Como a senhora avalia o resultado do julgamento da constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias?
Lygia da Veiga Pereira – A primeira coisa que eu tenho dito é que se trata de um julgamento muito interessante, por vários aspectos. Na verdade, havia dois pontos em debate. O primeiro era a discussão sobre se a vida humana começava no momento da fecundação, por isso a Lei que garantia as pesquisas com as células-tronco embrionárias estaria ferindo o direito constitucional à vida. O segundo ponto em debate era a questão da superioridade das células-tronco adultas. E isso era um absurdo, porque não há, cientificamente, nenhuma justificativa para dizer que trabalhar com as embrionárias é crime e com as adultas não. Por isso, na minha opinião, o que estava mesmo em julgamento era se a vida contida ali no blastocisto, aquele aglomerado de células que se forma após a fecundação, é a mesma vida defendida na Constituição. E esse debate é, por si só, muito interessante e benéfico para a sociedade. Porque à medida que vamos criando novas tecnologias, vamos criando também novos problemas. E debater esses novos problemas ajuda a rever conceitos e até a criar novos conceitos.
Como a senhora analisa os votos dos ministros e a conclusão do processo todo?
Olha, eu fiquei impressionada com o resultado tão apertado. Claro que fiquei contente com a liberação do STF, em última instância, para a realização das pesquisas com as células-tronco embrionárias, mas foi um resultado apertado. De qualquer maneira, o resultado do julgamento passa a mensagem que o Brasil é um país moderno, que avança com sua produção científica e que, mesmo que a gente não esteja competindo com outros países, nos coloca no seleto grupo de nações que faz pesquisas com células-tronco embrionárias, como os Estados Unidos, a Inglaterra, outros países da Europa, China. É um time bem bacana em termos de desenvolvimento científico, o que é bem importante. O julgamento também reafirma o caráter laico do Estado brasileiro, mostra que sabemos discutir novas questões e que também não somos uma república de bananas. Ou seja, aqui não é um vale-tudo. O que pode é discutido profundamente.
A senhora falou em coerência na decisão do Supremo Tribunal Federal...
É. O desenvolvimento científico de um país pede esse tipo de debate. E o que eu acho é que seria uma incoerência impedir as pesquisas com células-tronco embrionárias se o país não proíbe a fertilização in vitro e o descarte dos embriões que não serão implantados. Ninguém questiona o direito constitucional à vida desses embriões, que seriam descartados caso não fossem implantados. E acho que os direitos seriam os mesmos.
Com a liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias, para onde devem seguir os estudos brasileiros nessa área?
Não são muitos os grupos que estudam as células-tronco embrionárias aqui no Brasil, mas já sabemos que o governo federal deve abrir um edital, no valor de R$ 21 milhões, para pesquisas com células-tronco. Eu acredito que um ou dois projetos beneficiados com esse edital devem ser ligados às células-tronco embrionárias. O que espero é que equipes que hoje buscam resolver doenças usando as células adultas tentem fazer o mesmo com as embrionárias para ver o que acontece, qual é o resultado. Hoje já sabemos que há algumas doenças para as quais o tratamento com as células adultas dá resultados muito bons e, por isso, as pesquisas devem seguir nesse caminho mesmo. É o caso da terapia proposta pelo professor Júlio Voltarelli, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto [Os trabalhos da equipe do hematologista garantiram a reversão do diabetes imunológico de 14 pessoas, em um grupo de 15 pacientes]. Mas esse é um tipo pouco freqüente de diabetes, há outros que eventualmente poderão ser tratados com as células-tronco embrionárias.
Como estão as pesquisas hoje no país? Estamos bem posicionados em relação aos outros países?
Não. O Brasil está bem atrasado nessas pesquisas. Uma das razões é que tem pouca gente trabalhando com isso. Como não tem massa crítica, ou seja, bastante gente em cima desse tema, as pesquisas ficam mais complicadas. A boa notícia é que tem bastante gente entusiasmada em seguir por essa linha. O que a gente precisa agora é conseguir financiamento para as pesquisas e que o governo facilite a importação de equipamentos e outros produtos que garantam a realização das experiências. E as linhas que esses estudos vão seguir dependem muito mais dos interesses das equipes, que hoje trabalham mais com as células adultas simplesmente por elas serem mais fáceis de manipular. Elas são conhecidas e se trabalha com elas desde a década de 1950. Desde a década de 1980 a comunidade científica já sabe que se o tratamento com essas células não funcionar, mal também não vai fazer. Para algumas doenças, a gente até já tem comprovação que, em cobaias, as embrionárias são mais adequadas. Eu conheço várias pesquisas, sei de uma, por exemplo, realizada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, que trabalha na diferenciação de células nervosas e que podem levar a pesquisas ligadas ao Mal de Parkinson, a traumas na medula espinhal e por aí vai. Tudo vai depender dos interesses da equipe.
A senhora disse que tem pouca gente trabalhando com as células-tronco embrionárias. Então a questão levantada pela ação de inconstitucionalidade era mais conceitual que prática?
Exatamente. Não é que agora que o Supremo liberou vão se abrir as comportas da ciência e todo mundo vai sair correndo para fazer pesquisas com essas células. A vitória mostrada no julgamento foi uma vitória conceitual. A discussão que se travou foi no campo conceitual, mostrando que o Brasil é um país moderno e tem um Estado laico.
E quanto ao financiamento dessas pesquisas? Os valores propostos pelo governo são suficientes para a realização dos estudos?
O financiamento no Brasil ainda é muito baixo. Mas, na verdade, não ajudaria nada termos hoje os três bilhões de dólares que o estado da Califórnia, nos Estados Unidos, destina hoje às pesquisas com células-tronco embrionárias, porque não teríamos gente suficiente para realizar essas pesquisas. Então, o que precisamos fazer agora é formar os cientistas que vão lidar com isso, treinar o pessoal e manter aceso o interesse e o entusiasmo de se trabalhar com essas células tão especiais.