Professor, partindo da premissa de que o jornalismo transformou-se na principal narrativa da contemporaneidade, qual é a referência e a imagem de crime e de criminalidade que os nossos veículos midiáticos constroem cotidianamente e colocam à disposição da opinião pública?
Acho que há várias narrativas sendo construídas simultaneamente. Penso especificamente na vítima, nas relações que envolvem o Estado e no criminoso. Todas elas implicam construções sociais. E a imagem do bandido que a mídia está construindo e reforçando é a de alguém cada vez mais agressivo, incontrolável, monstruoso, movido por uma violência não-instrumental, desnecessária. Ele comete o assalto e ainda mata. Trata-se de uma ação exagerada, sem razão de ser. Não deveria existir esse desprezo pela vida do outro, pela minha vida. Mesmo nas notícias que envolvem crimes de proximidade, aqueles que acontecem nos bares, em família, entre vizinhos, os passionais, há registros desse discurso de crueldade que é inadmissível. É uma maldade além da compreensão possível, sem sentido, gratuita. Nessa mesma linha de raciocínio, temos ainda a idealização de grupos que conspiram para nos fazer sofrer. Aqui estou me referindo diretamente ao crime organizado, a organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC) ou do Comando Vermelho (CV). Há uma narrativa midiática hegemônica que diz que eles estão mais organizados e manifestam mais ambições políticas do que aquelas que eles provavelmente têm. O mais provável é que os traficantes, por exemplo, desejem apenas a existência de um mercado consumidor, ao invés de desejarem controlar a cidade do Rio de Janeiro.
Em relação ao Estado, a imagem é a do poder corrupto, ineficiente e descartável?
Desde a manifestação da crise da política, da crise dos partidos e da idéia de representação, o que passa a fazer parte da esfera política são as discussões acessórias, o secundário, muitas vezes a frivolidade, o efêmero. Em muitas das retrospectivas políticas do ano passado, vimos como destaques assuntos como catástrofes ecológicas, acidentes e crises aéreas, ou seja, aquilo que não originalmente pertencia à esfera da política passa agora a fazer parte dela. Com esse desgaste dos atores políticos mais tradicionais, a mídia então constrói discursos que dizem “se não fosse a imoralidade, a corrupção, nós não sofreríamos”. Essa é uma idéia que vem associada à tese de incompetência do Estado, que, segundo essa lógica, é corrupto, inoperante, imoral, sustentando também policiais e políticos corruptos e incompetentes, que por sua vez nos fazem sofrer. Se esse aparato funcionasse efetivamente, a criminalidade seria reduzida. Na ponta final dessa linha, temos a construção narrativa sobre o cidadão, que surge como um sujeito preocupado com sua vida privada, desamparado, inseguro, assustado, preso em sua casa, sem vínculos sociais. É uma vítima inocente condenada à esfera privada, que teve interrompido seu direito à felicidade. Uma vítima de acidente de carro só é generalizável, só pode aparecer com destaque nas páginas dos jornais como indivíduo privado e caso seu sofrimento seja construído como decorrente de alguma ação ou inação do Estado, como a má-conservação de estradas ou por conta das leis brandas para motoristas bêbados. É uma vítima diferente dos antigos retirantes, cuja existência podia ser atribuída à desigualdade.
Essa narrativa conservadora guarda alguma relação com a estética do espetáculo?
Acredito que se trata de uma visão conservadora que marca o cenário político global, ou seja, é uma tendência planetária que caracteriza a sociedade contemporânea neoliberal que tem essa forma bastante específica de pensar seu sofrimento. Na chamada época moderna, iluminista, acreditava-se que as transformações sociais seriam responsáveis por amenizar e resolver nossos sofrimentos, ou seja, de certa forma entendia-se a criminalidade como um problema social passível de ser superado por ações como distribuição de renda e justiça social. Agora, o comportamento moral dos políticos torna-se a ferramenta mais eficiente para nos livrar de males e de problemas. É uma narrativa conservadora, pois pressupõe sempre que a melhor forma de combater o crime é com punições e ações truculentas. Vale lembrar que no Brasil o crime aparece invariavelmente associado à pobreza. E aí você acaba legitimando as saídas autoritárias e a violência contra os pobres, em nome do suposto combate ao crime. Esse cenário reforça discursos que restringem práticas cidadãs e a aplicação efetiva da idéia dos direitos humanos. Nos Estados Unidos, o governo Bush tortura prisioneiros porque eles são “perigosos”; no Rio de Janeiro, a polícia invade as favelas e mata moradores “suspeitos” de colaborar com o tráfico, e ninguém contesta. Estamos anestesiados e aceitamos – pior, concordamos – com essas narrativas.
