Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
O salão de eventos da Livraria da Vila, na Vila Madalena, zona oeste da capital paulista, embora amplo, anunciava-se modesto para a quantidade de gente com e sem senha que serpenteava em uma fila interminável. A ansiedade e a disputa por espaço eram fatores marcantes ali; afinal, tratava-se, naquela noite de segunda feira levemente fria, de conferir de perto o que tinha a dizer Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos. Por esse nome talvez o leitor não esteja reconhecendo de quem se trata e nem compreenda a razão de tanta afobação para assistir a uma palestra. Mas se dissermos que Santos é também conhecido como Pepetela, você certamente se lembrará de um dos mais importantes escritores angolanos contemporâneos. Ele esteve no Brasil para lançar seu livro Predadores, além de participar da Feira Literária Internacional de Parati (a Flip) e – de quebra – falar em diferentes outras oportunidades sobre sua trajetória e processo de criação.
Em todas essas falas, e nos livros de Pepetela, revela-se uma Angola arrasada pela guerra civil, drama que fez ruir os sonhos de gerações que desejavam um país, livre, independente e com identidade própria. O escritor conta que até muito recentemente, praticamente todas as famílias do país ou tinham filhos “que tinham feito a guerra, e aí tinham voltado doentes, sem uma perna, ou sem um braço, ou tinham filhos que estavam fazendo a guerra, ou ainda que aguardavam para ir à luta”. Por isso a tensão era sempre muito grande. Havia, assim, muita história para contar dessa África. Quando a guerra de Angola acabou, finalmente as notícias do inferno começaram a aportar por aqui, por meio da imprensa ou da literatura, e ainda que timidamente.
A professora de literatura africana da Universidade de São Paulo, Rita Chaves, acha que não é um exagero afirmar que a literatura foi um dos canais para conferir alguma visibilidade à África. “Desde os anos 70, quando os países africanos de língua portuguesa conquistaram suas independências, os escritores, que de um modo geral participaram da luta de libertação, foram vistos como porta-vozes desses países”. Como os relatos sobre as guerras de libertação e a conquista das independências não chegavam aqui, os textos literários acabaram por cumprir o papel de promover o conhecimento sobre a nova realidade africana. A professora lembra ainda que nesse mesmo tempo o Brasil vivia os últimos lances da ditadura militar e havia por aqui uma espécie de associação das utopias da chamada geração de 68 com os sonhos desses escritores africanos. Ela recorda que “a CODECRI, editora do Jornal Pasquim, um dos signos da campanha contra a ditadura, foi responsável pela publicação do livro Poemas de Angola, de Agostinho Neto, que foi também o primeiro presidente da República de Angola”.
Pepetela é um legítimo representante dessa geração. Ex-guerrilheiro, atuante no Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA) e depois vice-ministro da Educação, viveu de perto e por dentro a história recente de seu país. Vladimiro Caposso, personagem principal de Predadores, também, assim como Aníbal e Ngunga, protagonistas dos romances anteriores. Falando dessa maneira podemos criar a impressão que o autor angolano é sempre auto-referente ou apenas panfletário, alguém que usa suas histórias simplesmente para defender bandeiras ideológicas. Ledo engano, como bem destaca o professor de filosofia da PUC-MG, Marcelo José Caetano. Autor de uma tese de doutorado a respeito do encontro da História e da Literatura nas obras o autor angolano, Caetano diz que “Pepetela, claro, é um autor comprometido com seu tempo. Mas é antes de tudo alguém que quis contar a sua história, a história que viveu”.
Para o especialista, reduzir o escritor a um divulgador de utopias é deixar de lado uma faceta muito importante do autor de Muana Puó, Aventuras de Ngunga, A geração da utopia. “Do Pepetela que conheço, posso afirmar que se trata de um autor de boa densidade; entre os angolanos que eu conheço, é o melhor”, garante Caetano. Ou seja, é uma literatura de qualidade, em termos narrativos, e que ainda oferece a seus leitores o contato intenso com camadas mais profundas da alma humana. “Um belo texto reflete bem a trajetória do autor, que de alguém esperançoso vai se convertendo em um sujeito desiludido, amargo, quase sem crenças”, analisa.
Nas páginas da tese do professor da PUC-MG, aparecem trechos inteiros sobre essas várias fases vividas por Pepetela. Em Muana Puó, por exemplo, Caetano identificou em cores nítidas esse rito de passagem. Aliás, o nome do livro refere-se exatamente à denominação de uma máscara usada em rituais. Na obra, Pepetela recorre à fantasia para tratar de política. “Há corvos e morcegos que se transformam em homens... é uma fantasia”, instiga o pesquisador. Aventuras de Ngunga é uma espécie de cartilha para alfabetizar os povos das florestas, segundo o professor. “Ele reedita o mito sebastianista para falar de esperança”, avalia, recordando um pouquinho da história de Ngunga, que é um menino envolvido com a guerrilha angolana; quanto mais ele se desilude com as coisas da sua vida, mais se envolve com a luta. No final ele some, muda de nome e desaparece. “É o momento em que o escritor aproveita para lembrar a cada leitor que a esperança está em cada um de nós. O herói nacional, aquele que deseja um país mais livre, pode ser qualquer um, eu ou você”.
