Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Há cerca de 400 regiões nos oceanos de nosso planeta em que nenhum ou quase nenhum organismo é capaz de viver. Essas áreas são conhecidas como zonas mortas e foram o objeto de um amplo estudo desenvolvido por Robert Diaz, do Instituto de Ciência Marinha da Virgínia, nos Estados Unidos, e por Rutger Rosenberg, do Departamento de Ecologia Marinha da Universidade de Gotemburgo, na Suécia. As conclusões do trabalho foram publicadas em agosto, na prestigiosa revista científica Science, uma das mais respeitadas da área, e rapidamente ganharam repercussão pública.
O destaque não aconteceu por acaso. No artigo, Diaz e Rosemberg revelam que a extinção da vida nessas regiões deve-se essencialmente à escassez de oxigênio e que a queda acentuada desse elemento na água do mar acontece por conta da presença aumentada de nutrientes químicos, que por sua vez estimulam a atividade microbiana e provocam finalmente a morte ou a dispersão de muitos organismos marinhos. Trocando em miúdos: quando chegam mais nutrientes aos oceanos, as algas ali presentes têm mais alimentos à disposição e se reproduzem mais velozmente. “Onde vivem mais algas, também mais algas morrem. E as que morrem vão se depositar no fundo do mar, onde são decompostas por bactérias. Para degradar as algas, as bactérias utilizam oxigênio”, explica o professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO/USP), Alexander Turra. O especialista completa o circuito: “essa decomposição atinge tal intensidade que chega um momento em que não tem mais oxigênio ali. Os biólogos chamam esse processo de eutroficação. Assim nascem as zonas mortas”. Ainda mais alarmante do que o fato de o trabalho ter identificado as 400 zonas mortas atualmente existentes é a constatação de que elas estão se expandindo. O tamanho delas dobrou a cada década, desde 1960; apenas entre 1995 e 2007, o ritmo foi ainda mais acelerado, ampliando essas regiões em 33%.
O especialista da USP lembra que a degradação das algas é um processo natural e que precisa acontecer para que o equilíbrio ecológico se mantenha. O problema aparece quando esse delicado equilíbrio se desfaz. É essa injeção de ânimo extra na cadeia trófica, representada pelos nutrientes em excesso, que gera como conseqüência o desaparecimento do oxigênio. E o que parecia ser um estímulo à vida é, na verdade, o início do fim. É por meio da água doce que desemboca no oceano, carregada de esgoto doméstico urbano e de fertilizantes agrícolas, que substâncias químicas que alimentam as algas unicelulares chegam em quantidades exageradas ao mar. Quando esse fluxo doce encontra pontos onde a água do mar se movimenta menos, seja porque há menos corrente, menos ondas, ou menos ventos, a situação se agrava. É como se fosse um aquário: o esgoto e os fertilizantes não se dissipam, e a eutroficação tem início. Essas condições costumam se apresentar simultaneamente em regiões costeiras, onde a coluna d’água fica aprisionada na baía. E foi exatamente isso que o artigo publicado na Science mostrou.
Das 400 zonas mortas apontadas pelos pesquisadores Diaz e Rosemberg, a maioria absoluta está localizada em áreas próximas ao litoral. Chamam a atenção pela profusão desses desertos marítimos a costa da Europa – com destaque para o Mar Negro –, além de trechos da Ásia e dos Estados Unidos. O Brasil conta com seis áreas oceânicas eutróficas, segundo o artigo: a Lagoa dos Patos, em Porto Alegre (RS); a Baía da Guanabara e a Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio (RJ); a Bacia do Pino, em Recife (PE); a Lagoa da Conceição, em Florianópolis (SC) e a Lagoa de Imboassica, em Macaé (RJ). Embora as zonas mortas daqui representem menos de 2% do total mundial, não há motivos para comemoração. Para Turra, “o fato de só aparecerem seis áreas aqui não significa que estamos cuidando bem dos nossos mares. Significa dizer que há estudos para essas áreas. Ou seja, se forem feitas mais pesquisas, certamente encontraremos outras localidades com o mesmo problema”, alerta o professor da USP.