Quais as razões que explicam a ocorrência dessa narrativa midiática de viés conservador? Exigência da opinião pública? Despreparo dos jornalistas? Ou opção ideológica dos meios de comunicação?
Essa é uma questão bastante complexa. A sociedade moderna era mais tolerante em relação ao crime, pois acreditava em causas sociais para o problema e na possibilidade de recuperar criminosos, especialmente se jovens e pobres. A TV e os jornais no início da década de 1980 freqüentemente denunciavam as más-condições dos “reformatórios”. Mas essa era uma concepção essencialmente desenvolvida pelas elites, pelas classes dominantes. Com as crises dos anos 1980 e 90 e a explosão da violência, essa elite deixou de estar no abrigo, e tornou-se conseqüentemente mais punitiva. Ela conhece muito de perto a insegurança, o desamparo. As crises passam a atingi-la, e o cenário torna-se mais ameaçador. Por isso, ela torna-se menos tolerante. Em segundo lugar, há também em dimensão global uma crença e uma convicção que abandonam a perspectiva da transformação social e assumem o capitalismo neoliberal como algo inevitável, sem que se possa construir ou pensar em alternativas a ele. Sem esperanças ou utopias, as pessoas se voltam para elas mesmas, querem o aqui, o agora, o imediato, o prazer instantâneo. O outro não é mais aquele que eu posso consertar e ajudar, ele apenas ameaça e impede o meu direito à felicidade. A cidadania não é mais sinônimo de mudança, de transformação, mas acaba sendo confundida com a idéia do sujeito que é vítima da tirania e da maldade alheia. É preciso defendê-lo. Se eu não causo danos, posso fazer o que quiser; e quem me causa danos deve ser contido. Nessa esfera que chamo de mudanças estruturais, passamos a aceitar o vale tudo, as punições preventivas e até mesmo a prática da tortura, e invertemos a máxima que diz que todos são inocentes até que se prove o contrário. Para as narrativas midiáticas contemporâneas, todos passam a ser culpados, e muitos sequer poderão ter a oportunidade de provar sua inocência, justamente pelos supostos riscos que podem representar.
A partir dessa realidade, os meios de comunicação, representantes desse sistema de poder, acabam encontrando espaço e terreno fértil para reverberar e consolidar essas narrativas conservadoras?
Essa segunda ordem de problemas está um pouco relacionada com a cultura brasileira. A socióloga Elisa Reis desenvolveu uma pesquisa que procurava identificar a percepção que as elites brasileiras têm da pobreza. Esse trabalho revelou que a pobreza não é de fato um problema para o pobre, mas para o não pobre, um dilema que para as classes mais favorecidas se manifesta na forma de insegurança e de medo do outro. A responsabilidade pela existência da pobreza é em geral atribuída ao Estado, que é inoperante. E a questão é que essa miséria ameaça a vida dos que vivem fora dela. Essa visão que as elites desenvolvem encontra abrigo e ressonância nas narrativas midiáticas, já que os meios de comunicação também relacionam diretamente a pobreza à criminalidade e ao perigo. Portanto, essas duas demandas e dinâmicas se encaixam de forma bastante coerente, e o que os meios de comunicação fazem o tempo todo é reproduzir o discurso das elites sobre a pobreza. É uma caixa de ressonância. É por isso que digo que o noticiário é espetacularizado, não apenas a partir da dramatização, mas da idéia de ficção. Trata-se de um discurso que diz que “se aqueles sujeitos fossem bons e morais, não haveria sofrimento”. É uma história que não tem efetividade.
