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Entrevista com a arqueóloga Niéde Guidon

Até muito recentemente acreditava-se que os primeiros habitantes do continente americano tinham chegado aqui pelo estreito de Behring – que liga a América do Norte à Ásia – e que eram descendentes de asiáticos. Nos últimos 30 anos os trabalhos da sua equipe vêm mostrando que não foi bem assim. A senhora poderia contar com mais detalhes que estudos são esses e por que eles mostram que a colonização se deu de outra maneira?
Até o final dos anos 1950, início dos 60, não havia muitos estudos a respeito da ocupação da América. Por isso mesmo, a corrente principal, nascida na América do Norte, dizia que o homem havia chegado pelo estreito de Bhering, há 15 ou 20 mil anos, e que esses homens eram asiáticos, e, portanto, todos os primeiros habitantes desse continente eram descendentes daqueles mesmos asiáticos. Contudo, já havia outros arqueólogos que acreditavam em outras possibilidades, principalmente grupos franceses, que estavam desenvolvendo pesquisas na Argentina, no Chile e em outros pontos das Américas. Eu fazia parte de uma dessas equipes que se preparava para estudar a região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, onde muitas descobertas já haviam sido feitas. A chefe da minha equipe estava decidida a encontrar o mais velho americano e estava trabalhando lá em Minas para conseguir isso. Mas essa história de encontrar o mais velho não era o que eu queria fazer, eu tinha visto as pinturas rupestres da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, no Piauí, e queria ir para lá, ver de perto, estudar. Por isso eu brinco dizendo que aprontava tudo em Minas e depois ia para o Piauí.

A senhora chegou ao Piauí em 1981. O que esperava encontrar e o que encontrou?
Quando eu cheguei lá, estava certa que a colonização da região não tinha mesmo mais do que 15 mil anos. As informações de que a gente dispunha diziam que o Nordeste era muito inóspito e por isso não haveria ninguém lá há mais tempo. Aí começamos a mandar para o laboratório as amostras que recolhemos e tivemos a primeira notícia de que os fragmentos tinham 18 mil anos. Achei que o laboratório tinha se confundido, mas eles garantiram que era aquilo mesmo e sugeriram que eu continuasse escavando, porque dali sairiam mais surpresas. E foi o que fizemos. Continuamos a procurar e ampliamos a área da região escavada para oito metros de profundidade e 750 metros quadrados, na área que chamamos de Pedra Furada. Aconteceu que à medida que fomos afundando, fomos encontrando fragmentos com datas cada vez mais antigas.

Isso significa dizer que à medida que ia escavando, a senhora começava a provar para os norte-americanos e para os arqueólogos que concordavam com eles que talvez o homem tivesse chegado à América antes do que se defendia...
Exatamente. Eu sabia que a partir daquele momento as descobertas da Serra da Capivara estavam no centro das discussões arqueológicas. Eu nunca quis me meter nessa briga política pela idade do homem americano, mas sabia bem a importância do que tinha encontrado ali. As provas estavam ali, era uma realidade. Ou seja, estava provado que a hipótese de Clovis, como chamamos a teoria hegemônica dos americanos, não tinha mais a menor validade.

O que vocês encontraram em Pedra Furada dizia o que exatamente? O homem havia então chegado à América em...
Há 100 mil, e não há 15 mil anos. E, mais, ele veio da África e pelo mar.

Muda tudo então.
Claro... não eram mais asiáticos, vindo por terra e chegando à América do Norte. Eram africanos, vindos pelo mar e desembarcando no Nordeste há 100 mil anos. É uma grande diferença.

E como a comunidade científica reagiu?
Bem, a arqueologia européia já esperava algo assim, porque estudos da época davam conta que já havia homens no Chile há mais de 30 mil anos e no México, o Homo erectus, uma espécie mais antiga que o Homo sapiens há mais tempo ainda que isso. Um dos problemas é que os americanos só cavavam perto do Oceano Pacífico e lá não encontravam muita coisa. A região do Atlântico era bem mais rica. Os americanos é que não reagiram muito bem e até hoje é lá o maior foco de resistência a essa nova teoria.

A senhora falou que os homens vieram pelo mar. Mas os homens já navegavam?
A ciência clássica acredita que o homem só começou a navegar há cerca de 7 mil anos, no chamado neolítico. Como se vê, isso não é possível. O que as pesquisas arqueológicas mostram é que os homens alcançavam ilhas a curtas distâncias há muito mais tempo. O Atlântico, naquele tempo, era bem mais baixo que hoje e havia muito mais ilhas. Assim, os macacos vieram de ilha em ilha e os homens, embarcados. Há 130 mil anos, a África passou por uma grande seca, e os agrupamentos humanos tiveram que sair dali para procurar comida e água. Muitos chegaram ao litoral africano, muitos começaram a pescar. Acreditamos que alguns desses grupos tenham sido empurrados para cá por uma tempestade, e a corrente vem de lá para cá. Por isso somos todos filhos de uma mesma Eva. E tem estudos que mostram que uma espécie de macaco encontrado no Acre veio originalmente da África. Você acha que os macacos conseguiriam atravessar o oceano e o homem não? Portanto a arqueologia ajuda inclusive a derrubar pensamentos a respeito da relação do homem com a tecnologia, o que é bem importante para compreender o todo.

