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Artigo: A bonita história de nossa Constituição Cidadã

Silvia Barbara

Estima-se que 65,5 milhões de brasileiros tenham até 19 anos. Eles nasceram no país já redemocratizado. Não foram testemunhas da intensa organização popular que resultou na atual Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988. Mesmo entre a população de maior faixa etária, o tempo contribuiu para desfazer na memória o fato incontestável de que a Constituição foi produto de uma mobilização vitoriosa contra a ditadura, em particular a partir dos anos 70.

Passados vinte anos e 62 emendas constitucionais, a Constituição ainda é alvo constante de ameaças. Conhecer o contexto histórico em que a Lei Maior foi criada ajuda a entender muitos dos dispositivos constitucionais e contribui para que a sociedade, especialmente os mais jovens, lutem para protegê-la.

Luta pela democratização
O regime militar, implantado no país em 1964, manteve-se no poder por longos vinte anos. Esta “longevidade” deveu-se à combinação de crescimento econômico e forte repressão política, especialmente a partir de 1969. O verniz de legalidade ao novo regime deu-se pela elaboração de uma nova Constituição, em 1967, que limitou o poder do Legislativo, ampliou a ação do Executivo, restringiu os direitos civis, instituiu a censura, possibilitou o controle da imprensa, definiu uma nova lei de segurança nacional. Coube ao Congresso – já firmemente controlado pelo Executivo – aprová-la. Com o endurecimento do regime em 1969, uma reforma constitucional ampliou ainda mais o controle do estado autoritário sobre a sociedade.

O encerramento do ciclo de crescimento econômico, em 1973, abalou um dos alicerces sob o qual o regime militar se sustentara. Aos poucos, foram surgindo sinais de rearticulação da sociedade. Nas eleições de 1974, a oposição fez maioria na Câmara dos Deputados. Desde 1978, greves no ABC paulista, lideradas por Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, desafiavam a ditadura. O ano de 1979 foi marcado pela campanha de anistia aos presos políticos e pela reforma partidária, que pôs fim ao bipartidarismo. Pipocaram em todo o país movimentos populares contra a carestia.

Como pano de fundo de todos estes movimentos estava a luta pela redemocratização, alicerçada em dois eixos: eleições livres e diretas, inclusive para Presidente da República e convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, para elaborar uma nova Constituição e institucionalizar definitivamente o regime democrático.

A campanha Diretas Já, iniciada em 1981, ganhou corpo em 1983. O movimento – coordenado por um organismo suprapartidário (Comitê Nacional Pró-Diretas) assumiu dimensão impressionante. Entre janeiro e abril de 1984, realizaram-se comícios gigantescos nas capitais do país. Na capital paulista, o maior deles reuniu 1,7 milhões de pessoas no Vale do Anhagabaú.

A emenda constitucional que reintroduzia a eleição direta para presidente, apresentada pelo então deputado Dante de Oliveira, foi derrotada no Congresso em 25 de abril de 1984. Mas a luta pela redemocratização e por uma Assembléia Nacional Constituinte era caminho sem volta. A cisão da bancada governista contribuiu para que o candidato de oposição – Tancredo Neves - derrotasse o governista Paulo Maluf no Colégio Eleitoral, por 480 contra 180 votos, em 15 de janeiro de 1985. Internado às vésperas da posse, Tancredo morreu trinta e oito dias mais tarde. Assumiu o vice-presidente José Sarney, que até seis meses antes pertencera à bancada governista. Em 1985, Sarney encaminhou ao Congresso emenda constitucional, convocando uma Assembléia Constituinte. Eleita em 1986, ela deveria tomar posse em 1º de fevereiro de 1987. Os movimentos sociais, relativamente desarticulados pela derrota das Diretas-Já, voltaram a se organizar. O período pré-constituinte e a própria Assembléia foram palco de uma das mais belas disputas democráticas do país.

O primeiro grande embate ocorreu ainda em 1985, na definição das atribuições da Assembléia Constituinte. Havia duas propostas. A primeira previa a eleição de uma Assembléia exclusiva, eleita somente para elaborar a Constituição e dissolvida após a promulgação. Na segunda proposta, a sociedade delegaria ao Congresso Nacional, renovado nas eleições de 1986, poderes para elaborar a Constituição, acumulando, assim, funções legislativas e constituintes¹. Por pressão de boa parte da classe política, inclusive lideranças tradicionais do Congresso Nacional, a segunda proposta saiu vitoriosa.

Outro grande embate ocorreu na instalação da Assembléia Constituinte e versava sobre a sobre a participação popular. No cerne da questão estava a possibilidade de a sociedade participar diretamente do processo, pelo envio de emendas populares e pela realização de referendos sobre todos os temas discutidos na Constituinte². De um lado, movimentos sociais organizados pressionando para ampliar ao máximo as possibilidades de participação direta. De outro, setores – em especial partidos políticos governistas e mais conservadores – desejosos de limitar esta participação. Graças à ampla mobilização, a sociedade pôde intervir diretamente na Constituinte. Foram distribuídos por todo o país formulários para coletar sugestões que subsidiariam os parlamentares. Em pouco tempo, 72.719 sugestões foram aglutinadas em um gigantesco banco de dados no Senado (Sistema de Apoio Informático à Constituinte).

