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Mudanças feitas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação colocam em debate disciplinas e conteúdos

Silvia Bárbara
Professora de ensino médio, diretora do SINPRO-SP e da FEPESP

Em tempo recorde, foi aprovado na Câmara dos Deputados o projeto de lei 2.732/2008, que tornará obrigatório, em três anos, o ensino de música como componente curricular do ensino de Artes na educação básica (fundamental e médio). Na Comissão de Educação da Câmara, teve a relatoria do deputado Frank Aguiar (PTB/SP). O projeto originou-se no Senado (a autoria é da Senadora Roseana Sarney) e por isso vai direto à sanção presidencial.

Se transformada em lei, esta será a quinta mudança na Lei de Diretrizes e Bases (LDB. Lei 9394/96) nos últimos onze meses. Três delas instituem a obrigatoriedade de determinada disciplina ou componente curricular na educação básica.

Em setembro de 2007, a Lei 11.525 determinou que o “currículo do ensino fundamental inclua, obrigatoriamente, conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos adolescentes”. Em março de 2008, a Lei 11.645 tornou obrigatória a “temática (?) indígena” no ensino médio e fundamental. Em junho do mesmo ano, a Lei 11.684 transformou a Filosofia e a Sociologia em “disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio”.

A inclusão de novas “obrigatoriedades” não é um fenômeno novo e resulta, a meu ver, de um defeito de origem da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Em nome de uma “flexibilização” exagerada e dada a polarização que se estabeleceu no Congresso durante a tramitação da LDB, a lei de educação tratou com pouca seriedade o currículo escolar.

Genérica, a proposta original limitava-se a estabelecer a obrigatoriedade do “estudo da língua portuguesa e da matemática” e um vago “conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil” (art. 26, §1º). Havia ainda uma referência ao ensino de História do Brasil, que deveria “levar em conta as diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia” (art. 26, §4º).

Na parte diversificada, a LDB estabeleceu o ensino de pelo menos uma língua estrangeira a partir da 5ª série (agora 6º ano). Durante a tramitação, foram acrescentadas artes e educação física como “componentes curriculares” da educação básica (art. 26, §§ 2º e 3º, apenas artes em caráter “obrigatório”). Por força de um tremendo lobby, o ensino religioso acabou entrando como “disciplina no horário normal das aulas de ensino fundamental das escolas públicas, mas com matrícula facultativa” (art. 33). Também foi incluído no texto o “domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania” (art 36, §1º, III).

O lobby e as mudanças
A falta de uma discussão mais séria sobre os currículos na educação básica abriu espaço para que interesses particulares pressionassem por alterações pontuais na Lei. Aos poucos, a LDB foi sendo gradualmente remendada, transformando-se numa colcha de retalhos desconexa.

As mudanças não se limitaram a incluir como “obrigatórios” apenas alguns componentes curriculares e/ou disciplinas, mas conferiram tratamentos diferentes a eles, de acordo com a capacidade de pressão dos grupos diretamente interessados.

Em oposição à generalidade que marcou o texto originalmente aprovado em 1996, essa pressão elevou o ensino religioso ao patamar de disciplina do ensino fundamental nas escolas públicas, dentro do “horário normal de aulas”, ainda que de matrícula facultativa. Tornou a Sociologia e Filosofia as únicas “disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio”. Obrigou que currículos do ensino fundamental tratem dos direitos de crianças e adolescentes e que o ensino sobre a formação da população brasileira seja abordado a partir de dois “grupos étnicos” (sic) – o negro e o indígena.

Sobre esse último item, vale refletir um pouco mais. Em janeiro de 2003, foi sancionada a Lei 10.639 tornando obrigatório o ensino, no fundamental e médio, de História e Cultura Afro-brasileiras (art. 26-A). Como subproduto, a mesma obrigatoriedade foi estendida à “temática indígena” (sic) em março de 2008 (Lei 11.645).

