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Seminário discute a criação de um sistema público de comunicação

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

O auditório estava quente e mal iluminado. O microfone de tempos em tempos deixava de funcionar. Mas os obstáculos colocados pelas acomodações e pela tecnologia não conseguiram diminuir a relevância do debate realizado no Teatro da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), na sexta feira, 7 de março. Organizado pelo Intervozes – grupo que atua na área da democratização e do direito à comunicação – e com o apoio da ECA e da Fundação Ford, o seminário TV Brasil e os Desafios para a Constituição de um Sistema Público de Comunicação reuniu autoridades e especialistas no assunto. E ajudou a dar mais um passo importante na direção da consolidação de um sistema de comunicação efetivamente público no Brasil.

A discussão sobre o tema não é nova para comunicadores, educadores e jornalistas. Desde sempre, as pessoas envolvidas com esse debate defendem a criação de emissoras de TV e de rádio responsáveis por levar adiante o ideal republicando da coisa pública. E, para separar o joio do trigo e desfazer confusões, já nos primeiros momentos do debate realizado na ECA o jornalista e professor Luiz Fernando Santoro tratou de explicar a diferença entre emissoras estatais e públicas.

Em linhas gerais, é possível afirmar que as primeiras são operadas pelo Estado, seja por meio do poder Executivo, como acontece com a TV Cultura de São Paulo ou com a Radiobrás (em nível federal); por meio do Legislativo, como as TVs Câmara e Assembléia; ou ainda envolvendo o Judiciário, como a TV Justiça. Nesses canais, via de regra, o conteúdo e a programação acabam em algum momento passando pelo crivo de governos, das casas legislativas e dos palácios da justiça, sem participação efetiva da sociedade. E essa é a principal diferença.

Na outra ponta, as TVs e rádios públicas pertencem à sociedade, que de forma mais ou menos intensa, por meio de mecanismos variados e a partir de distintas formas de organização e de representação, ajuda a definir a programação e estabelece o controle social sobre o que é exibido. Há emissoras assim no mundo todo, como a BBC, da Inglaterra – em que até os recursos financeiros que a sustentam vêm da população –, a TVE espanhola, a France Televisón, a RAI italiana, a RTP de Portugal, a PBS dos Estados Unidos e a CSA do Canadá.

TV pública no Brasil: peça de ficção
A partir dessa referência conceitual, a opinião unânime manifestada entre os componentes da mesa do debate, corroborada pela platéia de cerca de 200 pessoas que participou do evento, é que no Brasil a TV e a rádio públicas ainda não existem, são apenas referências, discursos ou peças de ficção, essencialmente porque governo algum tinha tido até agora a coragem de enfrentar a questão. Afinal, não é tarefa fácil brigar com os grupos que se opõem à idéia de uma comunicação pública, que acaba por representar grande risco aos monopólios e ao negócio da informação, que no Brasil concentra-se basicamente nas mãos de empresas privadas.

Tentando oferecer uma alternativa a esse cenário, em dezembro último entrou no ar a TV Brasil, parte da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), emissora idealizada pelo governo federal que nasceu ao encampar outras quatro emissoras: TVE do Rio de Janeiro, TVE do Maranhão, TV Nacional de Brasília e TV de São Paulo. Ela procura justamente consolidar a idéia de algo efetivamente público, porque além da diretoria – nomeada pelo governo federal –, é composta por um conselho curador formado por personalidades variadas e das mais distintas correntes ideológicas, com legitimidade social, que têm o papel de representar a sociedade, podendo inclusive demitir a diretoria, caso ela se coloque contra os princípios de uma comunicação pública. Em um futuro próximo, também poderão fazer parte do sistema as chamadas emissoras privadas de caráter público, como os canais comunitários e universitários.

A programação da nova emissora ainda patina e é uma mistura de realidades locais e de uma produção com caráter mais nacional, com destaque para o viés jornalístico. Vale lembrar também que alguns estados, incluindo São Paulo, ainda não recebem o sinal da TV Brasil.