Mas é uma história que incentiva e amplifica a cultura do medo e até mesmo a histeria coletiva.
E o medo certamente não é o que melhor orienta uma cultura política. E como a mídia produz esse medo do crime? Ela não seleciona aquilo que está relacionado com o cotidiano de normalidade, que acaba não aparecendo nas nossas narrativas, mas atenta apenas para o que é excepcional, o anormal, e muitas vezes escorrega no bizarro e no grotesco. Isso tem um efeito, ou seja, o público passa a olhar o mundo a partir do ponto de vista da vítima, enraizando e aumentando a idéia de que a cidade é violenta e que um crime pode acontecer com ele a qualquer momento. Se você é turista, vem para o Rio de Janeiro e passa pela Linha Vermelha, não tem jeito, você vai ser pego. Você passa o tempo todo procurando sinais dessa excepcionalidade e esperando o crime acontecer. É um constante estado de alerta, de tensão. Em um segundo nível, a mídia mudou a sua forma de generalização. Por que um sofrimento privado, um crime de qualquer natureza, transforma-se rapidamente em algo de domínio e discussão pública? Antes, essa generalização acontecia a partir da perspectiva do drama humano. O crime passional acontecia em espaço privado, você lia, acompanhava, era observador, mas se colocava à distância, conseguia pensar “bem, eu sou diferente, consigo me controlar, não agiria daquela forma e não cometeria aquele crime”. Paulatinamente, a partir da década de 1990, a mídia passa a dar preferência para crimes aleatórios selecionados no espaço público. Prefere também casos mais violentos, seqüestros, mortes, estupros, crianças arrastadas por carros, os chamados crimes hediondos, justamente para carregar nas tintas desse cenário e disseminar o pânico. A opinião pública, por identidade e proximidade, se apavora, passa a pensar “puxa, está crescendo, está ficando pior, cada vez mais perto de mim e pode acontecer comigo a qualquer momento”. Eu sou transportado diretamente para aquela realidade ameaçadora, coloco-me no lugar da vítima. Com essa narrativa recorrente e repetitiva, você reforça a cultura do medo. E aí a mídia, na etapa final, chama para si a tarefa de apresentar soluções para o problema, sempre conservadoras e punitivas, que colocam a opinião pública contra o Estado e contra aqueles que defendem os direitos humanos, vistos como defensores dos bandidos.
Essa narrativa é também muito perigosa porque idealiza uma sociedade de guetos, incapaz de conviver com as diferenças.
Ela segrega, cria o “nós contra eles”, em uma perspectiva que é estrutural e impossível de ser superada, ou seja, não há mais espaço para transformações, aproximações, negociações ou tolerâncias. É uma separação intransponível. “Nós” são os cidadãos de bem, quem quer ter prazer e não coloca o outro em risco, é a boa polícia, aquela que é forte e não corrupta; os “outros” são os bandidos, os pobres, os policiais corruptos. Vivemos em guetos, não só limitando a sociabilidade a condomínios fechados, como pobreza torna-se marcador de risco. Poucas pessoas de classe média transitam com tranqüilidade perto de periferia ou favelas. E o mais dramático é que esse medo do crime se auto-alimenta. Quando mais se fecha e se isola, mais a sociedade fica insegura e à mercê do crime, sem efetivos espaços de sociabilidade. É um círculo vicioso.
De acordo com suas pesquisas, quais as diferenças que a mídia estabelece ao cobrir um crime que envolve a classe média e um acontecido nas favelas e nas periferias, tendo como vítimas os pobres?
