Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Já é mais do que tempo de deixar para trás o senso comum e esquecer aquele estereótipo do aluno brilhante em todas as disciplinas da escola, com um boletim apenas com notas dez, óculos redondo e de aro grosso, tipo fundo de garrafa, com amigos esquisitos e que nas horas vagas costuma brincar de cientista maluco. Também não estamos falando de uma menina de quatro anos que lê e escreve desde os dois e que já é capaz de falar cinco idiomas, além de tocar violino e piano primorosamente – sem lembrar das piruetas perfeitas produzidas nas aulas de ginástica olímpica, mas que vive isolada e distante de outras possíveis amigas. Esses não são perfis capazes de representar com fidelidade crianças com habilidades extremamente bem desenvolvidas, os chamados superdotados. Mas, se não é assim, e se essa era a imagem com a qual estávamos acostumados a trabalhar (inclusive em sala de aula), quem é e quais são as características de um superdotado?
A discussão é complexa – apesar dos esforços que buscam agregar ao debate elementos mais precisos. De acordo com a o Ministério da Educação, que baseia sua definição conceitual em orientações internacionais, a pessoa com superdotação é aquela que “(1) apresenta desempenho superior ao de seus pares em alguma tarefa. (2) Tem alta criatividade nesta área e também (3) alto comprometimento com essa atividade”. Para além das áreas em que tem grande destaque, seria uma pessoa igual a todas as outras. Não é difícil concluir que, ao olhar apenas para esses três critérios, ainda um tanto quanto genéricos, fica complicado diferenciar quem realmente tem as altas habilidades daquele que é só muito bom ou muito estimulado em uma competência específica.
“É preciso ser um especialista na área para fazer a identificação corretamente e saber diferenciar alguém bom de alguém com superdotação”, explica a educadora Susana Pérez, artista plástica, mestre em Educação e doutoranda nessa mesma área pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Ela vem se dedicando há mais de uma década aos estudos sobre altas habilidades. E a história dela é bem emblemática porque é muito semelhante a de muitos profissionais especializados na educação de superdotados. Teve início quando seu primeiro filho começou a apresentar algumas capacidades mais intensas, em relação a outras crianças da mesma idade. Susana achou que aquela habilidade passaria, devia ser um pico de desenvolvimento. Mas não passou. Quando o outro filho nasceu, a história se repetiu. Ela ficou intrigada e resolveu buscar ajuda entre professores e psicólogos. Não conseguiu muita coisa. “Porque a primeira descoberta é que a criança tem habilidades especiais, diferentes das dos colegas de escola, mas a segunda é que a escola não sabe como lidar com isso”, relembra Susana, que é também presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação.
Despreparo das escolas
Muitas famílias que se deparam com situações semelhantes passam exatamente por esse périplo que a educadora viveu. Pais e mães ficam aflitos ao desconfiar da superdotação de seus filhos, buscam ajuda e não encontram assistência especializada e se vêem em uma encruzilhada entre a vontade de estimular as crianças na área de destaque e o medo de que sejam tratados como diferentes, especiais – e que acabem sendo afastados do convívio com as crianças ditas normais, passando a viver em guetos. Como não existem escolas especiais para superdotados no Brasil, o que costuma acontecer é que os pequenos são matriculados em instituições comuns e não raro passam a sofrer com a discriminação. “É quase como se fosse uma deficiência”, lamenta Susana. Esse cenário se manifesta porque as escolas, em geral, não estão preparadas para lidar com o diferente, e os alunos com altas habilidades acabam tendo um tratamento distinto dos demais. “Se o estudante é muito bom em matemática, por exemplo, ele começa a questionar o professor. Isso quebra a concentração da classe e chega a irritar o educador, que não teve formação para lidar com um aluno assim”, segue explicando a pesquisadora. Os alunos percebem essa diversidade e, de duas uma, segundo Susana: ou se aproveitam e usam deliberadamente as altas habilidades do colega, ou passam a repudiar esse elemento diferente, criando apelidos e ofendendo. Os alunos com altas habilidades, em geral, preferem não revelar suas capacidades – para não sofrer com o preconceito. Por isso também os especialistas na área mais recentemente têm evitado chamar essas pessoas de superdotados. “Essa palavra é muito prejudicial, porque vem cheia de conotações equivocadas”, defende a educadora, “por isso preferimos a expressão altas habilidades/superdotação”.
As pesquisas de Susana tanto para o mestrado quanto para o doutorado envolvem pessoas de 20 a 60 anos com altas habilidades. Quando ela questiona esses adultos sobre os tempos de escola, todos são unânimes em dizer que não foi uma boa experiência. Seja por causa dos alunos, seja por causa dos professores, seja por causa dos conteúdos em desacordo com suas habilidades, garantem que os anos passados em instituições de ensino não foram os melhores de suas vidas. E Susana acredita que seja hora de melhorar a relação com essa experiência escolar.
