Elisa Marconi e Francisco Bicudo
No início do mês de abril, a mídia abriu espaços generosos para a divulgação dos resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), edição 2007. Criado pelo governo federal em 1998, a avaliação é voluntária e interdisciplinar e tem com propósito principal mensurar as competências e habilidades desenvolvidas e o nível de aprendizagem dos alunos que estão concluindo o 3º ano do ensino médio, a última série da vida escolar. De fato, trata-se de assunto relevante e de interesse público, condições que justificam a cobertura jornalística do tema. No entanto, ao trabalhar com rankings e com listas de “melhores e piores”, as narrativas construídas por parcela significativa das reportagens publicadas pelos mais diferentes órgãos de imprensa voltaram a trazer à tona uma série de discussões importantes a respeito da finalidade das avaliações, do uso que muitas instituições de ensino vêm fazendo desses resultados e, principalmente, sobre o não cumprimento dos objetivos originais do exame.
“O ENEM deveria, segundo seu projeto inicial, fazer uma avaliação da aprendizagem para, simultaneamente, permitir ao aluno se auto-avaliar, criando então condições para o Estado sistematizar informações capazes de subsidiar a construção de políticas educacionais”, explica Isabel Cappelletti, professora de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista no assunto, ela afirma que instrumentos de avaliação externa – idealizados pelas autoridades educacionais do país – são sempre uma ótima iniciativa. “O poder público tem mesmo que saber como andam as escolas, os currículos, o grau de aprendizado e onde e como o dinheiro da educação está sendo aplicado”. E é justamente ao partir desse princípio que Isabel identifica algumas falhas na dinâmica consagrada pelo ENEM, que ela prefere definir como uma prova. “Avaliação é um processo mais amplo e mais profundo e não pode se resumir a um momento”, diferencia. A educadora reforça: não é fácil perceber o grau de aprendizado de um estudante a partir de um instrumento único. “Somente o professor de cada disciplina é que consegue analisar quanto cada estudante evoluiu e aprendeu, porque só ele sabe o conteúdo que foi dado e como estavam esses jovens antes daquelas aulas”. Outra crítica que ela faz diz respeito ao papel do ENEM como mecanismo de auto-avaliação. “O ENEM é prestado no final do processo. O intuito de se auto-avaliar para corrigir rotas e reajustar caminhos ainda durante a formação perde o sentido”, contesta a professora da PUC-SP.
A especialista lembra que há ainda outras duas questões contundentes relacionadas ao Exame Nacional do Ensino Médio e à divulgação de seus resultados. Trata-se, primeiro, de uma sensação manifestada por boa parte dos educadores, que lamentam o fato de as informações colhidas com a aplicação do Exame não serem revertidas em efetivas políticas públicas na área. Isabel diz que a percepção geral é que a prova – e as anotações que ela sistematiza – não estão ajudando muito. “As informações são gerais, e as realidades, muito particulares, específicas de cada localidade do país. Talvez seja impossível aplicar a mesma diretriz em duas cidades muito diferentes, ou em duas escolas muito diferentes”, ensina. Em outra instância, é preocupante também o uso enviesado que muitas escolas, principalmente privadas, fazem dos resultados do ENEM, anunciados, comemorados e cantados em verso e prosa muito mais como peças de propaganda do que como instrumentos pedagógicos.
Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em fevereiro de 2007, ainda quando comentava o processo de 2006, o sociólogo José de Souza Martins, professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, procurava esfriar essa tendência marqueteira e mercadológica. Escrevia ele: “O mais que melancólico resultado do Exame Nacional do Ensino Médio, de 2006, aponta à consciência do País o abismo em que se precipita a nossa educação. O nosso ensino não passou de ano: as médias são as da reprovação”. Dessa forma, ele ajuda a desmontar dois raciocínios construídos pelas escolas e reverberados pela mídia: a idéia de que ir bem no exame representa uma porta de entrada garantida para a universidade e a tese de que instituições que têm uma média boa no ENEM oferecem um ensino de melhor qualidade. As duas afirmações começam a cair por terra quando Martins ressalta que “o exame não é obrigatório e milhões de concluintes do 3º ano do ensino médio nem se dão ao trabalho de submeter-se a ele. Portanto, as médias publicadas não representam de fato uma objetiva avaliação do conjunto das escolas e dos estudantes”.
