Elisa Marconi e Francisco Bicudo
A juventude é... Completar a frase é uma tarefa complexa que vem ocupando filósofos, sociólogos, antropólogos, psicólogos e toda uma ampla gama de pesquisadores de distintas áreas do conhecimento, que procuram entender esse segmento da população que se transformou em sucesso de público e crítica. De um lado, o jovem é tido como o rebelde contestador, que desafia os padrões e costumes deixados por gerações imediatamente anteriores; de outro, é o receptor dos anseios dos mais velhos que, contrariando o conselho do dramaturgo Nelson Rodrigues, desistiram de envelhecer e desejam permanecer eternamente jovens. Não raro, é visto e tido ainda como alienado, como um deslumbrado que pouco se interessa pelas coisas do mundo.
O sociólogo Waldenyr Caldas, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), é um dos estudiosos que buscam compreender melhor essa parcela tão especial da população. Por isso, depois de alguns anos debruçado sobre o tema, acaba de lançar o livro A Cultura da Juventude: de 1950 a 1970. Publicado pela Musa Editora, a obra trabalha com esse recorte temporal por uma razão muito simples. “Para entender o jovem de uma geração é fundamental conhecer o da geração anterior, porque uma juventude sempre deixa um legado cultural, político, comportamental para a próxima”, justifica o autor.
Conhecer com mais detalhes então essa geração que cresceu no pós-guerra, ficou adolescente durante a guerra fria e passou para o temido mundo dos adultos usando as hiper-ombreiras dos anos yuppies da década de 1980 é uma maneira de trazer à tona, claro, o universo do jovem de hoje. Caldas procura contar, com uma linguagem bem simples e acessível, que esse jovem dos anos 60 e 70 vivia muito bem. Principalmente nos Estados Unidos e na Europa, eles tinham acesso a praticamente tudo: de comida farta a sistemas de saúde organizados, da educação à cultura. E mesmo que com algumas variações, todo o mundo ocidental, segundo o especialista, vivia um cenário semelhante. “O jovem daquela época só não tinha liberdade e era contra isso que ele começou a brigar”, explica o sociólogo.
Primeiro a juventude se rebela contra a família e suas tradições. “Aí surge a figura do hippie, lembra?”. Depois se volta contra o Estado e seu sistema de funcionamento. Por fim o jovem se coloca contra a opressão da sociedade e seus valores considerados arcaicos, retrógrados. Mas a grande diferença dessa geração para as anteriores é que, de alguma forma, os jovens da década de 1960 e 1970 conseguiram politizar seu discurso e sua prática e isso leva à grande marca dessa meninada. “Eles queriam, simplesmente, mudar o mundo. Queriam transformar a sociedade”, lembra Caldas.
Talvez fosse o acesso à informação, talvez fosse a educação de qualidade, podia ser a polarização do mundo entre esquerda e direita. O fato é que o contexto cultural e comportamental e o momento social e político obrigaram a juventude a passar por um litígio que a dividiu, de forma maniqueísta, como podemos ver hoje, em duas. Os jovens não tinham outra escolha. Ou eram alienados, ou eram engajados.
No Brasil, a situação era ainda mais especial. Enquanto os jovens da Europa – com exceção da Espanha e de Portugal – e dos Estados Unidos viviam tempos de democracia e procuravam a ampliação das liberdades civis e dos direitos individuais, na América Latina a luta por liberdade tinha um outro caráter. Todos os países latinos – com exceção da Venezuela – atravessavam ditaduras. A liberdade de imprensa deixara de existir com a presença da censura institucionalizada, e os direitos humanos mais básicos eram violados sem constrangimento algum, muitas vezes inclusive com a prática da tortura. Os jovens do Brasil – que não confiavam em ninguém com mais de 30 anos, segundo slogan deles na época – brigavam para resgatar uma democracia perdida. Debaixo de cacetadas e de choques elétricos, uma parcela dessa juventude acreditou até em luta armada como caminho para encontrar a tal sociedade mais justa, sonho comum aos jovens de todo o ocidente. Caldas credita a essa situação de exceção a radicalização das posições da juventude brasileira. E o mesmo se repete na Argentina, no Chile e em todos os países latino-americanos. “A ditadura do Brasil e as ditaduras da América Latina foram um motivo fortíssimo para que a juventude reforçasse sua repulsa ao que estava estabelecido na sociedade”, afirma.
Por aqui também, entre um comício e outro, entre uma passeata e outra – enquanto o recrudescimento da ditadura ainda não tinha se instalado de vez, em outras palavras, enquanto o Ato Institucional 5 não havia sido baixado pelo governo linha dura de Emílio Garrastazu Médici –, os jovens de esquerda ouviam Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e uma grande turma de baianos igualmente menores de 30 anos. Já os jovens chamados alienados preferiam a Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos, Wanderléa e Martinha. E todos seguiam influenciados pela contestação nas artes e nos comportamentos. O professor da ECA/USP lembra que essa juventude dos anos 1960 e 1970 produziu a contracultura, que nas palavras do próprio autor foi a manifestação cultural de um grupo que se opunha frontal e radicalmente a qualquer comportamento ou valor aceito e endossado pela sociedade vigente. “Era sim uma juventude que sonhava com outros mundos, outras sociedades”, pontua.
Ao mesmo tempo que garante que os jovens sonhavam com a revolução – fosse ela qual fosse – nos idos de 1960 e 1970, o autor de A Cultura da Juventude: de 1950 a 1970 não tem nenhum constrangimento em garantir que o sonho acabou. “Não dá para escapar da frase de John Lennon, ele tinha razão e aquele sonho acabou lá mesmo”, defende. A idéia de revolucionar a sociedade, a estrutura econômica e fundar um mundo mais justo e livre – a cara daquela geração – se não foi engolido pelo projeto neoliberal, foi pelo menos reduzido a algumas poucas vitórias. Mas Caldas destaca que, se não houve a construção de uma sociedade igualitária em seu sentido mais amplo, ocorreram sim grandes avanços em relação aos comportamentos, por exemplo. “Se hoje os garotos só ficam, em vez de noivar e casar, é resultado da luta da juventude de antes. Se hoje ser virgem beira o patético para homens e mulheres, é conseqüência direta da briga que a juventude de 60 e 70 comprou”. Ele completa o raciocínio: “As conquistas dos homossexuais de hoje vieram da defesa da androgenia que os jovens daquelas décadas faziam”.
Contudo, outras tantas bandeiras se perderam ou foram fagocitadas pelo capitalismo e suas eficientes armas de pasteurizar vanguardas. “A indústria cultural chega e massifica a figura do hippie, faz virar moda e isso desmoraliza o ideal da causa”, avalia o professor da ECA/USP. O mesmo processo se repete com a música, as artes plásticas, os mitos – e aí o que era contracultura vira sistema e perde força. “No Brasil é ainda mais eficiente esse processo, porque a ditadura arrebenta com a politização da sociedade e uma sociedade despolitizada compra e consome tudo que vê pela frente, sem questionar nada”, afirma.
E embora não tenha estendido seus estudos para a juventude da década de 1990 e 2000, o sociólogo se arrisca a dizer que essa parcela da população tem ainda hoje certa repulsa à política e é mais consumista por conta do que a geração anterior viveu. “E eles só estão errados em ser assim aos olhos dos críticos, mas são totalmente coerentes com a lógica do capital sob a qual vivemos”. E então onde está o sonho dos jovens de hoje? “Os sonhos, faz tempo, foram transformados em moeda”, conclui ironicamente Waldenyr Caldas.