Durante o debate realizado na ECA, a jornalista e diretora-presidente da EBC, Tereza Cruvinel, não poupou os governos anteriores ao explicar porque somente agora o assunto saía do campo da teoria para virar prática. “Não vem da cabeça do Lula ou do [Ministro da Secretaria de Comunicação] Franklin Martins a idéia de fundar um sistema público de comunicação. Nem a razão é uma vingança à cobertura enviesada das emissoras privadas nas eleições de 2006. O início de tudo está na Constituição de 1988”, garante. Ela fazia referência ao artigo 223 da Carta Magna, que traça os limites e funções das emissoras públicas, estatais e privadas e supõe a complementaridade entre os três tipos. A medida provisória que deu origem ao tão esperado sistema público é a de número 398, de autoria do deputado Walter Pineiro, do PT-BA, já aprovada tanto pela Câmara dos Deputados quanto pelo Senado, no último dia 11 de março, e que agora deve seguir para sanção presidencial.

Na opinião dos debatedores, outros inimigos do sistema público de comunicação seriam os donos das TVs privadas, ou privatizadas, como preferem classificar os militantes pela democratização das comunicações presentes na platéia. A idéia faz sentido, já que o espectro de ondas de radiodifusão é estatal, e é o Estado quem dá a concessão para a operação de canais comerciais. O problema aqui remonta ao nascimento da TV no país. Cruvinel lembra que o sistema já surge privatizado, e essa situação se aprofunda nos anos da ditadura militar, quando as concessões transformaram-se em moeda de troca e pilar de sustentação do regime autoritário.

É um cenário que guarda profundas diferenças em relação a outros países, principalmente europeus, onde a TV nasce estatal e, por pressão da sociedade, essas emissoras acabam se tornando públicas. Também na contramão do que acontece por aqui, por lá as comerciais aparecem apenas para cobrir as lacunas deixadas pelo sistema público.

Participação da sociedade
Em sua exposição, Tereza destacou ainda outros dois pontos fundamentais quando se pensa em uma TV verdadeiramente pública. O primeiro é a questão da participação efetiva da sociedade. Ela explicou que a Empresa Brasil de Comunicação – que tem na TV Brasil, de sinal aberto, sua maior vitrine – terá mecanismos para garantir o acesso da sociedade à produção e à programação da emissora principal e dos demais canais. Ela cita como exemplo a ouvidoria, que já está funcionando. Por esse caminho, a população pode manifestar o que acha da programação, o que gostaria de ver no ar e encaminhar críticas e sugestões.

A particularidade aqui é que o ouvidor terá um programa na televisão, ou seja, segundo Tereza, a população vai se ver ali representada, as demandas não serão esquecidas num buraco negro, e as respostas serão dadas, ao vivo. Os outros caminhos são a interatividade (afinal não dá para esquecer que a TV digital já está operando no Brasil e que o canal público de São Paulo já será inaugurado com transmissão digital) e a absorção das produções regionais. Diz a medida provisória 398 que “pelo menos 5% ou 10% da programação da TV Brasil será destinada a produções independentes regionais”.

Apesar da gritaria dos produtores independentes que participaram do debate na ECA, indignados com esse número, considerado por eles “muito pequeno”, a diretora-presidente defendeu o percentual, lembrando que se trata de um piso, e defendeu que a diferença mais visível da TV Brasil será sim sua programação diferenciada, regionalizada e de qualidade, capaz de dar conta de princípios inclusive estabelecidos pela Constituição do Brasil: garantir um espaço distante das pressões governamentais e do mercado e o direito à informação de interesse público, fundamental para a formação da cidadania. De acordo com a Carta Magna, as emissoras públicas devem ainda ser a expressão da diversidade cultural, social, étnica, uma espécie de mosaico das diferentes tradições que compõem a identidade brasileira.

Outro ponto polêmico levantado pela jornalista é a questão do financiamento. “Não dá para ter independência editorial e de programação sem independência financeira. Por isso o financiamento da TV pública é um capítulo de suma importância”, ressaltou. E de onde virão os recursos? Neste primeiro momento, é o governo federal quem está dando aporte de capital para a constituição das emissoras locais e para a formação da rede nacional. Também os salários são pagos pela administração federal.

