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Artigo analisa comportamento da mídia no caso Isabella

Por Francisco Bicudo

Em frente ao prédio, o já famoso edifício London, localizado na zona norte de São Paulo, mais de cem jornalistas – a maioria fotógrafos e cinegrafistas – se acotovelavam e disputavam espaço em busca da melhor cena, da imagem exclusiva. Transmitida ao vivo por emissoras de sinal aberto e por canais a cabo, a reconstituição do assassinato da menina Isabella Nardoni ocupou mais uma vez espaço significativo nos telejornais e nos programas de entretenimento do domingo, 27 de abril, e foi o destaque principal de todos eles. Acompanhamos mais um capítulo da já longa novela midiática em que se transformou a tragédia. Sem entrar na discussão sobre culpados, já que a polícia ainda encaminhando o inquérito ao Ministério Público, que deverá se pronunciar sobre abertura de um processo, até que o julgamento possa acontecer, não há como negar que o crime é estarrecedor, assusta, provoca comoção e indignação. Há um acontecimento de interesse público que merece as atenções do jornalismo. O debate se justifica. Não por acaso, pesquisa feita pelo Instituto Sensus e divulgada pelo portal Terra indicava que 98,2% das duas mil pessoas entrevistadas pelo levantamento estavam acompanhando o caso por meio dos veículos de comunicação. O que não se aceita, no entanto, é que a lógica racional da informação seja substituída pela exacerbação dos instintos e das emoções, patrocinada pelo show e pelo espetáculo. Infelizmente esse tem sido o tom dominante da cobertura, principalmente no que diz respeito às televisões (o que não significa dizer que rádios, sites e veículos impressos não tenham escorregado em algum momento nessa perspectiva). Em grande medida, é esse discurso midiático mais sintonizado com o entretenimento e com a ficção quem ajuda a consolidar na sociedade o desejo de vingança e de fazer justiça com as próprias mãos. Em pleno século XXI, voltamos a considerar normal e aceitável a tentativa de apedrejamento em praça pública como forma de punição. Eis alguns dos riscos inerentes à narrativa espetacularizada – a perda de referências e de limites e a histeria coletiva.

“As autoridades, de fato, armaram o espetáculo e alguns setores da mídia, sobretudo certos telejornais, entraram em cheio no crime do ano. A repetição exaustiva das cenas garantiu, certamente, uma bela audiência. Não sei se garantirá credibilidade”, escreveu Carlos Alberto di Franco, professor de Ética e doutor pela Universidade de Navarra, na Espanha, em artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Vale lembrar que o jornalismo é legítimo filho das revoluções burguesas do século XVIII e nasceu para promover o esclarecimento e a democratização dos saberes, até então represados pelos diques autoritários construídos pelo poder da Igreja durante a Idade Média e pelos reis, no Estado Moderno Absolutista. Busca, a partir da racionalidade, garantir o direito à informação. Trabalha com fatos e com a idéia da verdade – mas não pretende ser a sua máxima e exata representação. Pelo contrário, narrativas jornalísticas, socialmente construídas, significam versões possíveis – e o dever ético de todo jornalista é procurar construir a melhor versão possível da realidade, de forma honesta e plural.

Já o entretenimento apela para a diversão, a curiosidade, o efêmero, a distração, disposto a nos proporcionar momentos de descanso, de lazer. Em essência, lida com nossas emoções e sentimentos. Sem recorrer a maniqueísmos, é óbvio que há entretenimento inteligente e eticamente produzido. Todos gostamos de assistir a um bom musical, a um filme de ficção, a um jogo de futebol. Seria insuportável se as sociedades fossem abastecidas apenas e tão somente, 24 horas por dia, por noticiários, sem outras opções narrativas ou comunicacionais. Estabelecidos os limites e espaços de atuação, jornalismo e entretenimento, com suas distintas naturezas e propósitos, podem conviver em harmonia. Os problemas começam a se manifestar justamente quando essas fronteiras são rompidas – e o entretenimento tenta se aproveitar da credibilidade do jornalismo para construir suas leituras ficcionais de mundo. O cenário torna-se ainda mais grave quando o entretenimento transforma-se em espetáculo e, em busca de audiências e de consumidores, do lucro imediato, as corporações midiáticas desprezam parâmetros éticos, responsabilidades sociais e a idéia da cidadania, namorando agora com consumo, o grotesco e o bizarro. Some-se a esse cenário já preocupante o fato de a televisão ter assumido o papel de uma espécie de oráculo contemporâneo. Somos, como lembra o jornalista Eugênio Bucci, uma geração autorizada a acreditar apenas naquilo que nossos olhos vêem. Trata-se da reificação da imagem, absorvida de forma muito mais rápida e menos reflexiva do que as palavras e os sons, que nos obrigam a executar complexos exercícios mentais, na tentativa de organizar sentidos e significados e de sistematizar construções lógicas e argumentos. Sob o domínio da imagem, mais do que pensar, agimos automaticamente, tal qual robôs, movidos por impulsos e emoções. No caso específico da menina Isabella, confundimos justiça com vingança. Antes do Poder Judiciário, a mídia já estabeleceu a sentença: o pai e a madrasta são os culpados. A capa da revista Veja que chegou às bancas em 20 de abril não deixava dúvidas ou margem para discussão: “FORAM ELES”, escrevia, em letras garrafais, com uma foto sombria do semblante dos dois suspeitos. E a população vocifera, grita e invade as ruas para substituir as instâncias competentes no momento de fazer cumprir a pena. Perde-se a noção de civilização, de Estado de Direito.