A senhora contou que as descobertas feitas no Parque da Serra da Capivara derrubam uma série de teorias consagradas. Em termos acadêmicos são notáveis as mudanças. Os impactos são imensos, não?
A ciência segue evoluindo. A maneira de trabalhar lá nos anos 1970, 1980 era uma, e hoje já mudou muito. E esse aprimoramento já permite refazer as hipóteses. Quando a gente começou a estudar essa região aqui se achava que o Nordeste era uma região inóspita. Hoje a gente já sabe que não. Até 9 mil anos atrás o clima aqui era tropical úmido. A Mata Atlântica e a Floresta Amazônica se encontravam aqui. Entender o clima ajuda a entender muita coisa também. Vejo pelo tempo que estou aqui. Tinha uma porção de lagoas com aves em volta por aqui logo que eu cheguei. Eram umas lagoas bem grandes mesmo. Hoje não tem mais, elas secaram. E a causa disso é a ação do homem. O solo dessa região é arenoso. Se desmatar, a primeira chuva leva toda essa areia para o fundo do vale, assoreando os rios. Quem desmata é o homem, que em menos de um século já provocou uma mudança enorme aqui em São Raimundo Nonato. As pesquisas arqueológicas ajudaram a mostrar a evolução e o impacto do clima na vida dos homens dessa região e a nossa observação já permite atestar que o processo de mudança agora está acontecendo rápido demais e por ação do homem.

O que a senhora está dizendo é que o estudo arqueológico da região permitiu entender o clima no passado e no presente também. É isso?
Isso. Arqueólogos e Etnólogos que trabalham com os índios daqui podem contar como as sociedades ditas primitivas se relacionavam de uma maneira completamente diferente da nossa com a natureza. Eles tinham regras que limitavam, por exemplo, a reprodução e a natalidade, porque eles sabiam que a natureza tem limites. Nós hoje não temos essa consciência e estamos criando uma população enorme, sem controle e que vai precisar desmatar o planeta inteiro para produzir alimento. E mais ainda, uma população de velhos. Imagine o quanto os jovens do futuro terão de trabalhar para sustentar todos os velhos do planeta. O homem é um primata e, na natureza, um primata não vive mais que 40, 45 anos. Eu estou aqui, com 75 anos, muito mais do que deveria se fosse só pela natureza. É a tecnologia que permite esse avanço. O problema é que não estamos prevendo aonde esse avanço vai dar. A Arqueologia permite que a gente pense nesses problemas. Como era no passado, como é no presente e como será no futuro.

A senhora foi uma das 52 brasileiras, num grupo de 1000 mulheres do mundo todo, que concorreram juntas ao Prêmio Nobel da Paz, em 2005. A senhora acredita que a arqueologia tem a ver com a Paz?
Acredito que as coisas do passado possam servir como exemplos, como ensinamentos, exatamente como eu estava falando antes, os arqueólogos estudam e têm esse olhar. E hoje nossa contribuição não é só recontar as histórias dos povos. Veja, hoje o homem não se vê como parte da natureza, se vê como um ser superior a ela, e a história das guerras sempre foi a vontade de provar que se é superior ao outro. E não somos superiores à natureza. Somos uns pobres infelizes que pensam isso. Achamos que controlamos a natureza e estamos matando-a aos poucos. Vamos nós acabar morrendo como espécie assim. Nosso esforço de preservação do Parque da Serra da Capivara vai nesse intuito. Outro exemplo é a situação da África. O que está acontecendo agora na África do Sul [uma onda de xenofobia que tem matado estrangeiros no país] e todas as inúmeras e infindáveis guerras no continente africano remontam ao passado mais distante da região, existem muitas evidências científicas desse passado. Há países que têm mais de 30 ou 40 reis, os grupos não se falam, não se comunicam e acabam se matando. Essa não aceitação é que provoca a guerra, e a arqueologia mostra que usando o cérebro o homem é capaz de viver bem e em paz.

Uma das propostas da Fundação Museu do Homem Americano é levar o turismo para o Parque da Serra da Capivara. Como é, na visão da senhora, que o turismo pode ajudar nessa questão da preservação do planeta e do homem?
Quando o visitante vem para cá, vem buscando as pinturas rupestres, os sítios arqueológicos. Mas a primeira coisa com a qual ele se depara é a beleza da região, a exuberância da natureza aqui. Ter esse contato já ajuda a pessoa a perceber como é fundamental preservar essa obra, que não foi feita pelo homem, mas sim pela natureza. E foi também a natureza do lugar que ajudou a preservar as heranças que temos dos nossos antepassados. Isso não é obra do homem. Ver a beleza disso pode ajudar as pessoas a entender que a vida pode ser diferente desse lixo e dessa bagunça que vivemos hoje e também perceber que hoje até podemos viver mais, mas não vivemos mais tão bem quanto antes. E a gente vai ter que repensar tudo para garantir o futuro. E essa natureza é também o que garante a possibilidade da multidisciplinaridade. Aqui tem espaço para estudos na área de História, Geografia, Economia, Sociologia, Antropologia, Biologia, Geologia... tem uma pesquisadora aqui estudando os fungos da caatinga e descobrindo até espécies novas e eu estou atrás de pesquisadores que queiram estudar os insetos maravilhosos aqui da região.

Mas falta infra-estrutura para receber as pessoas...
Até junho de 2009, o aeroporto de São Raimundo Nonato fica pronto, me garantiram as autoridades, aí vamos poder receber nesse espaço de natureza preservada o Congresso Internacional de Arqueologia, um evento que vai reunir mais de 1000 pessoas. Vai ser muito importante para o Brasil receber esse congresso. Pode mudar o status do Brasil frente à comunidade científica. Vamos falar sobre a arte rupestre e como ela já representava a globalização, muito antes dessa globalização que temos hoje. Existe arte rupestre em todos os lugares e ela nos lembra, o tempo todo, que somos aquilo que começou ali, nas cavernas.

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