoas não identificadas com os grupos mais radicais, mas que não aceitam seguir os rumos do mercado. O senhor acha que elas conseguirão recolocar o governo no caminho das mudanças? Ou o que se anuncia são os rachas e punições?
O chamado “mercado” está muito bem representado no governo federal, seja no Banco Central, seja em alguns ministérios estratégicos. Ele é absoluto na área econômica e a área econômica prepondera sobre as demais. Essa situação tem provocado muito desconforto no partido. A direção tem adotado métodos truculentos para coibir o debate interno. Questões como a reforma tributária, da previdência, autonomia do Banco Central não haviam sido discutidas internamente. Há uma perplexidade grande, muitas pessoas não entendem muito bem o que está acontecendo. Para que não aconteçam maiores traumas, será necessário promover um amplo debate interno. Sem ele, não haverá disciplina, e o conflito será a regra. Em última instância, se o governo e a direção do PT insistirem em enfiar determinadas posições goela abaixo da base, eu temo que o partido estilhace na base. Eu conheço muito bem os petistas e sei que muitos deles não aceitam comprar gato por lebre. Agora, o risco que se corre é que, se esse governo der errado, perdem não apenas o PT, não apenas a liderança política e social do Lula, mas todos os brasileiros, que se verão frustrados por uma experiência até então inédita na história do Brasil.

Como explicar os altos índices de apoio e de popularidade do presidente Lula, mesmo diante de um cenário de tantas adversidades?
A perspectiva das mudanças e o carisma de Lula são seus grandes capitais políticos. Por isso o povo tem sido paciente com ele. A sociedade acredita que o presidente está preparando o caminho e organizando a casa para as mudanças. Mas, se ela perceber que ele está aprofundando o neoliberalismo, corremos o risco de uma frustração sem precedentes, que certamente resultará em desmobilização e despolitização, com sérios perigos para a democracia, já que a revolta, sem a canalização política, não é produtiva, e conduz a cenários de desespero e caos, como está acontecendo na Argentina.

A entrevista da professora Maria da Conceição Tavares parece ter acendido uma espécie de sinal amarelo para o governo e colocou na agenda do dia o debate sobre focalização e universalização das políticas públicas. Como o senhor analisa essa discussão?
A entrevista da Conceição tem uma importância e significado políticos fundamentais, pois evidencia que não são apenas os radicais do PT que estão preocupados como o governo Lula e seus rumos. Todos os que desejam as mudanças estão preocupados. Ela reflete uma preocupação e uma indignação que atinge parcelas cada vez maiores da sociedade. O documento da Fazenda é puro sangue neoliberal. Ele afirma a necessidade de políticas focalizadas, que admitem a existência da marginalidade e da pobreza como fatos naturais e agem apenas de maneira compensatória, para amenizá-las. Para quem luta pela justiça social, o documento é uma verdadeira provocação. É uma negação da noção de universalidade dos direitos sociais. Quando o governo publica um documento dessa natureza, ele expressa uma adesão ao neoliberalismo científico de que falamos no início da conversa. Trata-se de um movimento que representa, portanto, uma ofensiva neoliberal muito agressiva no interior do governo Lula.

Mas a professora Conceição diz que esse movimento tem sido feito por pessoas que ocupam posições mais baixas na hierarquia do governo, assessores que são formuladores da política econômica. De certa forma, ela preserva e isenta o presidente da República e o ministro da Fazenda.
Essa é a minha discordância com a entrevista da Conceição. Sem dúvidas ela preserva o presidente Lula e o ministro Palocci. É até compreensível, pois o momento é realmente complexo e delicado. Mas não podemos ser ingênuos. Os verdadeiros formuladores da política econômica nacional continuam sendo o FMI e o Banco Mundial, com a anuência e concordância das altas esferas da administração, inclusive do presidente e de seu ministro todo poderoso.

Depois de passarem pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e de muita conversa e negociação com os governadores de estado, e inclusive antecipando o calendário inicialmente previsto pelo governo, as reformas tributária e da previdência já foram encaminhadas ao Congresso Nacional. O debate começa a esquentar e promete ser intenso. Enquanto o mercado parece aplaudir a iniciativa, setores à esquerda criticam as idéias, dizendo que continuam a privilegiar apenas a questão do ajuste de caixa, sem dar conta, de fato, de temas como bem-estar, qualidade de vida e justiça social. Qual a sua opinião sobre os dois projetos, que o governo Lula acredita que possam ser o ponta-pé inicial para as grandes mudanças?
O espírito das duas propostas é agradar os mercados e atender à agenda fixada pelo FMI e pelo Banco Mundial, aprofundando o neoliberalismo no Brasil. Elas confundem direitos coletivos com privilégios e promovem alterações institucionais que garantem mais margem de manobra para os agentes financeiros internacionais. No caso da reforma tributária, o que se pretende é manter e talvez até ampliar a capacidade de arrecadação do Estado, além de incentivar as exportações. É algo absolutamente afinado com a tese dos superávits fiscais e comerciais. No caso da Previdência, a proposta está perfeitamente alinhada com a tradição brasileira de socialização dos prejuízos e de privatização dos benefícios. O que se deseja é retirar da Constituição alguns direitos, abrindo espaço para a atuação dos fundos privados de previdência.

O senhor tem criticado também a mudança de postura do governo no que diz respeito às negociações sobre a Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA.
Ainda não está clara qual a estratégia que o governo utilizará. Parece existir um movimento que pretende forçar uma negociação bilateral do Mercosul com os Estados Unidos, com a intenção de criar uma ALCA mais suave, amenizada. Mas é difícil fazer uma avaliação com mais profundidade, pois o governo não mostra transparência nesse debate, e a gente trabalha com informações de bastidores. É tudo sigiloso.

Leia também:
“A dança imóvel e os impasses da transição”, artigo do prof. Plínio de Arruda Sampaio Jr. publicado pela edição 29 (maio/2003) da Revista da Adusp. Nesse mesmo site, você encontrará outros artigos de avaliação sobre os primeiros movimentos do governo Lula.

Leia também
O governo precisa fazer opções


ver todas as anteriores
| 03.02.12
De onde viemos

| 11.11.11
As violências na escola

| 18.10.11
Mini-Web

| 30.09.11
Outras Brasílias

 

Atualize seus dados no SinproSP
Logo Twitter Logo SoundCloud Logo YouTube Logo Facebook
Plano de saúde para professores
Cadastre-se e fique por dentro de tudo o que acontece no SINPRO-SP.
 
Sindicato dos Professores de São Paulo
Rua Borges Lagoa, 208, Vila Clementino, São Paulo, SP – CEP 04038-000
Tel.: (11) 5080-5988 - Fax: (11) 5080-5985
Websindical - Sistema de recolhimentos