Como ficam afinal os direitos autorais em tempo de internet?
A Lei dos Direitos Autorais é de 1998, por isso surge num tempo em que já existia a internet. Contudo, a lei não fala nada e nem leva em consideração a rede mundial de computadores e todas as mudanças que ela ajudou a implementar. O instrumento legal, portanto, perde a chance de regulamentar sobre uma coisa que já existia. E isso só faz aumentar o abismo entre o que as pessoas fazem, o que desejam fazer e o que pode ser feito na prática, e aquilo que é de fato proibido.
E o que é que as pessoas podem fazer?
Em relação à internet, podem exatamente aquilo que a Lei dos Direitos Autorais prevê. Ou seja, a internet é regida da mesma maneira que qualquer outro meio de comunicação ou forma de expressão. Acontece que a lei fala muito pouco ou quase nada sobre a rede, então a percepção do que pode ou não fica muito imprecisa. Livro, por exemplo, a gente só pode xerocar pequenos trechos, para uso pessoal e sem fins lucrativos. Agora, o que são pequenos trechos? Alguns lugares determinaram que isso significa 10% do total, outros que é até um capítulo. Mas isso não está na lei. Fica, portanto, uma interpretação muito insegura, a ponto de, se a cada dia eu xerocar um capítulo, ao fim de um período curto, eu terei copiado o livro inteiro e, embora não tenha feito nada de ilegal, ao fim e ao cabo terei atentado contra o que a gente chama de o espírito da lei. E pior do que isso, a lei não tem qualquer abertura para uso educacional, por exemplo. Um professor que entregar um capítulo fotocopiado de um livro para seus 30 alunos, mesmo que seja por um motivo nobre como a educação, estará cometendo uma infração. Isso é um absurdo. Vou repetir: um absurdo. A lei, portanto, além de não atender às necessidades da sociedade, foi feita sem observar os hábitos da população mundial e acaba transformando todas as pessoas em infratores.
E depois do avanço dos computadores e da chegada e popularização da internet?
Aí complicou mais ainda. Veja, de acordo com a lei que temos, eu não posso pegar um CD meu, passar as músicas dele para o meu computador e depois jogar no Ipod. Eu não posso pegar aquele meu velho LP e passar suas músicas para um CD, para preservar o que eu gosto de ouvir. O disco é meu, o computador e o CD também, mas estou cometendo um ilícito legal se eu mudar de mídia. Essa situação só é diferente se estivermos falando de obras que estão em domínio público, ou seja, depois de 70 anos da morte do autor, a Lei de Direitos Autorais deixa de valer para as obras. Aí podemos executar e reproduzir sem infringir a lei.
Então quando o professor entrega um texto xerocado a seus alunos, ou exibe slides com fotos, ou obras de arte, ou os alunos fazem uma apresentação de uma peça de teatro que não seja de domínio público, ou sem prévia autorização, estão todos ferindo a lei...
Exatamente. Atos simples e corriqueiros como esses são considerados ilegais. Para piorar, está em tramitação no Congresso uma lei que tenta transformar algumas dessas condutas em crime. Aí, de infratores passaríamos a criminosos. Veja o absurdo de uma lei que criminaliza a maior parte da população! Seríamos todos criminosos! E torna-se um absurdo maior porque a Lei de 1998 não regulamenta uma série de situações, e antes ainda de fazer essa regulamentação, corremos o risco de ver essas mesmas condutas virarem crime. A nossa legislação relativa às propriedades intelectuais é a mais rigorosa do mundo. Conhecemos bem aqui no Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV as legislações de muitos países e nenhuma tem o rigor da nossa.
E o que acontece com alguém que é acusado de ferir a Lei de Direitos Autorais?
No Brasil, estão começando a surgir processos por violação de direitos autorais na internet, mas nos Estados Unidos, por exemplo, já há algum tempo pessoas que usam a internet infringindo as leis de lá têm sido processadas. Em alguns casos, é visível tratar-se de bodes expiatórios. Chegaram a processar um senhor de 70 anos, que nem sabia mexer no computador, que era usado por seus netos. A justiça norte-americana afirma que são medidas exemplares, mas as pessoas continuam fazendo exatamente o que sempre fizeram: copiando e colando...
Mas é preciso existir uma proteção aos direitos autorais, certo? E se as leis não asseguram isso, ou se para assegurar transformam a sociedade em criminosos, o que se pode fazer?
A primeira coisa é rever a forma de lidar com o controle à cultura. É muito difícil controlar as condutas das pessoas quando essas condutas são amparadas num hábito, ou num paradigma cultural. É como a língua. É difícil uma lei obrigar as pessoas a falarem o português correto, ou escreverem da forma culta. A língua pertence às pessoas e dificilmente cede aos apelos da justiça.
Então o que senhor acredita que o que aconteceu é que com o avanço das tecnologias de uso pessoal, como computador, CD, MP3, MP4, celular e etc. houve uma mudança na cultura mesmo?