Além disso, tornou-se possível a apresentação de emendas populares ao anteprojeto de Constituição, desde que fossem encaminhadas por pelo menos três entidades associativas e subscritas por 30.000 assinaturas. Apesar do prazo exíguo – pouco mais de um mês – foram apresentadas 122 emendas populares, que somaram 12.277.433 assinaturas.

Por último, o regimento interno da Assembléia previu também a realização de audiências públicas para coletar sugestões. Dos quase 400 encontros realizados, surgiram mais de 2.400 sugestões.

Setores populares se organizaram em todo o país: movimentos feministas, sindicatos de trabalhadores, fóruns ligados à defesa da educação pública, entidades ligadas à defesa da saúde e da previdência públicas atuaram de maneira ativa durante os quase dois anos da Constituinte. O trabalho iniciou-se pelo debate e apresentação de emendas e sugestões, manteve-se nas comissões e subcomissões técnicas e terminou no plenário, para pressionar os parlamentares a aprovarem suas reivindicações.

Segundo Maria Victoria Benevides, “ pela primeira vez em nossa história política, a sociedade se organizou com tal nível de participação – no plano nacional, estadual e municipal – em torno de questões até então consideradas “tarefa exclusiva” dos juristas, dos políticos, dos governos. A criação de plenários, comitês e movimentos pró-participação popular na Constituinte é o melhor exemplo dessa nova fase”³ .

Constituição Cidadã
O texto final da Constituição refletiu o clima de grande politização e a correlação de forças estabelecida na Constituinte. Acuados pela mobilização de movimentos sociais organizados, políticos mais conservadores se organizaram num bloco, conhecido como Centrão, para barrar as demandas sociais que estavam sendo incluídas no texto. Feitas as contas, entretanto, é possível afirmar que o saldo foi bastante positivo. A redação original possui 250 artigos distribuídos em nove títulos e outros 83 artigos de disposições transitórias.

A ampla participação popular em todos os níveis foi responsável por incorporar à Constituição garantias fundamentais aos cidadãos. Os direitos individuais foram ampliados – o racismo e a tortura tornaram-se crimes inafiançáveis, a liberdade de expressão tornou-se princípio constitucional, foram criados mecanismos de controle do Estado pela sociedade, como o mandado de injunção, que assegura ao cidadão o cumprimento das liberdades constitucionais.

Pela primeira vez, graças a emendas apresentadas pelo movimento sindical, direitos trabalhistas foram incorporados à Constituição: proteção contra a demissão imotivada, férias, adicional noturno, participação nos lucros, fundo de garantia, aposentadoria, entre outros. Além de transformados em direito constitucional, muitas destas garantias foram criadas na Constituinte, como o adicional de 1/3 nas férias, ou ampliadas, como a licença gestante (de 90 para 120 dias), adicional de hora extra (de 20% para 50%) e indenização na dispensa sem justa causa (a multa do FGTS passou de 10% para 40%).

O DIAP – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, órgão suprapartidário mantido por centenas de entidades sindicais, foi responsável pela apresentação de emenda popular sobre os direitos dos trabalhadores. A emenda, apoiada por todas as centrais sindicais e subscrita por mais de um milhão de assinaturas foi quase que integralmente aprovada e deu origem aos artigos 7º e 8º da Constituição.

O ponto mais polêmico assegurava estabilidade no emprego e foi aprovado na Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores . No final, a luta pela estabilidade foi derrotada, mas criou as bases para uma negociação que tornou a proteção contra a demissão involuntária um direito constitucional (portanto, difícil de ser suprimido), além de aumentar o valor da multa para 40%. Também como conseqüência deste intenso processo de mobilização, foram garantidos mecanismos de participação política da sociedade que vão muito além da eleição de seus representantes. O referendo sobre o desarmamento de 23 de outubro de 2005, por exemplo, só foi possível graças a três emendas populares, subscritas por 400 mil pessoas, e responsáveis pela introdução de mecanismos de intervenção direta da população nas ações legislativas: o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular.

A adoção da agenda neoliberal no país, particularmente a partir de 1994, associada a uma relativa desarticulação da sociedade, resultou em duas conseqüências: freou a implementação de muitas das conquistas constitucionais, na medida em que elas exigiam regulamentação que acabou não acontecendo. Além disso, o texto original sofreu 62 alterações, descaracterizando muitos dos avanços de 1988.

Hoje, existe uma certa descrença nas instituições e na ação política. Resgatar a memória do esforço empreendido por milhões de brasileiros na Constituinte revela a importância da ação política na vida de todos os brasileiros.

1 Flávio Bierrenbach, relator da Comissão Mista do Congresso Nacional encarregada de analisar o projeto para a convocação da Constituinte proposto pelo governo, chegou a sugerir que esta escolha fosse feita por consulta plebiscitária.

2 Na proposta sugerida por Flávio Bierrenbach, também derrotada, até mesmo as propostas rejeitadas pelos constituintes seriam submetidas a referendo, desde que tivessem recebido voto favorável de 2/5 dos parlamentares, com pedido de destaque feito também por, no mínimo, 2/5 dos constituintes.

3 Mª Victoria Benevides. A Cidadania Ativa – referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo, Ática, 2003, p.123.

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