Meio Ambiente e Economia
Algumas das zonas apontadas pelo estudo podem ser chamadas de áreas mortas temporárias, isto é, onde o problema se manifesta sazonalmente e, por conta da própria dinâmica de movimento das águas, é possível resolver a situação. Contudo, a grande maioria é de zonas permanentemente eutróficas. E isso significa dizer que 245 mil quilômetros quadrados de oceano não têm condições hoje de abrigar a vida, de acordo com o artigo. Além de todo o problema ambiental que esse cenário provoca, Turra ainda destaca a variável econômica. Um mar sem vida gera prejuízos para os pescadores e para todo o mercado da pesca. “Peixes não vivem em áreas eutróficas, assim como os moluscos e os poliquetos (vermes parecidos com as minhocas, que habitam ambientes aquáticos). E isso empurra a indústria pesqueira para cada vez mais longe no oceano, o que aumenta os custos da operação”. E não é só isso. O turismo também tende a despencar em lugares de mar pouco vivo. “Pode ficar cheiro ruim, não dá para mergulhar nessa água, tudo fica mais decadente ali e aí o turismo cai”, conta o biólogo. Por fim, Turra destaca a questão da saúde. Ele explica que em áreas em vias de eutroficação, as bactérias se multiplicam velozmente, e o contato com a água dessas regiões pode causar doenças como o cólera e as infecções intestinais por salmonela, por exemplo. “Nesses locais, mais pessoas ficam doentes, e o Estado gasta mais com o atendimento aos pacientes”, finaliza.
O que chama a atenção e assusta é que a eutroficação de áreas oceânicas tem conseqüências bem sérias, mas suas causas são conhecidas e simples: esgoto e fertilizante. Também as formas de combate a essa poluição são bem difundidas, há tecnologia disponível para tratar de maneira eficiente o esgoto doméstico e para evitar que os fertilizantes cheguem aos rios e, assim, ao mar. “O problema é que onde há acúmulo de gente, em geral o esgoto caseiro não é tratado. Chega intacto aos rios, lagoas e ao oceano. A combinação de uso excessivo de fertilizantes e eliminação da mata ciliar faz com que essas substâncias químicas cheguem aos veios d’água sem nenhum impedimento”, lamenta o professor, apontando que criar as condições necessárias para impedir o aumento das zonas mortas não seria nada difícil. “Bastaria tratar o esgoto, colocar fertilizante com orientação, para não exagerar, e preservar a mata ciliar”, ensina Turra. Outro caminho apontado por ele é a pesquisa. Artigos como o publicado por Robert Diaz e Rutger Rosenberg fazem avançar o conhecimento mundial sobre os problemas ambientais. “Sem serem sensacionalistas, fazendo pesquisa de qualidade e de importância mundial, os dois cientistas estão ajudando a mobilizar a sociedade”, reforça. Estudos na área de tratamento de efluentes e de uso consciente de fertilizantes também são importantes, assim como orientações que as universidades muitas vezes oferecem aos agricultores, destaca Turra.
Por fim, a publicação do artigo tem potencial para atingir em cheio outra instância: a sala de aula. Sempre que uma pesquisa de amplo espectro como essa é divulgada, o assunto entra mais facilmente na agenda dos educadores e dos estudantes. Segundo o professor do Instituto Oceanográfico da USP, essa pode ser a oportunidade perfeita para consolidar conceitos fundamentais da ciência. No caso desse estudo sobre as zonas mortas oceânicas, os professores de Biologia, Geografia e Química podem aproveitar para aprofundar o entendimento do conceito de eutroficação. “Esse é um tema bem trabalhado em aula, mas às vezes falta o dado de realidade que faz o aluno ter a compreensão total do conceito. Ver a notícia no jornal, entender suas causas e conseqüências e perceber que o problema está bem pertinho de nós com certeza ajuda”, defende Turra. Por isso, levar o jornal, ou as revistas, ou ainda sugerir uma pesquisa na internet sobre as zonas mortas pode ser um ganho para as disciplinas.
Outra contribuição possível do texto de Diaz e Rosenberg em sala de aula é o despertar para a consciência ecológica. A pesquisa deixa bem claro que as 400 áreas eutróficas no litoral do mundo todo são uma realidade em expansão. E a causa principal é o descaso do homem em relação aos cuidados com a natureza – e a idéia selvagem e predatória de que a ação humana não precisa ter limites. “Nenhum de nós gosta de carregar nas costas a responsabilidade por ter matado 245 mil km2 de oceano e de impedir a vida nessa extensão de água. Então nasce sim a sensação de que algo precisa ser feito. E por mim, por nós”, sugere Turra. Ele acredita que o estímulo às ações de cuidado com o meio ambiente pode ser um papel importante a ser desempenhado pelo professor diante de suas turmas. Conhecer é o primeiro passo para refletir e depois agir, de acordo com o biólogo. “A sensibilização vem primeiro e depois vem o engajamento. Se meus alunos não podem eles mesmos construir uma estação de tratamento de esgoto, podem ser motivados a pesquisar, a enfrentar com a curiosidade científica esse desafio que vai salvar o planeta”, garante o especialista.