Destacando os avanços, a pesquisadora lembra que a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) aprovada no Brasil em 1996 determina que as escolas devam atender com educação de qualidade alunos com deficiências de todas as ordens --- exigência que também se aplica ao caso dos superdotados. Afinal, vale reforçar, eles não são deficientes, mas têm necessidades especiais.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 3,5 e 5% dos habitantes do planeta manifestam essas altas habilidades. Ou seja, numa turma de 30 alunos, é provável que um ou dois tenham a superdotação. Se pensarmos em faculdades, onde as turmas não raro atingem cem alunos, cinco deles podem ter altas habilidades. É bastante gente. “Mas esse dado é muito conservador, porque a OMS leva em conta os testes de QI, quociente de inteligência, que não são capazes de medir habilidades físicas, artísticas, ou de ordem interpessoal, por exemplo. Ou seja, esse número pode ser bem maior. Aqui no Rio Grande do Sul, quantificamos em 7,78% da população”, destaca a pesquisadora.
Para sustentar os estudos que desenvolvem, ela e os demais especialistas em superdotação atualmente se baseiam essencialmente nos estudos do psicólogo norte-americano Haward Gardner, autor da teoria das inteligências múltiplas. Gardner propõe que a inteligência cognitiva (essa que ajuda a aprender os conteúdos escolares, por exemplo) não é a única e propõe a co-existência de oito inteligências: a Lingüística (permite aos indivíduos se comunicar através da linguagem); a Lógica (capacita os indivíduos a usar e apreciar relações abstratas); a Musical (permite às pessoas criar e compreender significados compostos de sons); a Espacial (possibilita perceber as imagens, transformá-las e criá-las a partir da memória); a Cinética (permite aos indivíduos usarem seu corpo, total ou parcialmente, de formas altamente especializadas); a Intrapessoal (ajuda a diferenciar sentimentos e a desenvolver modelos mentais precisos); a Interpessoal (capacita os indivíduos a reconhecer e diferenciar os sentimentos e intenções dos outros); e, finalmente, a Naturalista (auxilia a distinguir, classificar e usar os elementos do meio ambiente). Segundo essa concepção, um superdotado, portanto, é alguém que tem habilidade fora da média em uma ou mais de uma dessas inteligências, alta criatividade e persistência nas tarefas relacionadas a essas áreas.
Pais devem ficar atentos
Justamente porque as habilidades são em áreas distintas, normalmente não trabalhadas dessa forma múltipla na escola, é que professores e diretores devem ficar atentos a manifestações de altas habilidades em seus alunos. Em geral, por volta dos seis ou sete anos, quando a criança inicia sua trajetória no ensino fundamental, acontece a percepção mais apurada de que aquele é um aluno especial. E, segundo os especialistas, é nessa fase que a instituição de ensino deve começar a atuar para estimular as capacidades do superdotado e ao mesmo tempo garantir sua inclusão na vida escolar tradicional.
Em 2006, o governo federal criou, em parceria com os estados, Núcleos de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação (NAAH/S), onde esses estudantes tidos como diferenciados recebem acompanhamento psicológico e estímulos às suas habilidades. A especialista da PUC/RS lembra ainda que não é possível menosprezar o fator ambiental na realização das altas habilidades – se a criança nasce com potencial genético para ser genial em música, mas nunca for apresentada a um piano, porque em sua escola não tem aula de música, sua superdotação não vai se solidificar. Então os núcleos de atendimento podem suprir necessidade. “Por isso é importante recomendar aos pais que percebam algo de diferente em seus filhos que procurem os NAAHs, instância em que o diagnóstico pode ser feito sem erro e onde o acompanhamento é bem feito”, garante Susana. Ainda assim, ela reforça que o amparo público é importantíssimo, mas não suficiente. As escolas têm sim que se adequar. Para os especialistas, trata-se de uma questão de cumprir a lei e de respeitar a diversidade. A pesquisadora da PUC/RS entende que, exatamente como é difícil a adequação da escola e do professor para atender bem o portador de deficiências físicas ou mentais, também esse movimento em direção ao superdotado pode ser penoso para o sistema educacional. Mas, insiste, deve ser realizado.
Se a direção da escola se sensibilizar, fica menos complicado, garante Susana. O primeiro passo é encontrar professores com vontade de se especializar nessa área. “Pela lei, para atender superdotados, o educador tem que ser especialista e existem vários cursos de formação para os interessados”. Se vários professores de uma mesma escola desejarem se especializar, melhor, “mas se apenas um for especialista, já é suficiente para identificar, diagnosticar e trabalhar com todos os alunos com altas habilidades de uma escola”, assegura a pesquisadora.
O passo seguinte é criar alternativas de trabalho com esses alunos. Segundo Susana, algumas escolas públicas e privadas têm se valido de parcerias com empresas e universidades para atender a essas demandas. Ela conta um exemplo de uma escola do Paraná que se associou à Universidade Federal de lá e conseguiu que professores daquela instituição superior fossem dar uma oficina de matemática aos alunos da escola. No começo, vários se inscreveram, mas só prosseguiram os com altas habilidades naquela área – o que era o esperado. Os estudantes foram acompanhados de perto, tiveram suas necessidades atendidas e a experiência deu tão certo que virou até uma atividade extracurricular fixa. “E não exclusiva. Era oferecida a todos, inclusive aos com superdotação. Ficou quem quis, mas todos tinham a oportunidade de desenvolver suas habilidades, exatamente como deve ser a educação na escola. Tradicional e inclusiva para todos”, comemora Susana.