Isso mesmo. Essa percepção social de que as coisas têm dono e que a disposição sobre essas propriedades é regida por lei mudou. Está tudo mais acessível, mais fluido, a sensação de estar dispondo sobre uma propriedade alheia quase não faz sentido na internet. Colocar uma foto copiada da rede no seu perfil em sites de relacionamento não faz ninguém se sentir criminoso. E se a sociedade inteira percebe isso da mesma maneira, talvez não seja mesmo motivo para se sentir assim. As relações com o conhecimento mudaram, as relações com as propriedades mudaram também. E o problema é que a lei ignora essa nova forma cultural de encarar os direitos autorais.
E se o site da escola tem uma área em que os alunos, professores e demais funcionários podem postar comentários? O que fazer no caso de um comentário agressivo, preconceituoso, leviano? De quem é a responsabilidade?
Pois é, em muitos casos é difícil saber de quem é a responsabilidade, porque, de novo, não existe nada sobre isso na lei. Em geral, é para evitar situações assim que sites que aceitam comentários têm uma política de mediação dos comentários. Antes de ser publicado, o comentário passa por um filtro.
Agora, professor, é preciso ter cuidado e não podemos também confundir liberdade com libertinagem... E se o aluno copia um trecho de um texto na internet e coloca num trabalho como se fosse dele? O que o professor ou a instituição podem fazer?
Aí é diferente. Requerer para si a autoria de uma obra de outro é plágio. Plágio também é regido por lei. Mas a instituição ou o professor não podem entrar na justiça contra o aluno infrator. Somente o autor da obra é que poderia acionar o aluno.
E a escola fica então de mãos atadas?
Não, porque embora a Lei de Direitos Autorais não preveja essas situações ligadas à educação, às condutas em sala de aula, a escola pode e deve ter uma política para inibir o plágio. A gente defende que a lei da propriedade intelectual seja revista para se adequar às condutas atuais da sociedade, mas a gente não defende que o uso dessas propriedades seja antiético. Plágio é antiético. Também para o uso educativo das obras por exemplo, o xerox de obras de livros, ou a reprodução de fotos e slides em sala de aula, a escola pode ter uma postura, pode discutir e colher a opinião dos educadores e dos pais dos alunos. Talvez seja o caso de aumentar a biblioteca da escola, ou optar por obras que estejam em domínio público, ou ainda fazer uma representação frente aos parlamentares que estão tocando a lei para criminalizar o desrespeito aos direitos autorais. Também pode punir os alunos que copiam e fazem plágio. Enfim... E uma vez decidido isso, a escola pode se colocar e reafirmar as escolhas que fez. Entrar na justiça mesmo é mais complicado, porque mesmo os órgãos da Justiça não entendem bem como funciona a Lei e acabam se confundindo.
Outro conceito que vem aparecendo, talvez até como uma resposta da sociedade a essa confusão das leis, é o copyleft. O senhor pode explicar com mais detalhes do que se trata e como funciona?
Copyleft é uma brincadeira terminológica com o copyright (do inglês, direito de cópia), que é o sistema americano de proteção de obras autorais. O Brasil utiliza um outro sistema, mais parecido com o sistema europeu, com o sistema francês. E para explicar o que é copyleft mesmo: toda obra já nasce protegida pelos diretos autorais, mesmo que seu autor não queira. Assim surge o copyleft, para flexibilizar a propriedade intelectual e permitir que – se o autor quiser – as pessoas possam baixar, exibir e reproduzir livremente sua obra. O autor pode, então, abrir mão antecipadamente de seus direitos sobre a obra. Entram aí os Creative Commons, que são licenças públicas para autores que querem abrir mão antecipadamente dos seus direitos. Ele acessa um site na internet, preenche uma ficha dizendo as condições dele para liberar a reprodução da obra. Então ele escolhe se os usuários podem só baixar gratuitamente sua obra, se podem baixar e reproduzir, se podem comercializar o conteúdo, e tudo isso sem consulta prévia ao autor. Essa licença gera uma espécie de selinho com as iniciais do creative commons (CC). Aí esse selinho pode ser colocado nos sites onde a obra está publicada, ou na contracapa de um livro, ou em qualquer obra. Se o autor permite, o usuário pode usar tranquilamente, desde que respeite as condições da licença, porque não estará cometendo o ilícito civil.
E a Lei de Direitos Autorais permite?
Permite sim, sem nenhum problema, porque essa licença não atenta contra nenhuma das disposições da lei. Lá no site da pós-graduação da FGV/Rio, todos os conteúdos de aulas, anotações de alunos e outros materiais gerados nos cursos são assegurados pelo CC. Ou seja, qualquer um pode ir lá, acessar, copiar, baixar e usar. Só precisa citar a fonte e não pode usar com fim comercial. Inclusive tem mais informações sobre esse assunto dos direitos autorais lá no site. Quem tiver dúvidas pode consultar aqui.