As duas alterações na LDB não criaram novas disciplinas (o tema deve ser abordado transversalmente e “ministrado em todo o currículo escolar” do fundamental e médio). Em compensação, a lei definiu os conteúdos programáticos que os professores estão obrigados a ministrar. Proeza que nem o regime de 1964 conseguiu instituir.

“O conteúdo programático (...) incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos [negros e índios], tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional ...” (LDD, § 1º, art. 26-A, com a redação dada pela Lei 11.645, de março de 2008).

O precedente aberto serviu de base para que em fevereiro de 2008 fosse apresentado o projeto de lei 2.742, que não só introduz a educação para o trânsito na educação básica, como determina, no ensino médio, o conteúdo programático da nova disciplina! Espera–se que o bom senso prevaleça e a proposta seja devidamente engavetada*.

Todo esse conjunto de mudanças são medidas pontuais que não observam o currículo escolar integralmente, nem a sua importância estratégica para um projeto de nação. Elas estão sendo adotadas a reboque de interesses específicos de grupos com maior capacidade de pressão, sejam eles “progressistas” ou “conservadores”.

Exemplos do lobby não faltam. Em 1997, por conta da vinda do Papa ao Brasil, foi excluída a garantia de que o ensino religioso seria realizado “sem ônus para os cofres públicos”. O Conselho Federal de Educação Física atuou fortemente para tornar a Educação Física componente curricular “obrigatório” (em 2001) e suprimir o seu caráter facultativo aos alunos do curso noturno (2003). Ao apresentar o projeto de lei que tornou a Sociologia e a Filosofia disciplinas obrigatórias no ensino médio, o deputado Ribamar Alves escreveu uma longa justificativa de quatro páginas sem mencionar uma única vez a Sociologia.

Devo ressaltar que sou favorável ao ensino de Filosofia e Sociologia, mas tenho ressalvas aos mitos que justificaram a sua introdução como disciplinas obrigatórias. Em primeiro lugar, essas áreas do conhecimento não detêm o monopólio do “saber pensar criticamente”. E nem se situam exclusivamente no campo ideológico da esquerda, como muitos acreditam (basta assistir ao Globo News Painel nas noites de sábado).

Em segundo lugar, louvou-se muito o “retorno” das duas disciplinas, como se antes de junho de 2008, data em que a Lei 11.684 foi sancionada, as escolas estivessem proibidas de incluí-las em seus currículos. Ora, especialmente a Filosofia já vinha sendo introduzida nas escolas há mais de dez anos, só que sustentada por projetos pedagógicos e não pela mera obrigatoriedade**.

Em terceiro lugar, do ponto de vista pedagógico não há justificativa plausível para que essas duas disciplinas sejam as únicas “obrigatórias em todas as séries do ensino médio”, em detrimento de demais disciplinas.

Por que então não apresentar projetos de lei que instituam História, Física, Química, Ciências e Geografia como disciplinas obrigatórias em todos os anos escolares? Ou então definir o que um professor deve ensinar, de acordo com uma ou outra visão de mundo?

Em relação às disciplinas, estou propondo um tratamento isonômico a todas elas. Quanto aos “conteúdos”, quero ver criada a confusão. Talvez assim seja possível reiniciar a discussão sobre o currículo escolar, desta vez com um pouco mais de responsabilidade.

* Tramitam atualmente na Câmara propostas que instituem no currículo escolar: psicologia, “educação para o pensar”, direitos humanos, empreendorismo, legislação tributária, educação financeira, direito ambiental, “conhecimentos de política”, difusão de valores à segurança pessoal e coletiva, cidadania, cultura popular, educação alimentar, Língua Brasileira de Sinais – Libras, educação sexual, segurança pública, educação contra drogas.

** Atribui-se ao regime de 1964 a supressão da obrigatoriedade de Filosofia e Sociologia. De fato, a Filosofia deixou de ser obrigatória em 1971. A Sociologia, entretanto, teve um curso diferente: ela foi disciplina obrigatória em cursos de nível médio profissionalizantes (por exemplo, Sociologia da Educação), apenas entre 1925 e 1942.

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