O último romance analisado por Caetano é também seu preferido, A geração da utopia. Nesse livro, segundo o professor, Pepetela refaz o caminho dos estudantes africanos que moravam na Europa e de como nasceu na casa dessas pessoas o desejo de independência dos países daquele continente. O romance narra ainda como as pessoas que se envolveram com a guerrilha se corromperam, se deixaram tomar por uma sensação de poder muito ruim, que fez essas pessoas se perderem politicamente. “Aníbal, o personagem principal, é um protagonista amargo e desiludido, principalmente porque fica muito claro que, para ele, a revolução perdeu totalmente o sentido”.
Africa desconhecida
Em Pepetela, o homem, o sociólogo e o escritor não podem ser separados, da mesma forma que nas suas obras estão presentes sempre a literatura, a história e a utopia. Por isso, o que talvez mais salte aos olhos do leitor é o revelar de uma África, ou de muitas Áfricas, até então desconhecidas. Na palestra da Livraria da Vila, quando perguntado sobre qual era a África que os brasileiros convidados para trabalhar no continente estavam encontrando, Pepetela admitiu que se trata de uma situação que causa um certo desconforto entre os angolanos. “Os brasileiros, em geral, ganham bem, têm altos salários para fazer a mesma coisa que os angolanos. Aí começa a haver uma pressão para isso mudar”.
Ele diz que também identifica nos brasileiros que vão para Angola um sentimento de que encontrarão o grande berço, a terra da grande mãe, sensação que muda rapidinho, de acordo com o escritor. “Antigamente eram as cartas; hoje os brasileiros telefonam ou mandam e-mails para avisar à família que as coisas lá não são exatamente como eles pensavam”, brinca o autor. E provoca dizendo que os brasileiros que se sentem ligados à África de alguma maneira sempre dão um jeitinho de contar que tinham um bisavô negro, que viera para o Brasil como escravo, mas que na sua tribo natal era um príncipe. “São todos parentes de príncipes que viraram escravos, o que não é possível, porque os príncipes jamais viravam escravos. Ou arranjavam, ou vendiam escravos, mas eles mesmos não eram escravizados”, diverte-se o autor, provocando risos na platéia.
Caetano concorda com Pepetela ao dizer que essa aproximação que se busca encontrar entre Brasil e África, ou ainda, mais especificamente entre Brasil e Angola, nem sempre corresponde à realidade. Os países africanos deixaram de ser colônia há muito pouco tempo, e a relação dos colonizadores com os povos africanos foi totalmente diferente da relação estabelecida com o que depois veio a se chamar povo brasileiro. “Os portugueses que dominaram a África não tinham nenhum intuito de formar uma nova civilização. Sempre foi um desrespeito brutal. São séculos diferentes e projetos políticos diferentes, por isso não somos tão próximos assim da tal mãe África não”, argumenta o professor de filosofia da PUC-MG.
A professora da USP, Rita Chaves, concorda que não é possível se ter uma apreensão única e verdadeira de nenhum país, de nenhum continente. Mas não tem dúvidas: para entender um pouquinho mais sobre Angola, Pepetela é um bom caminho. Para Caetano, “falar de Pepetela é falar da própria Angola”. E Rita completa: “A literatura, que não tem compromisso com o documento, muito embora esteja ligada à História da qual emerge, nos oferece visões múltiplas e diferenciadas de territórios e povos que enfrentam grandes dificuldades e uma grande capacidade de resistência. Os escritores nos ajudam a minar preconceitos e a contrabalançar as imagens tão estereotipadas que a mídia freqüentemente dissemina”.
Rita Chaves lembra que é bastante recente essa troca mais intensa entre os dois lados do Atlântico. “Talvez possamos dizer que a literatura ganhou outras companhias, o que é muito bom, pois propicia uma aproximação, que fazia falta a todos, africanos e brasileiros”. E ressalta o papel da lei 10.639, que determina o ensino de história africana em nossas escolas, como um exemplo de vitória e um incentivo a novas medidas que venham corrigir essa distância inaceitável. Caetano se recorda que havia uma grande resistência por aqui de aceitar a literatura africana como uma forma de expressão rica e considerável e que são os acadêmicos, especialistas em cultura e literatura da África, quem vêm conseguindo minar essa distância. Para ele, “a língua portuguesa por si só não foi capaz de unir os dois continentes, até porque nem o português que falamos é o mesmo”, reflete.
O que vem funcionando mesmo para fazer que Pepetela e os outros escritores africanos contemporâneos de língua portuguesa comecem a sair das estantes universitárias e passem a ser conhecidos pelo grande público – como o que lotou a Flip, a Livraria da Vila, a Livraria Argumento do Rio de Janeiro – é antes o prazer da boa literatura. “Ler Pepetela dá prazer. Talvez porque, me parece, o próprio Pepetela tem muito prazer em escrever suas histórias e isso transparece em cada frase”, anuncia o professor da PUC-MG.
A professora da USP conclui: “A leitura desses e outros autores pode ser acima de tudo um prazer, uma vez que estamos diante de grandes escritores, de homens que associam a sua imaginação a um domínio da linguagem que permite a criação de mundos para além do limites do cotidiano. Seus textos propiciam um contato com a contemporaneidade de povos que muitas vezes parecem perdidos nas brumas da história. Além da projeção da realidade de espaços geográfico-culturais que estão presentes na nossa formação, esses autores nos põem em contato com outros modos de falar a língua portuguesa, chamando a nossa atenção para a riqueza do nosso idioma”.