Vale reforçar: os resultados no ENEM são baseados em médias – que, como argumenta o sociólogo da USP em seu artigo, “revelam pouco e escondem muito”. Isabel lembra ainda que há escolas, públicas e privadas, com propostas pedagógicas excelentes e diferenciadas, como educação para adultos ou para pessoas com dificuldades de aprendizagem – e que justamente por investirem nesses caminhos acabam vendo reduzidas suas notas médias no Exame. Esse cenário, no entanto, não significaria que o ensino oferecido por elas é de qualidade duvidosa. “Todos os educadores sabem que alunos treinados para fazer provas se saem melhor quando a avaliação é feita dessa maneira. Não significa que aquele estudante aprendeu mais. Significa que está mais treinado para fazer provas”, acrescenta Isabel.
Por isso, o conselho dela é que os pais esqueçam esse critério e os tais rankings das melhores instituições – um detalhe, segundo a educadora, não importante para analisar a qualidade da proposta pedagógica idealizada pelo colégio e do ensino desenvolvido ali. Ela admite: é difícil não cair na tentação de dar uma forcinha para garantir que o filho, no futuro, entre numa boa faculdade. Mas as pesquisas são contundentes, e a professora da PUC-SP é incisiva ao afirmar que “para conseguir acesso a um curso superior de qualidade, os pontos extras garantidos por uma boa nota no ENEM não são fundamentais. Quem entra são os bons alunos, e esses não precisam do apoio do exame”.
Para sustentar esse raciocínio, ela cita estudos realizados na USP, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em uma simulação feita pela própria PUC-SP. “Como a PUC não computa os resultados do ENEM, fizemos uma simulação. E descobrimos que o resultado de quem foi ou não aprovado não seria influenciado pela nota tirada no exame”. José de Souza Martins, sempre em seu artigo de 2007, concorda: “Os que não precisam dos favorecimentos sociais decorrentes da prestação do exame, o que inclui provavelmente um grande número dos melhores alunos e das melhores escolas, dificilmente se sentem motivados a submeter-se a ele. Dentre os que se submetem há os que vêem na classificação, mesmo medíocre, um recurso para obtenção da bolsa do Pró-Uni para o acesso ao curso superior”. Atualmente, o aluno das classes menos favorecidas que freqüentou escola pública a vida inteira e obteve no mínimo 45 pontos no ENEM tem, por lei, direito a uma bolsa integral em alguma faculdade particular que tenha acordo com o governo federal. O sociólogo da USP ainda ressalta que chega a ser patético as escolas se vangloriarem de suas posições no ranking, porque as notas ali divulgadas são ruins e dificilmente ultrapassam os 75 pontos, o que torna a distância entre as ditas melhores e as chamadas piores muito pequena.
Para Isabel, a avaliação está mal empregada e não deveria se prestar à punição ou à premiação, mas sim como um “motor para alcançar uma maior qualidade social e cultural”. Em outras palavras, deveria atuar como instrumento de transformação, nunca de competição e de concorrência descabidas. Souza Martins completa: as provas do ENEM medem pouco e não medem “a fratura que separa a escola da sociedade”, mas mostram com clareza “o abismo cultural imenso que separa a escola dos educadores e a vida dos educandos”. Porque aqui no Brasil, durante muito tempo a educação foi vista como instrumento para civilizar os bárbaros, e sempre foi assim que as elites trataram as classes subalternas. Martins alerta que essa mania continua existindo – e se agravou com a proliferação de educadores que ideologizam antes de ensinar. “Educador é quem ensina para a liberdade de pensar, imaginar, criar, e não quem ensina para o cativeiro do pensamento único, da ideologia retilínia em conflito com a pluralidade das diferenças e a pluralidade do real e do possível”, conclui.