“É muito perigoso confundir informação com espetáculo. (...) A notícia se transforma num show co-produzido por repórteres, delegados e promotores. Corre-se o risco de condenar inocentes, destruir patrimônios morais e, a médio e a longo prazos, comprometer gravemente a própria credibilidade da informação. O esforço para conquistar audiências, legítimo e necessário, não pode ser feito de costas para a ética”, continua Di Franco, no mesmo artigo. Em entrevista ao portal Terra, o antropólogo Roberto Albergaria, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que está em curso uma novela midiática à espera de um desfecho. Para ele, há nessa história um lado doentio, alimentado pela própria mídia. “O caso junta todas as determinações: o classismo, o racialismo, o infantilismo. E sobretudo o ‘comunicacionismo’, uma das coisas mais doentias que existe hoje, e que significa você explorar algumas misérias, seletivamente, como forma de emocionar as multidões. A novela vale mais do que os fatos e tira do debate público temas mais relevantes”, afirma. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, José Gregori, presidente da Comissão Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, reforça esse raciocínio. “A violência inominável contra uma criança serve como desculpa para a montagem de um show em capítulos. (...) Banaliza-se uma tragédia. A dor não propicia um momento de reflexão, ou a tentativa de entender em profundidade o problema de uma sociedade exponencialmente violenta, mas sim provoca uma ensurdecedora gritaria e um escândalo vulgar”, escreve.

Certamente alguém dirá que os veículos jornalísticos agem dessa maneira porque a população assim o deseja – “dá ibope, a audiência é alta, só estamos oferecendo aquilo que as pessoas querem ver”. Faz sentido, mas o argumento representa uma meia-verdade – e ainda assim extremamente perigosa. Talvez faça parte de heranças e registros ancestrais a atração que muitas vezes sentimos pelo mórbido, pela tragédia. A questão que deve ser colocada é: como instrumento que dialoga com a cidadania e a opinião pública, o jornalismo deve reforçar essa tendência ou, pelo contrário, precisa tensioná-la, oferecendo caminhos que nos chamem de volta à reflexão e à racionalidade? É preciso também levar em consideração a falta de opções: quem porventura deseja escapar do noticiário sobre o caso Isabella e resolve mudar de canal, encontra qual destaque em outra emissora ou telejornal? Provavelmente as mesmas notícias. Aqueles que por esgotamento ou mesmo por falta de interesse ousam dizer que não estão acompanhando os capítulos da tragédia são imediatamente rotulados como anormais e insensíveis, sendo colocados de escanteio em discussões travadas em ambientes familiares, profissionais, nas mesas de bares, nas salas de aula de escolas e universidades. Pertencem a outro mundo, não fazem parte dessa sociedade. São vistos como párias. Finalmente, a repetição exaustiva das informações parece criar um círculo vicioso que se auto-alimenta, uma espécie de dependência. Se eu não estiver sintonizado nas últimas novidades sobre o caso, a sensação é de incômodo, como se algo estivesse faltando. É melhor continuar ligado, prestando atenção a cada chamada, aguardando mais uma entrada ao vivo.

O problema é que a avalanche de informações não vem acompanhada pela possibilidade de compreensão. Pode parecer um paradoxo, mas é assim mesmo: quanto mais nos informamos, menos sabemos. Graças à velocidade, aos fragmentos narrativos descontextualizados, não temos nem tempo para absorver, decantar e processar os fatos. “Tenha as tintas que tiver o esclarecimento, ouvintes, telespectadores e leitores querem uma explicação. A mídia, como sempre, limita-se a pouco mais do que fazer ressoar as trombetas da polícia e dos acusadores. O público e a mídia não podem julgar, condenar ou absolver. Não têm este direito. E aquele direito que ouvintes, telespectadores, internautas e leitores têm, este não está sendo atendido: o de ser informado e entender o que se passou. E sabemos por quê: estão faltando boas reportagens, aquelas que só podem ser feitas com muitas pesquisas e investigações”, analisa Deonísio da Silva, da Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro, em artigo publicado pelo site do Observatório da Imprensa.

A mensagem é clara: menos quantidade, mais qualidade, responsabilidade, serenidade e profundidade. Chega de acelerar. É hora de colocar o pé no freio, de recusar o espetáculo e de reafirmar a necessidade do direito à informação. O jornalismo, que nasceu como um dos pilares de sustentação da democracia, não pode transformar-se e em adversário dela.

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