O jornal “O Globo” costumava qualificar alguns acontecimentos como “o crime que abalou a cidade”. Em todas as notícias que analisei desde 2001, quando o jornal afirma que a população teria ficado abalada, nenhuma das vítimas era morador de favela. O critério de seleção não foi a violência do crime; tanto no “asfalto” quanto na “favela” houve sofrimentos imensos, crianças e jovens que morreram por bala perdida. Outra forma de desprivilegiar sistematicamente o sofrimento dos pobres é a manchete ou a escolha narrativa de acontecimentos que envolvem a vitimização conjunta de moradores pobres e de classe média. Por exemplo, “Tiroteio no Salgueiro provoca pânico na Tijuca”, como se os moradores do Salgueiro ou já estivessem acostumados, ou não fossem também cidadãos. São muitos os casos: “tiroteio no Vidigal assusta principalmente quem passa de carro pela Avenida Niemeyer”; “tiroteio no Chapéu Mangueira provoca pânico na praia de Copacabana”, dentre tantos outros. Uma outra forma de desconsiderar o sofrimento é a mídia aceitar a narrativa policial que diz que todos os indivíduos mortos em ação policial na favela ou eram traficantes (o que seria o caso de todo jovem do sexo masculino), ou aceitar a narrativa de que estamos em guerra, pois desde então, mesmo que inocentes, eles seriam “danos colaterais inevitáveis”. Creio que a razão dessa preferência por vítimas de classe média é simples: se a elite percebe a pobreza como classe perigosa e se a homogeneidade da mídia faz com que ela seja pouco mais do que veículo da elite, será uma vítima privilegiada o indivíduo que reforça o lugar da pobreza como classe perigosa. E uma vítima da favela só se torna relevante quando seu sofrimento é prenúncio do que pode acontecer aos moradores do “asfalto”, por exemplo quando são vítimas do “tráfico”, essa entidade supostamente determinada a impor a barbárie à cidade. Essa situação pode mudar; já há alguns sinais de que está mudando recentemente. Basta que essa população pobre conquiste maior espaço político para que seu sofrimento seja reconhecido e reduza a tolerância em relação à negligência policial nas ações em periferias e favelas.
No Brasil, a revista “Veja” seria a principal representante contemporânea dessa linhagem de narrativas conservadoras e que ajudam a disseminar essa cultura do medo?
Confesso que já algum tempo não leio muito a “Veja”, justamente porque entendo que a revista representa sim essa tendência conservadora, é um dos veículos onde mais intensamente se tende a reforçar essa idéia de que todos os males do Brasil se devem à corrupção e à criminalidade, que defende inclusive uma visão fundamentalista de sociedade, sintonizada com princípios e valores dos falcões republicanos dos Estados Unidos. Mas a minha preocupação é que essa narrativa midiática no Brasil é extremamente homogeneizada. Não há vozes dissonantes. Não há o outro lado. O jornalismo descobre e impõe verdades, defende teses, quer sempre revelar algo que estaria sendo escondido pelos poderosos. Isso é horrível, pois você perde de vista a pluralidade e reforça preconceitos e estereótipos. Além disso, o jornalismo assume o papel de juiz, de tribunal, corre para apontar o culpado, tem pressa para definir quem cometeu o crime. É um denuncismo desenfreado e perigoso.
Episódios como o fim do jornal “Notícias Populares”, a perda de audiência dos telejornais policialescos e o fracasso recente do “Aqui Agora” representam sinais de resistência e de mudanças de comportamento, ainda que pontuais, de uma opinião pública que já não estaria mais aceitando tão tranqüilamente esse espetáculo midiático?
São sinais de mudanças, mas tenho sérias dúvidas se as pessoas de fato estão cansadas desse excesso. Não tenho essa sensação. Pelo contrário, fiquei extremamente preocupado com as pessoas aplaudindo o Bope e o Capitão Nascimento ao final das exibições do filme “Tropa de Elite”. É assustador que se aceite que, em nome de uma suposta segurança, você possa sair por aí torturando e matando. Em função do crescimento da economia e do avanço dos índices sociais, as taxas de criminalidade vêm caindo, mas a visibilidade, a intensidade e a espetacularização das narrativas midiáticas se intensificam. É difícil pensar em saídas, mas para dar conta dessa situação, vamos precisar em algum momento dialogar com os jornalistas, para tentar qualificar e melhorar essa prática. E acho que não há possibilidade de mudanças se não houver o retorno de uma discussão política de outra natureza, menos determinada pelo medo e mais sintonizada com princípios que reconheçam a diferença de oportunidades e a possibilidade do perdão.