Contudo, se a MP original for aprovada sem modificações, está previsto que os recursos passarão a vir de apoios culturais, das leis de incentivo à cultura, de publicidade institucional e de doações. Além disso, o sistema público receberá 10% do Fundo de Telecomunicações, o Fistel, uma taxa que as emissoras já pagam pelo funcionamento e pela fiscalização. Em outras palavras, parte da verba que sustentará a iniciativa pública virá do setor privado. Essa é provavelmente mais uma das razões pelas quais as emissoras comerciais não estão gostando nada da idéia de uma concorrência pública.

Uma das intervenções mais aplaudidas do evento foi a do economista, professor da Unicamp e presidente do Conselho Curador da EBC, Luiz Gonzaga Beluzzo, que destacou a importância da democracia para proteger os mais fracos e destacou a necessidade de o Estado de Direito organizar-se a partir de instituições sólidas, duradouras, independentemente de governos ou de indivíduos, que são passageiros. Aproveitando o momento, ele criticou a cobertura midiática do episódio envolvendo Venezuela, Equador e Colômbia, que teve início em 1º de março, depois que um líder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) foi morto numa ofensiva militar colombiana em território equatoriano. Beluzzo disse que não consegue entender porque alguns jornalistas fazem tanto esforço para superar seus patrões – os donos dos veículos – na conivência com essa cobertura enviesada e pífia de acontecimentos tão sérios. E essa foi a deixa para dizer o que o Conselho vai cobrar da TV Brasil e dos demais canais da EBC em relação à programação. “O que estiver no ar deve ser plural, deve retratar com pluralidade a sociedade brasileira. [O crítico musical] Nelson Mota disse que a TV pública só vai ser boa se tiver audiência. Mas se para ter audiência tivermos que abrir mão do caráter público, então não haverá diferença. Temos que ter uma TV nova, em todos os sentidos”, defendeu. E completou dizendo que sem a participação efetiva da sociedade, a construção de uma televisão pública não será possível, porque esse caminho é, provocou Beluzzo, uma aventura em busca do santo graal das comunicações democráticas.

A manhã – na verdade já início de tarde – dos debates foi encerrada pelo radialista e coordenador do Intervozes, João Brant. Para ele, a TV pública não deve ser apenas um contraponto às TVs privadas, e precisa justamente começar sua existência trazendo à baila algumas questões adormecidas e que, por falta de discussão, acabaram se naturalizando na percepção que o brasileiro tem da televisão. “Primeiro deve-se lembrar da concentração de mercado. Poucas são as emissoras estatais. A grande maioria é de caráter comercial, visa o lucro, é negócio privado, embora esteja sediada no espectro de radiodifusão, que é público”. Brant lembra que, como o sistema é uma novidade, não está sistematizado, o que deixa uma lacuna em termos legais. Isso significa que, além de criar o sistema, é importante desenvolver mecanismos que o acompanhem e fiscalizem. O representante do Intervozes destacou também a necessidade de romper guetos e estereótipos e de vencer uma espécie de guerra de discursos. “Se a pauta de reivindicações da sociedade para a TV Brasil e para os outros veículos da Empresa Brasil de Comunicação forem vistas como uma pauta da esquerda, então estamos lascados. É preciso que a sociedade entenda que a nossa demanda é republicana, que acaba sendo política sim, mas que não é só da esquerda, é de quem defende a República e seus valores”. Ao fazer referência aos valores republicanos, expressão que voltou à moda de uns tempos para cá, o radialista diz pensar nas atitudes em prol da coisa pública, do bem comum.

Ao encerrar sua participação, Brant defendeu que a TV pública se mantenha a uma distância segura das forças políticas e de mercado. “Isso é importante sim, mas é preciso garantir que a TV Brasil será de fato um canal de expressão e participação da sociedade, com sua diversidade e pluralidade”, destacou. Para ele a TV pública não deve se contentar com um papel marginal, de uma instituição que funciona por benevolência de um sistema privado hegemônico. A meta deve ser exatamente a oposta, ou seja, na opinião dele a sociedade é que deveria ser benevolente com o mercado e dar a ele um espaço complementar. De qualquer maneira, o desafio de implantar a Empresa Brasil de Comunicação será, para João Brant – e nesse momento todos os membros da mesa concordaram com ele –, “o exercício mais promissor de discutir e experimentar esse tal caráter público da comunicação”.

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